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Bienal de SP tem a maior participação de artistas indígenas de sua história, também em mostra exclusiva no MAM

Por Jotabê Medeiros*

É extremamente significativo que a 34ª Bienal de São Paulo, ao completar 70 anos, convoque para sua megaexibição (que se abre neste sábado, 4, às 10 horas, no Parque do Ibirapuera) a maior quantidade de artistas indígenas de sua história. São cinco brasileiros – Daiara Tukano, Sueli Maxakali, Jaider Esbell, Uýra e Gustavo Caboco – e quatro estrangeiros.

Prevista para 2020, a exposição teve de ser adiada por conta da pandemia: é gratuita e vai até 5 de dezembro. Para entrar, é obrigatória a apresentação de comprovante de vacinação contra covid-19.

O tema desta edição é Faz escuro mas eu canto, verso do poeta amazonense Thiago de Mello, do poema Madrugada Camponesa, publicado em livro em 1965. No total, a mostra reúne mais de 1.100 trabalhos de 91 artistas de todos os continentes.

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Além das obras dos cinco artistas indígenas brasileiros, a Bienal faz uso de alguns cantos rituais Tikmũ’ũn em suas instalações. A reprodução dos cantos é uma continuidade da exposição Vento, que ocupou o Pavilhão Ciccillo Matarazzo em novembro de 2020.

Os Tikmũ’ũn, também conhecidos como Maxakali, são um povo originário que habitou uma vasta região entre os atuais estados de Minas Gerais, Bahia e Espírito Santo. Chegou à beira da extinção nos anos 1940, por investidas violentas dos brancos, e foi forçado a abandonar suas terras. Seus cantos têm a função de organizar a vida nas aldeias, tratando de coisas do cotidiano – plantas, animais, lugares, objetos, saberes, cosmologia.

Lugar permanente na arte

Há uma diferença fundamental no grupo de artistas indigenas desta bienal para os de seleções passadas: a organização não trata a delegação dos indígenas na 34ª Bienal como um tipo de concessão. “São artistas que estão representando a si mesmos, que atuam em seu próprio nome”, afirmou o curador-adjunto da mostra, Paulo Miyada.

“E não se trata mais de uma inserção passageira”, vaticinou, acrescentando que a ocupação dos ambientes expositivos é, agora, um lugar permanente para a criação dos povos originais, conquistada progressivamente ao longo dos últimos anos.

Mas ninguém precisaria dizer nada disso para o artista, curador, escritor, educador, ativista, promotor e agitador cultural Jaider Esbell (foto abaixo), da etnia Macuxi e que vem da Reserva Raposa Serra do Sol, de Roraima.

Nascido em Normandia (RR), Jaider é provavelmente um dos teóricos de arte indígena mais preparados da atualidade – desde 2013, tem percorrido museus pela Europa, participado de mostras internacionais (esteve em dez países em 2019 ao lado de Daiara Tukano e Fernanda Kaingang) e tem elaborado uma conceituação do sistema indígena que pressupõe o embate constante.

Esbell (o nome é de origem francesa, ele conta) tem se municiado de informação a vida toda para saber precisamente o que não quer reproduzir dos sistemas artísticos hegemônicos e das estratégias de colonização.

NOTA DO CONEXÃO PLANETA: São de Esbell as serpentes que enfeitam – e à noite, iluminam – o famoso lago do Parque Ibirapuera, e que ilustram a abertura deste post. Intitulada Entidades, a obra tem 10 metros de altura por 20 metros de comprimento e já foi exibida no Viaduto de Santa Tereza, em Belo Horizonte, como parte do Festival Cura. É uma referencia à Cobra Grande, símbolo da fertilidade e da fartura, que trabalha incessantemente para proteger, alertar e manter vivos os povos originários.

‘Vovô Makunaimí’

Detalhe da ‘Carta ao Velho Mundo’, obra de Jaider Esbell, na Bienal / Foto: Amazônia Real

Como artista convidado, Esbell tem duas grandes séries em exibição nesta Bienal. A primeira, Terreiro de Makunaima – mitos, lendas e estórias em vivências (2010) é definida pelo artista como “pedagógica”.

Trata-se de um conjunto de 20 desenhos que reproduzem interpretações do universo infantil face à contação de histórias de “vovô” Makunaimí (nada a ver com o “Macunaíma” de Mário de Andrade; trata-se de um mito originador da criação da natureza, um intermediário da divindade). 

Das 20 ilustrações, somente uma é assinada por Esbell, as demais são como visões escorridas das histórias que recolheu.

Já a série A Guerra dos Kanaimés (2019-2020) é um conjunto impressionante de telas que Esbell produziu sob comissionamento já para o contexto da Bienal, criando cenas alegóricas a partir do mito dos Kanaimés (descritos como espíritos fatais capazes de provocar a morte de quem os encontra).

O senso de iluminação, de figuração, de movimento, de entrelaçamento entre mito e visões: tudo no trabalho de Esbell parece novo, embora seja ancestral.

