*Por Elton Alisson
Em um intervalo de pouco mais de 40 anos, Altamira, no sudoeste do Pará, foi cenário de duas grandes obras de infraestrutura. A primeira foi a construção da rodovia Transamazônica, entre 1971 e 1973, e a segunda, a Usina Hidrelétrica de Belo Monte, na bacia do Rio Xingu, iniciada em 2011.
Estudioso dos impactos sociais e ambientais desses dois grandes projetos, Emilio Moran, professor da Universidade Estadual de Michigan, nos Estados Unidos, e pesquisador visitante do Núcleo de Estudos Ambientais (Nepam) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), avalia que os distúrbios causados por ambas as construções no município paraense tiveram algumas semelhanças.
“Quando cheguei a Altamira, em 1972, para pesquisar sobre a Transamazônica, presenciei a explosão populacional de mil para 10 mil habitantes em menos de um ano, o aumento do custo de vida e as rápidas transformações sociais e espaciais na cidade em função da velocidade da implantação da obra”, disse Moran.
“Ao voltar para a região, em 2010, para estudos sobre a usina de Belo Monte, fiquei surpreso ao me deparar com uma situação parecida: uma nova explosão demográfica, de 75 mil para 150 mil habitantes em dois anos, e uma série de problemas desencadeados por uma obra dessa magnitude. Parece que, passados quase 40 anos, as lições sobre como gerenciar grandes projetos de infraestrutura não foram aprendidas”, afirmou o pesquisador em um seminário realizado na sede da FAPESP nos dias 27 e 28 de agosto.
Durante o evento, foram apresentados os resultados de uma pesquisa sobre os processos sociais e ambientais da construção da hidrelétrica de Belo Monte. Uma das principais conclusões foi que as promessas de induzir o desenvolvimento econômico sustentável da região, por meio da geração de empregos e melhorias nos serviços públicos de saneamento, saúde e educação, feitas antes e durante a construção da usina, na qual foram investidos R$ 42 bilhões, não se concretizaram. Pelo contrário: contribuíram para aumentar o custo de vida e da energia elétrica para a população, agravar problemas nos sistemas de habitação e de água e saneamento, além de levar a uma diminuição da produção de alimentos e da pesca na região.
A pesquisa foi realizada nos últimos cinco anos, no âmbito de um projeto coordenado por Moran e apoiado pela FAPESP, na modalidade São Paulo Excellence Chair (SPEC).
Um dos objetivos do SPEC é trazer do exterior para São Paulo – por um período de, pelo menos, 12 semanas por ano – um pesquisador com distinção em sua área do conhecimento e reconhecimento internacional, com a tarefa de criar núcleos de pesquisa em universidade paulista e liderar um projeto de pesquisa apoiado pela Fundação, explicou Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor científico da FAPESP.
“A ideia é criar oportunidades de pesquisa de excelente qualidade e competitivas internacionalmente e também possibilitar que jovens pesquisadores em São Paulo possam conviver com cientistas estrangeiros líderes em suas áreas”, afirmou Brito Cruz.
Foi com essa missão que Moran dividiu seu tempo entre a Universidade de Michigan e o Nepam, da Unicamp, liderando um projeto que tinha como objetivo tratar, sob um ponto de vista científico, uma questão, como ele diz, desde início muito politizada: os impactos sociais e ambientais da construção da usina de Belo Monte.
“A ideia foi reunir todas as informações possíveis de todos os atores envolvidos na obra, como o consórcio responsável pela construção, as agências de governo responsáveis pela implementação e a população afetada, para possibilitar o entendimento da complexidade e documentar o processo de uma forma rigorosa, sem introduzir nenhum viés analítico”, disse.
Nova organização espacial
Na avaliação de Moran, os únicos benefícios da obra para a região foram a pavimentação de um grande trecho da Transamazônica – uma reivindicação antiga – e a criação de empregos na obra e no setor comercial durante a construção, mas de forma muito temporária. O pico de criação de empregos aconteceu no terceiro ano da empreitada, depois começou um processo de demissões até o término da construção, disse o pesquisador.
