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Com audição ruim e movimentos lentos, tamanduá-bandeira é uma das principais vítimas de atropelamentos no Cerrado

Com audição ruim e movimentos lentos, tamanduá-bandeira é uma das principais vítimas de atropelamentos no Cerrado


Por Clarissa Beretz*

“Se tem uma coisa que acaba com meu dia é atropelar um animal. É triste demais, uma das piores coisas da profissão. Porque não tem o que fazer se o bicho aparece na frente. Frear ou desviar com um caminhão desse tamanho, cheio de carga, é perigoso para mim e para os outros. Aí, o bicho é quem paga.”

A declaração acima foi extraída de uma pesquisa feita com mais de 300 caminhoneiros em quatro rodovias federais que atravessam Mato Grosso do Sul, as BRs 262, 040, 267 e 163. A BR-262, cujos 2.295 km de extensão conectam Vitória (ES) a Corumbá (MS), são recordistas em colisões de veículos e animais no Brasil.

A enquete, feita de forma anônima, é parte do Bandeiras e Rodovias, um projeto do Instituto de Conservação de Animais Silvestres (Icas) que há três anos investiga o impacto das colisões rodoviárias na saúde e na população do maior mamífero insetívoro do mundo, o tamanduá-bandeira (Myrmecophaga tridactyla).

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O último relatório acaba de ser concluído e traz importantes indícios sobre as causas das colisões, que só tendem a crescer com a fragmentação do ambiente onde vivem esses animais. Um estudo preliminar já havia sido publicado em outubro de 2019, com dados de 2013/2014.

Com audição ruim e movimentos lentos, tamanduá-bandeira é uma das principais vítimas de atropelamentos no Cerrado


O biólogo Arnaud Desbiez e um dos tamanduás monitorados pela pesquisa
Foto: Aurélio Gomes

Segundo dados da Anfavea (Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores), a frota de caminhões no Brasil cresceu a uma taxa média de 2,8% ao ano entre 2011 e 2017, alcançando quase 2 milhões de veículos em circulação. Embora a frota tenha permanecido estável desde então, a década terminou com 20% a mais de caminhões nas estradas brasileiras.

Se levarmos em conta que o Cerrado é o maior produtor de grãos no Brasil (mais da metade da soja brasileira vem dali), não é difícil constatar porque esta é uma das áreas mais perigosas para a fauna silvestre. Além do alto tráfego de veículos de carga, há também a perda de habitat impulsionada pela monocultura, particularmente por meio de desmatamento e queimadas.

De acordo com o Centro Brasileiro de Estudos em Ecologia de Estradas (CBEE), da Universidade de Lavras (MG), o Cerrado é o segundo bioma com mais registros de mortes por atropelamento, atrás apenas da Mata Atlântica – o que é esperado, já que se trata do bioma com maior densidade populacional do país.

Com audição ruim e movimentos lentos, tamanduá-bandeira é uma das principais vítimas de atropelamentos no Cerrado


Tamanduá-bandeira e filhote atropelados na MS-040, em Mato Grosso do Sul
Foto: Gregoire Dubois

O impacto humano

Entre os mamíferos de grande porte, o tamanduá-bandeira é um dos que mais sofre atropelamentos: seus olhos, além de muito pequenos, não refletem a luz do farol do carro. O animal ainda ouve mal, tem movimentos lentos, pelagem escura e transita à noite. Tudo isso aumenta as chances de colisão ao atravessar uma rodovia.

Além disso, há riscos também para o motorista, conforme explica o biólogo Arnaud Desbiez, que encabeça o projeto Bandeiras e Rodovias: “Antes de tudo, este é um trabalho de segurança pública, porque quando um veículo colide com um animal de grande porte, como um tamanduá, que tem cerca de 35 quilos, as pessoas se machucam. Muitos morrem colidindo com um bicho ou tentando desviar dele”.

É daí que veio a ideia de incluir a dimensão humano no estudo, como forma de identificar os fatores psicológicos que afetam a decisão do motorista quando um animal aparece na pista.

A partir de entrevistas com caminhoneiros, conforme citado no início da matéria, foi possível constatar, por exemplo, que é raro um motorista atropelar um animal silvestre de propósito, conforme sugere a crença popular. “A maior parte acaba colidindo com os animais porque não tem muita escolha, já que frear ou desviar acaba sendo muito perigoso”, diz Mariana Catapani, a pesquisadora do Icas responsável pelas entrevistas.

“Sem contar que a colisão também causa danos ao caminhão, e isso é perda de tempo e prejuízo financeiro”, acrescenta a bióloga. “Os motoristas dizem que atropelar um bandeira, por exemplo, além do dano psicológico, pode lhe custar cerca de R$ 3 mil”.

Com audição ruim e movimentos lentos, tamanduá-bandeira é uma das principais vítimas de atropelamentos no Cerrado

O tamanduá-bandeira é o maior mamífero insetívoro do mundo:
pode comer até 30 mil formigas e cupins por dia
Foto: Gregoire Dubois

11.199 animais atropelados

Além das entrevistas com os caminhoneiros, a equipe liderada por Arnaud Desbiez monitorou 92.364 km de rodovias, com o intuito de registrar acidentes com as principais espécies de tatus e tamanduás.