O artista crê que o colonizador se apropriou de quase tudo que o indígena tinha, condicionando as culturas originárias a repetir padrões da religião, da moral e da arte europeias. “Agora, querem se apropriar também do que não entendem: o mistério, a magia”, considera.

Questões como o sagrado, a cosmogonia, a mitologia, a comunhão ambiental, para a compreensão dos povos indígenas, não se prestam a um tipo de apreciação tradicional, nem à rotulação costumeira. É nesse ponto que ele vê uma estratégia de resistência fundamental.

“O sistema de arte indígena não tem nada a ver com o sistema dos europeus, que nos foi imposto durante e depois da colonização”, analisa Esbell.

As expressões pictóricas do indígena contemporâneo, para ele, se tornam parte de uma ação de resgate. “Tudo tem espírito, por assim dizer, e nós estamos pobres nisso”, escreveu, num dos textos de maior radicalidade da exposição.

“Sabíamos, pois sábios éramos. Amávamo-nos sem nem mandar ou exigir, pois era essencial o dito natural. Enquanto dentro, não enxergávamos o fora, embora suspeitássemos de sua força; seguíamos e cá estamos, à frente. Uns de nós sempre trarão reflexos, complexos; é como passam. Atravessamentos constantes, instantes, eternidades”.

Esbell ironiza quem vê “como figura psicodélica” o indígena que milita pela retomada do inconsciente e que relaciona sua obra à excentricidade marcada pelo uso de “pozinhos ou cogumelozinhos ou uma ervinha”, diz.

“Reúno no inconsciente uma tribo de avatares, seres mágicos sem descrição. Jogando redes ao léu, são polidirecionais. Elas tensionam, e pegamos peixes grandes já sem iscas ou armadilhas”, teoriza.

“Eles estão vivos, debatem-se em retirada, mas não deveriam. A expertise do pescador trabalha além. Quando logo se completa o rito é o moquém, a paisagem. Moquém – tratar com fogo lento o alimento coletivo, na caçada, para levar para casa. Jornada que esquecemos quando, delongando quereres, edificamos megalópoles”, escreveu ele, em texto para a Bienal.

O manto Tupinambá

A artista Daiara Tukano – Foto: Amazônia Real

Daiara Tukano (foto acima) apresenta no terceiro andar da Bienal a obra Dabucuri no Céu (2021), um conjunto de quatro pinturas suspensas que representam os pássaros sagrados de sua visão: o gavião-real, o urubu-rei, a garça-real e a arara vermelha.

Obra de Daiara Tukano / Foto: Amazônia Real

Na cultura indígena, esses pássaros (miriã porã mahsã) vivem na camada do céu que impede que o Sol queime a terra fértil. No verso de cada pintura, ela coloca um manto de penas entrelaçadas que simboliza a tradição dos grandes mantos plumários, abandonada pelos povos originários com o genocídio indígena e a extinção das aves sagradas.

Uma das obras de maior simbolismo dessa reflexão de Daiara é a Kahtiri Bôrô (Espelho da Vida, 2020), plumaria inspirada nos tradicionais mantos Tupinambá, feitos de penas do Guará, e que os brasileiros tiveram de tomar emprestados ao Nationalmuseet da Dinamarca quando dos 500 anos do avistamento português.

A escultura da artista tem um rosto espelhado, que reflete o próprio espectador para dentro da peça.

Manto Tupinambá, de Daiara Tukano / Foto: Amazônia Real

“Tudo o que conhecemos, aprendemos com os mais velhos que vieram antes de nós: plantas e animais e a própria natureza”, pondera a artista, que assinala: “é o momento de firmar as expressões dos povos indígenas na nova ordem que se insinua no mundo contemporâneo, é chegada a hora de estar presente em todos os territórios de cabeça erguida, celebrando a verdade, a memória e a cultura dos povos indígenas”.

Uýra: árvore que anda

Uýra ou ‘A árvore que anda’, passeando pela sua obra / Foto: Amazônia Real

Outro artista cuja obra performática certamente impactará a 34ª Bienal é Uýra, codinome do paraense de Santarém Emerson Pontes, biólogo e performer. Uýra, que já foi descrita como “uma entidade amazônica”, é definida pelo artista como “uma árvore que anda”.

Ele conta que sua personagem nasceu em 2016, durante o processo de impeachment de Dilma Rousseff, quando resolveu buscar formas de estimular o debate sobre a conservação ambiental e os direitos indígenas e LGBTQI+ às comunidades de Manaus e cidades ribeirinhas do Amazonas, utilizando ferramentas didáticas e também performances fotográficas, em maquiagens e camuflagens, em textos e instalações.

Uýra, na 34ª Bienal, faz uso de duas de suas séries de fotografias já conhecidas – Elementar e Mil quase mortos – para alicerçar uma montagem inspirada nas ondulações de uma cobra em movimento. As imagens têm o escopo de denúncia e também de evocação de seres ancestrais ou futuristas.

A série Retomada (2021), desenvolvida especialmente para esta Bienal por Uýra, é ambientada em locais de Manaus que, seja por sua história, função social ou características arquitetônicas, podem ser associados aos modos de viver herdados da cultura eurocêntrica. Uýra desperta a atenção para as plantas, instrumentos que possibilitam a retomada do espaço e do senso de equilíbrio.

