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Em novo livro, o líder e xamã Davi Kopenawa e o antropólogo Bruce Albert denunciam genocídio indígena

Em novo livro, o líder e xamã Davi Kopenawa e o antropólogo Bruce Albert denunciam genocídio indígena

Por Eduardo Nunomura*

Davi Kopenawa está atormentado. Desabafa ele: “Quando meus pensamentos estão tristes, às vezes pergunto a mim mesmo se, mais tarde, haverá xamãs. Talvez não”.

Maior liderança viva dos Yanomami, Davi confidencia que esse temor ocupa seus pensamentos e que quase sempre eles apavoram suas noites. “Mas, se acontecer, nossos filhos terão o espírito tão emaranhado que já não verão os espíritos e já não poderão ouvir seus cantos. Sem xamãs, ficarão desprotegidos e a escuridão tomará conta do pensamento deles”.

Ele vê o pior diante de seus olhos. Consciente de seu papel delegado por Omama, a divindade criadora do povo Yanomami, ele sabe que, por ora, o que mais precisa fazer é preservar e passar adiante as sábias palavras que os antigos líderes espirituais transmitiram a eles, xamãs, e que não há outra solução possível.

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Em novo livro, o líder e xamã Davi Kopenawa e o antropólogo Bruce Albert denunciam genocídio indígena
O líder e xamã Davi Kopenawa / Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real

Quando Davi Kopenawa fala, o Brasil inteiro deveria parar para ouvi-lo. O mundo também. Porque dele depende a sobrevivência de seus familiares, de seu povo, dos rituais ancestrais, da cosmologia dos Yanomami e da floresta amazônica que a muito custo seu povo luta para preservar.

Quem afirma isso é o antropólogo francês Bruce Albert, amigo do xamã yanomami, e com quem divide a escrita de O Espírito da Floresta, livro que acaba de ser lançado pela Companhia das Letras.

Em novo livro, o líder e xamã Davi Kopenawa e o antropólogo Bruce Albert denunciam genocídio indígena
O antropólogo Bruce Albert / Reprodução de vídeo

É a segunda obra assinada pelos dois. A primeira, A Queda do Céu (Companhia das Letras), veio ao mundo em 2010, primeiro na França e depois no Brasil (traduzido pela antropóloga Beatriz Perrone-Moisés e publicado cinco anos depois).

Em novo livro, o líder e xamã Davi Kopenawa e o antropólogo Bruce Albert denunciam genocídio indígena
Bruce Albert e Davi Kopenawa na terra indi1gena Yanomami / Foto: reproducão da edição francesa do livro ‘La Chute Del Ciel’

Longe de ser um best-seller, e também de ser uma leitura fácil, o livro inaugural da dupla questionava a noção de progresso e desenvolvimento imposta pelo que Kopenawa chama de “povo da mercadoria”.

Foi, aos poucos, ganhando leitores e críticos dispostos a se debruçar nos inúmeros ensinamentos contidos em suas mais de 700 páginas. Hoje, é considerada uma das obras-síntese para compreender o Brasil, segundo a Associação Portugal Brasil 200 anos, que levantou os 200 livros mais importantes por conta do bicentenário da independência do País.

Davi Kopenawa e Bruce Albert / Foto: Beto Ricardo/ISA

Bruce Albert conheceu Kopenawa quando ele era um jovem intérprete da Funai (então Fundação Nacional do Índio e hoje rebatizada de Fundação Nacional dos Povos Indígenas). O primeiro encontro foi há 50 anos. Desde então eles criaram uma relação afetiva que extrapola os limites de A Queda do Céu e agora O Espírito da Floresta.

No primeiro e no segundo livros, os autores revelam sua indignação em relação ao projeto de desenvolvimento do país movido não só pela extração predatória dos recursos da Amazônia, mas também pelo genocídio dos povos originários, os verdadeiros guardiões da floresta. Esta é a grande denúncia que liga as duas obras.

O Espírito da Floresta reúne textos não-inéditos publicados entre 2002 e 2021 em inúmeras exposições realizadas em Paris pela Fundação Cartier. Nesses encontros, os visitantes puderam conhecer obras criadas por produtores culturais (como os fotógrafos Cláudia Andujar e Valdir Cruz; e os artistas Adriana Varejão e Raymond Depardon), pesquisadores (Hervé Chandès, Cédric Villani, Michel Cassé) e artistas (Taniki, Joseca e Morzaniel Iramari) da casa coletiva yanomami Watoriki (a Serra do Vento), onde vive Kopenawa e sua família.

A Watoriki fica no extremo nordeste do Amazonas, entre a bacia do rio Catrimani e a do rio Demini.

A “terra-floresta”

Neste novo livro, Albert faz as vezes de tradutor do mundo indígena, mas sempre com uma gentileza e um respeito extraordinário. Quase pedindo licença, ele descreve didaticamente e com propriedade o léxico dos Yanomami, preocupando-se em mostrar o sentido de cada uma das palavras que são caras a Davi Kopenawa e ao seu povo.

“Seres humanos”, por exemplo, são chamados de yanomami thë pë, que, obviamente, não são os únicos a viverem na “terra-floresta” (urihi). Há também os animais (yaro pë), os xamãs (xapiri thë pë) e os brancos (napë kraiwa pë).