Entre janeiro de 2017 e dezembro de 2019, os pesquisadores detectaram 11.199 mortes por atropelamento, incluindo 1.812 tatupebas, 750 tatus-galinha, 725 tamanduás-bandeira, 586 tamanduás-mirim, 65 tatus-de-rabo-mole e 9 tatus-canastra.

O estudo também acompanhou a movimentação de 44 tamanduás-bandeira por meio de GPS contido em um colete acoplado no corpo dos bichos. Como o sistema indicava a localização de cada animal a cada 20 minutos, foi possível entender quando e como os tamanduás interagiam com as rodovias. Os coletes também eram refletores, para sinalizar uma travessia noturna.

Batizados com nomes como Chester, Yoki, Rodolfo e Pequi, esses animais foram acompanhados por três anos. Além do monitoramento por GPS, os tamanduás também eram capturados com regularidade para ter amostras de pelo, sangue e carrapatos coletadas e, assim, identificar possíveis doenças. Todos os coletes já foram removidos, e o projeto agora avança para a fase de análise desses dados.

Segundo Arnaud, o cruzamento de informações colhidas na pesquisa permitiu identificar um dado interessante: a taxa de crescimento da população de tamanduás – cerca de 5% ao ano – diminui pela metade (2,5%) quando se considera o impacto das rodovias.

“Isso significa que as estradas não levam à extinção pelos acidentes, mas diminuem a taxa de crescimento dos tamanduás, porque outras ameaças – como doença, fogo, perda de habitat, ataques de cães ferozes – terão impacto mais forte para chegar ao nível próximo da extinção. A combinação das mortes nas rodovias torna a população de tamanduás-bandeira mais frágil às outras ameaças”, diz o biólogo.

Arnaud chama a atenção também para o fato de que o risco de extinção do tamanduá-bandeira pode causar impactos na própria agricultura, desencandeando um estado de desequilíbrio ambiental. O animal cumpre importante função no controle de insetos e pragas: calcula-se que um indivíduo chegue a comer cerca de 30 mil cupins e formigas por dia com sua língua imensa, que pode medir até 40 centímetros de comprimento.

“Seu papel é muito valioso. Evita, inclusive, que os agricultores tenham de gastar em produtos para o controle de pragas, que além de tudo, contaminam o solo”, explica Desbiez.


A equipe do Bandeiras e Rodovias em campo
Foto: Bandeiras e Rodovias

Ações de conservação em prol do tamanduá-bandeira

Os resultados obtidos até agora estão sendo usados para elaborar as normativas do Plano Nacional de Ação para a Conservação de Tamanduás-bandeira e Tatus-canastra, aprovado em julho de 2019.

O Icas contribuiu com 26 das 31 estratégias definidas como prioritárias para a conservação de animais próximos à extinção. Elas incluem a implantação de radares nas estradas, placas de limite de velocidade, campanhas de conscientização, construção de túneis subterrâneos para a travessia animal e a instalação de cercas, para evitar que entrem na pista.

O trabalho do Bandeiras e Rodovias abrange ainda uma atuação multidisciplinar para a conscientização no âmbito educacional, médico, ecológico e social. O Icas proporciona educação ambiental para cerca de 2.500 alunos de 50 escolas em Mato Grosso do Sul, incluindo sete escolas rurais, capacitação de 20 educadores da Secretaria Municipal de Educação de Campo Grande e a distribuição de mais de 3 mil livros didáticos em municípios de Minas Gerais cujas fazendas aderiram ao projeto ASAS (Área de Soltura de Animais Silvestres), para onde alguns filhotes de tamanduá foram transferidos depois que a mãe morreu.

O Bandeiras e Rodovias ainda tem o apoio de concessionárias de estradas, como a CCR MS. Em junho de 2019, a veterinária Debora Yogui treinou 223 funcionários da rodovia BR-163, que atravessa verticalmente todo o estado ao longo de 850 km. Além de receber informações sobre a fauna brasileira, cuidados com animais peçonhentos e leis ambientais, eles também aprenderam como registrar um atropelamento e como lidar com animais vivos ou feridos na estrada.

Outro aliado que tem ajudado a quantificar o número de atropelamentos e a mapear os pontos mais vulneráveis é o aplicativo Sistema Urubu, criado em 2014 pelo CBEE.  A ferramenta conta com o envio de fotos e informações dos viajantes. A localização de onde foi feita a imagem de um animal morto ou ferido é identificada pelo GPS do celular e assim é possível mapear e chamar ajuda, caso o animal ainda esteja vivo.

“Em um momento de polarização política, onde os interesses das bancadas ruralistas e ambientalistas divergem, o trabalho em equipe, envolvendo todos esses agentes, é fundamental”, atesta o pesquisador.

*Texto publicado originalmente em 06/02/20 no site Mongabay Brasil

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Foto de abertura: Miguel Ranger Jr./Creative Commons/Flickr  

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