Uma instalação também inédita, Malhadeira (2021), que sobrepõe a um desenho da malha de ruas e avenidas conectadas à avenida Constantino Nery, em Manaus, uma rede sinuosa de fios orgânicos com sementes de seringa. Os fios de sementes serpenteando sobre as linhas retas sugerem o desenho das águas.

As mulheres-espírito

A mineira Sueli Maxakali (foto acima) é uma liderança dos Tikmũ’ũn, ou Maxakali. Além de liderança, educadora e fotógrafa, Sueli é também realizadora audiovisual. Na 34ª Bienal, a artista apresenta a instalação Kūmxop koxuk yõg (Os espíritos das minhas filhas), um conjunto de objetos, máscaras e vestidos que remetem ao universo mítico das Yãmĩyhex, mulheres-espírito.

Todo o trabalho para a exposição foi realizado em conjunto com mulheres e meninas que, na comunidade, cuidam de cada um desses Yãmĩy. O processo coletivo de criação da obra é coerente com a organização da própria comunidade Tikmũ’ũn.

As mulheres-espírito de Sueli Maxakali / Foto: Amazônia Real

Árvore apodrecida

Na Bienal, assim como na exposição do Museu de Arte Moderna, as obras dos indígenas recuperam os alicerces para que o espectador perceba o fio evolutivo de uma outra História da Arte. Ou, como diz o curador-adjunto Miyada, “que cada visitante se sinta autorizado a formular suas próprias leituras”.

Ibirapuera, na língua Tupi, significa “árvore apodrecida”. É sintomático que essa revitalização do conceito de arte brote justamente ali, no Parque do Ibirapuera, onde alguma madeira morta foi deixada no passado.

Jaider Esbell pondera que o Brasil dos povos originários passou um processo doloroso de apagamento cultural, no qual “intelectuais indígenas foram rechaçados, seja na arte ou no pensamento”, e não vê outro caminho senão o de enfrentar as doenças do mundo, hoje dominado pela necropolítica, por meio de um esforço de reatar os fios do ancestral e harmonioso relacionamento com a natureza e o ambiente.

34 artistas de 19 povos indígenas, no MAM

A presença de Jaider Esbell é múltipla no Ibirapuera. Ele está não apenas na 34ª Bienal, como artista, mas seu trabalho de curador pode ser conferido ao lado do Pavilhão da Bienal, no MAM – Museu de Arte Moderna, de 4 de setembro a 28 de novembro.

A mostra coletiva Moquém_Surarî: arte indígena contemporânea reúne 34 artistas de 19 povos: Baniwa, Guarani Mbya, Huni Kuin, Krenak, Karipuna, Lakota, Makuxi, Marubo, Pataxó, Patamona, Taurepang, Tapirapé, Tikmũ’ũn_Maxakali, Tukano, Wapichana, Xakriabá, Xirixana e Yanomami.

Neste trabalho, Esbell tem a assistência curatorial da antropóloga e programadora cultural Paula Berbert e consultoria de Pedro Cesarino, professor do departamento de antropologia da USP – Universidade de São Paulo.

O artista-curador escalou obras de artistas e pensadores como Ailton Krenaklíder indígena, escritor e filósofo -, Joseca Yanomami, Rivaldo Tapirapé e Yaka Huni Kuin, que expõem desenhos; tecelagens de Bernaldina José Pedro; esculturas de Dalzira Xakriabá e Nei Xakriabá; fotografias de Sueli Maxakali e Arissana Pataxó; vídeo de Denilson Baniwa; gravuras de Gustavo Caboco; e pinturas de Carmésia Emiliano, Diogo Lima e do próprio Esbell; entre outros artistas.

‘Caboclo D’água’, obra de Ailton Krenak / Foto: Amazônia Real 
Shane e Yaka Huni Kuin na exposição Moquém_Surarî, no MAM / Foto: Amazônia Real

“Não existe, na nossa língua, uma palavra para Arte, talvez a mais próxima seja Hori: a miração, a visão espiritual, da cerimônia, do sonho, e que está presente em todo o mundo à nossa volta”, conceitua Daiara Tukano, artista que participa da Bienal, casada com Esbell.

“Hori também são nossos grafismos, que são um elo com a própria natureza. Pintamos com Hori nossos rostos, nossos corpos, nossas casas, cerâmicas, cestarias: nosso mundo também é feito de Hori. Existe muito mais no Hori além daquilo que possa ser visto ou compreendido, ali se tece a grande linguagem da arquitetura do universo”, completa a artista.

*Este texto foi originalmente publicado no site da agência Amazônia Real, em 3/9/2021

Foto (destaque): Cícero Pedrosa/Amazônia Real / As demais fotos são da Amazônia Real

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Teresa Margarida Brazão Cupertino da Câmara
Teresa Margarida Brazão Cupertino da Câmara
3 anos atrás

Extraordinárias manifestações!….

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