O olhar é a ferramenta de trabalho que garante o sustento, o pão de cada dia, para quem veio ao mundo disposto a ser fotógrafo. Sendo assim, é natural imaginar que esses operários da imagem costumem depender dos olhos para fazer arte. Ledo engano.
Adriano Gambarini sempre dependeu dos pés. Ele queria mesmo era ser andarilho, esses mendigos de beira de estrada que cortam distâncias à pé, indo onde o coração manda. E ele sempre foi longe…
Desde 1983, viaja mundo afora e em tantas vezes pude testemunhar sua existência se amalgamando a diferentes realidades, nas montanhas de Minas, mas montanhas dos Andes, nos confins da Amazônia. Sempre de olhos bem abertos.
Adriano gosta de bater perna. Em cima da terra e debaixo dela também. Cedo descobriu prazer em mergulhar em cavernas. Ver o que existia embaixo de tudo, ver o que ninguém via, era quase obsessão.
Gostou tanto do silêncio misterioso que as cavernas guardam que inscreveu-se no vestibular para o Instituto de Geologia da Universidade de São Paulo. Por causa delas, das cavernas, tornou-se fotógrafo.
No segundo ano da faculdade, Adriano se envolveu com um grupo que mapeava grutas pelo Brasil. Trabalhou com geocronologia, o levantamento da idade das rochas. Para registrar as belezas e descobertas das expedições terra adentro, passou a fotografar. Nem sabia que aquilo era o começo de tudo.
Não tinha nenhum curso especial, muito menos equipamentos adequados, mas com uma câmera pequena, pela primeira vez, experimentou os segredos da luz e da sombra. Apaixonou-se.
A partir daí, ávido por saber, pôs-se a ler tudo sobre a imagem. Porém, a grande lição não saiu dos manuais fotográficos, nem dos cursos ministrados por papas da fotografia. Surgiu das obras empoeiradas pelo tempo que ele colecionava nas prateleiras de casa: livros de arte. Antes da foto, era a forma que o seduzia.
Por saber andar, adaptar-se com facilidade às imposições da estrada, foi convidado para acompanhar um grupo de jornalistas em uma travessia à pé pelo litoral baiano. Transferiu para a película a poesia que via desde criança.
Foram as primeiras fotos que publicou. Por meio delas, abandonou a geologia. Convicto da própria necessidade de inspirar em vez de explorar, fez da fotografia, profissão. Graças a elas realizou o sonho: fez-se andarilho.
Percorreu à pé boa parte do litoral nordestino, que seus pais e irmãos tanto admiravam. Retratou as gentes, os bichos, as mazelas, as paisagens, as culturas de um Brasil imenso e plural. Cortou todo o país.
Viu das onças pantaneiras até o macaco-da-noite no Amazonas. De ninhos do raro pato-mergulhão em Minas Gerais ao Uiraçú em Roraima. Mas ainda era pouco. Resolveu “esticar as pernas” em outras terras…
Com o pouco dinheiro que tinha aprendeu muito. Embarcou para a França. Arrumou um emprego na colheita de cerejas em Tournon, no sul do país. Ganhou mais calos na lida da lavoura e na escalada dos Montes Pirineus, na fronteira entre França e Espanha.
Chegou à Grécia. Mergulhou nos mares cristalinos. Provou o leite de égua, sustento das mais tradicionais comunidades nômades do Quirguistão; o feijão doce da China; carne de mutum fresca nos rincões amazônicos.
As plantações de arroz do Laos, os ursos na Rússia, o gelo da Noruega e o calor de Cuba ele viu de perto e registrou. A cultura secular das mulheres-girafas da Tailândia, eternizou com suas lentes.
Fotografou uma Europa em preto-e-branco, as cores da Ásia. Descobriu que os tons de verde são contados às centenas quando se desvenda o Brasil. Graças às suas pernas, transpôs distâncias de proporções chinesas na Rota da Seda, ligação histórica entre o Ocidente e o Oriente na antiguidade. Andou por muitos países em duas voltas ao mundo e em tantas outras trilhas, sem cansaço, sem pressa.
Sempre foi da natureza de Gambarini ver o melhor da natureza. Em 30 anos dedicados à imagem, fotografou lobos, aves, micos, répteis; animais ameaçados de extinção em cada canto do planeta. Procura respeitar com rigidez o espaço do bicho, conhece os limites.
Adriano Gambarini parece alimentar-se da expectativa de cada foto. Aprendeu cedo a fechar os olhos e a apurar os ouvidos para ouvir o idioma involuntário das matas. Mas a natureza por si só para ele não fazia sentido. Por isso, especializou-se em mostrar que o homem e o meio ambiente, juntos, são um ambiente inteiro.
Com o instinto à flor da pele, ao longo dos anos desenvolveu formas de registrar, com a mesma sensibilidade, operários em minas e Arpias no ninho, arte sacra e fauna marinha, o outono parisiense e a seca nordestina. Para os olhos de Gambarini, posaram brasileiros de um Brasil invisível e gente do mundo: indígenas, brancos, negros; milionários, miseráveis; lavradores; artistas; andarilhos, como ele. E nem teme a solidão.
Acredita que, por andar só nesse sem fim de mundo, é recebido com mais carinho, mais hospitalidade. Comprovou com os próprios pés que existe solidariedade em qualquer confim do planeta. Do sertão de Alagoas ao litoral tailandês.
Com Adriano, desde março de 2021, escrevo para o blog Histórias da Terra (a convite de Mônica Nunes), e já vi que, com leveza e afeto, ele quebra barreiras linguísticas e culturais por onde passa.
Já publicou onze livros, sete deles unindo suas fotos aos meus textos. Que sorte a minha!
Tem obras que registram a volta ao mundo e as entranhas das cavernas. De Papua-Guiné à Antártica, do Ganges ao São Francisco. O que poucos sabem é que tem também um livro recheado de poemas! Aliás, é isso que Gambarini faz com a câmera: transforma imagens em poesia.
Fotos: arquivo pessoal