A cobra d’água Helicops boitata, batizada em homenagem à serpente folclórica que protege as florestas contra incêndios causados pelo homem, foi reconhecida pela ciência em 2019 e é considerada a única espécie de réptil exclusiva do Pantanal. Porém, ela está ameaçada pelo aumento dos incêndios no bioma. É o que mostra artigo publicado na revista “Biodiversidade Brasileira” na sexta (15/11) por pesquisadores do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), da Universidade Federal de Goiás (UFG) e do Instituto Nacional de Pesquisa do Pantanal (INPP). Logo após episódios de fogo, o estudo identificou apenas exemplares mortos dessa espécie. E, passado o período de emergência, ela não foi mais localizada, viva ou morta.
Os cientistas realizaram um levantamento de espécies de répteis e anfíbios nos municípios de Barão de Melgaço e Poconé, no Mato Grosso, entre 2020 e 2023. Eles contabilizaram 1.707 registros de 45 espécies a partir de dois tipos de expedições: de monitoramento, realizada com busca ativa e passiva de animais em momentos sem fogo, e de emergência, feita em até 72 horas após a passagem do fogo para a identificação de animais mortos. As áreas para as expedições de emergência foram determinadas a partir de dados de satélite disponibilizados pelo Programa de Queimadas do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE).
Durante as campanhas de emergência, realizadas em setembro e outubro de 2020 e em agosto e setembro de 2021, as serpentes abrangeram o maior número de espécies – doze, ou 70% da amostra — e de registros de indivíduos mortos entre os répteis — 127 registros, equivalendo a 77% do total. Nove espécies foram registradas exclusivamente na emergência, quatro lagartos e cinco serpentes, incluindo a Helicops boitata.
Segundo os pesquisadores, as carcaças das cobras eram encontradas em grupos, com indícios de morte por queimaduras e por ebulição de corpos d’água. “O que chama a atenção é que até esse monitoramento, poucos exemplares dessa espécie tinham sido encontrados. O que vemos agora é que ela ocorre em um ambiente de difícil acesso e que esse ambiente está extremamente vulnerável”, afirma o biólogo Leonardo Felipe Bairos Moreira, pesquisador do INPP e um dos autores do artigo.
A boitata é uma serpente que depende de corpos d’água e, durante períodos de seca, utiliza fendas no solo como abrigo. Isso, além de dificultar o monitoramento da espécie, também representa vulnerabilidade contra o fogo. Segundo Moreira, atualmente, o fogo do Pantanal está ocorrendo no meio da estação seca, quando, naturalmente, deveria ocorrer na transição para a chuvosa, com maior oferta de água. Por isso, mesmo que os animais sobrevivam ao fogo, ainda precisam enfrentar um ambiente com menos recursos e sem chuvas, o que afeta funções como reprodução e alimentação. “É um vórtex de extinção”, avalia o cientista.
A serpente foi avaliada como ameaçada de extinção segundo os critérios da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN) e deve figurar na próxima versão da Lista Oficial de Espécies da Fauna Brasileira Ameaçadas de Extinção, segundo Carlos Abrahão, analista ambiental do ICMBio e coautor do estudo. Alejandro Valencia-Zuleta, pós-doutorando do Programa de Pós-Graduação em Biodiversidade Animal na UFG e autor principal do artigo, ressalta, porém, que os métodos atuais ainda são insuficientes para avaliar com precisão os impactos do fogo e da seca sobre a biodiversidade de répteis e anfíbios no Pantanal.
Valencia-Zuleta alerta que outras espécies, possivelmente desconhecidas e endêmicas, podem estar gravemente ameaçadas, embora a sua detecção seja complexa. “Não encontramos tantos anfíbios quanto o esperado, mas isso não significa que não estejam morrendo; podem ter sido carbonizados, predados ou estarem muito bem escondidos”, explica. Ele destaca que o estudo reforça a necessidade de métodos mais precisos para compreender a ameaça ao bioma, enfatizando que ainda não se mede o real efeito do fogo sobre esses organismos no Pantanal.
*Texto publicado originalmente no site da Agência Bori em 15/11/24
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Foto de abertura: Gabriela do Valle/acervo pesquisadores