“Como os humanos, a ‘terra-floresta’ sofre e sente dor quando derrubam suas árvores. Ela morre quando é incendiada, dando lugar a uma terra seca e quente, onde vai se instalar Ohinari a, o espírito da fome. Diz-se, então, que ‘a floresta tem valor de fome’, urihi a në ohi, e que essa entidade maléfica sopra, dia após dia, seu pó xamânico nas narinas dos humanos a fim de enfraquecê-los para deles se alimentar”, explica o antropólogo, logo no início do livro.

Aviões de garimpeiros sobrevoam a Terra Indígena Yanomami / Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real (2021)

O que Albert se esforça em nos ensinar é que a “terra-floresta” é uma entidade dotada de sensibilidade e que ela sente sempre que uma árvore vem ao chão. Os xamãs, como Davi Kopenawa, conseguem ouvir essas queixas quando troncos secam ou desabam, por estar em constante diálogo com Omama, o demiurgo yanomami.

“Essas vozes xamânicas nos fazem entender que a proteção das florestas e o futuro da vida no planeta passam por uma renúncia ao nosso mito utilitarista de uma ‘natureza’ separada da humanidade, da qual seríamos ‘donos e possuidores’ até transformá-la em deserto enquanto, por remorso, museificamos alguns de seus últimos fragmentos ‘selvagens’”, conta Albert.

Coube a Davi Kopenawa, que desde a primeira infância era predestinado a ser o guia espiritual de seu povo, fazer essa possível ponte entre o saber cosmológico, adquirido pelo uso de potentes alucinógenos, e a realidade cotidiana, sempre ameaçadora. Os xamãs podem, pelo canto e pela dança, evocar a presença dos seres de origem mitológica, sempre com o objetivo de buscar compreender a realidade e, então, proteger os povos da floresta dos poderes predatórios dos homens brancos.

As epidemias mortais

Os Yanomami enfrentam o assédio e a destruição bravamente. Em O Espírito da Floresta, o leitor se depara com dois textos emblemáticos, um escrito por L.Yanomami, sogro de Davi Kopenawa, e outro do próprio xamã. Os dois tratam de epidemias, com contrastes gigantes, mas ensinamentos singulares.

No primeiro, L. Yanomami fala sobre as várias doenças (como o sarampo) trazidas pelos brancos nos primeiros contatos, ainda nos anos 1920. Já Kopenawa, fala sobre a epidemia de Covid-19 cem anos depois. 

O Espírito da Floresta, de Davi Kopenawa e Bruce Albert, Companhia das Letras, 234 págs.,60 reais

“Antigamente, muitos de nossos antepassados morreram de epidemia. Assim, eles nos ensinaram a morrer”, adianta-se a comparar o líder espiritual para dizer que o novo coronavírus não seria tão preocupante quanto outra ameaça mais presente.

“Porque o que realmente nos dá medo hoje são os garimpeiros e as mineradoras, os que devastam a terra, desmatam a floresta e envenenam os rios com lama e o mercúrio; os que empesteiam nossa floresta com a malária que devora todas as nossas crianças sem parar”. 

Em A Queda do Céu, Kopenawa e Albert percorrem um caminho exploratório de como se concebe a cosmovisão indígena, na qual humanos e não-humanos, espíritos, animais e plantam compõem a Natureza criada por Omama; o rastro da destruição a partir dos contatos com os brancos, como o trágico massacre de Haximu, ocorrido em 1993; e o pacto que os dois estabeleceram para denunciar o genocídio dos Yanomami. 

Com território demarcado desde 1992, constituindo a TI Yanomami (9.665 mil hectares), o povo que ocupa terras do Brasil e da Venezuela luta para sobreviver em meio às ameaças que nunca cessaram.

Davi Kopenawa e Bruce Albert, em O Espírito da Floresta, voltam a travar um diálogo de alta complexidade, cada qual com sua forma de se expressar, para alertar ao mundo que as infinitas mediações com outras formas de vida cobrarão um preço se insistirmos em não perceber os seus apelos para parar a destruição da Amazônia. Já. Ambos transparecem um ceticismo de que muito pouco tem sido feito para reverter esse destino trágico

Não deixa de ser emblemático que uma segunda obra desse encontro intelectual entre o xamã e o antropólogo francês seja lançada pouco tempo depois que o mundo se inteirou do genocídio em curso contra o povo Yanomami.

Em fevereiro, o governo federal mobilizou o recém-criado Ministério dos Povos Indígenas, a Polícia Federal, as Forças Armadas, o Ibama, a Funai, a Força Nacional de Segurança Pública, vinculada ao Ministério da Justiça, para desmobilizar o garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami, que recrudesceu nos últimos anos.

A mineração provocou surtos de malária e uma grave crise sanitária entre os indígenas. Foi preciso que hospitais de campanha fossem montados para socorrer os indígenas. A operação federal chegou a tempo de impedir que outra frase de Kopenawa se concretizasse: “Era possível que acabássemos morrendo sem que vocês soubessem”, alertava ele. 

Leia também:
“O que vai salvar a vida do povo Yanomami é a desintrusão do garimpo”, declara o líder indígena Davi Kopenawa
‘O Espírito da Floresta’: novo livro de Davi Kopenawa e Bruce Albert tem renda revertida para o povo Yanomami
Davi Kopenawa Yanomami
(entrevista revista Trip, 2012)

__________

*Este teto foi publicado originalmente no site da agência Amazônia Real em 4/4/2023

Fotos (destaque): Bruno Kelly/Amazônia Real (Davi) e reprodução Youtube (Bruce)montagem Conexão Planeta

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