O aumento da população, em razão da chegada de 50 mil pessoas a Altamira entre 2011 e 2015 para trabalhar diretamente na obra ou nos setores de comércio e de serviços, resultou em especulação imobiliária na cidade, que já sofria uma insuficiência crônica de moradias. Além disso, deu origem a novos loteamentos planejados e não planejados e novos bairros periféricos.
Com todas essas mudanças, uma nova organização espacial urbana surgiu. “Ocorreu uma nova distribuição da população urbana, antes muito mais concentrada no centro da cidade e, com a construção da usina, um espalhamento maior para outros bairros”, disse Guillaume Leturcq, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e um dos pesquisadores participantes do projeto.
O aumento da densidade populacional também agravou os problemas sanitários da cidade, apontaram os pesquisadores.
Antes da obra, 86% da população de Altamira usava poços para consumo doméstico de água e, mais de 90%, fossas sépticas para descarte de esgoto.
Com o aumento da população e a demora nos investimentos em saneamento na cidade, que não contava com uma rede de esgoto, novos poços e fossas foram construídos, aumentando o risco de contaminação da água.
“Como as moradias ficaram mais próximas, ao abrir um poço, um novo morador não tem certeza se ele está longe da fossa do vizinho”, explicou Cristina Gauthier, doutoranda na Universidade Estadual de Michigan, que estudou o assunto durante o projeto.
A elevação do nível da água do rio Xingu para a construção da barragem contribuiu para agravar o problema ao diminuir a distância entre o fundo das fossas e as águas subterrâneas, apontou Gauthier.
“O transporte de contaminantes das fossas para as águas subterrâneas acontece mais rápido nesse caso”, disse.
Populações atingidas
O aumento do nível da água com a barragem também causou o deslocamento de 22 mil pessoas que viviam às margens do rio Xingu e na cidade de Altamira, em áreas baixas que seriam inundadas pelo reservatório, para cinco reassentamentos urbanos coletivos (RUCs), construídos pelo consórcio responsável pela obra em áreas periféricas de Altamira, a mais de dois quilômetros do centro.
Essa população vivia, até então, em casas de palafitas, próximas a igarapés ou áreas chamadas de “baixões”. As comunidades reuniam pescadores e ribeirinhos citadinos – que, além de morar em ilhas no Xingu, também tinham uma casa de palafita na cidade para ter acesso aos serviços de saúde, educação e comercializar a pesca.
“Essas pessoas perderam o contato com vizinhos e familiares que moravam próximas a elas nessas comunidades de palafitas e ‘baixões’, além da ligação com o rio, e foram reassentadas a mais de dois quilômetros do centro da cidade”, disse Leturcq.
“Foi um processo de migração único no país. Altamira é a cidade mais impactada pela construção de uma usina hidrelétrica de forma direta no Brasil”, afirmou.
A população de ribeirinhos citadinos e nas ilhas inundadas pelo reservatório foi a mais afetada pela obra, destacaram os pesquisadores.
Ao contrário dos grupos indígenas e de pescadores, que tiveram seus direitos específicos reconhecidos, os ribeirinhos a jusante da obra – no rio abaixo da barragem no Xingu – foram ignorados tanto nos estudos de impacto como no processo de reconhecimento e indenização de danos causados pela obra, apontou Vanessa Boanada Fuchs, pesquisadora da University of St. Gallen, da Suíça, e participante do projeto.
“Os gestores do empreendimento diziam que nunca tinham ouvido falar em ribeirinhos citadinos como grupo de população tradicional, e que eram simplesmente pescadores”, disse Fuchs.
“Levantamos a questão de que essa população precisaria ser indenizada pelas duas moradias que faziam parte de seu modo de vida, por ter sido retirada de uma ilha que foi inundada pela barragem e pela perda da moradia de palafita, na cidade. Os gestores da obra se recusaram a reconhecer esse modo de vida e isso gerou muita polêmica no processo indenizatório”, contou.
A população ribeirinha continua tentando reconhecimento de seu modo de vida com apoio do Ministério Público Federal, disse Fuchs.
Muito menos estudados do que as populações indígenas que vivem em territórios delimitados, os ribeirinhos descendem de nordestinos que foram trabalhar na Amazônia durante o ciclo da borracha e de outros imigrantes da região Nordeste.
Um número expressivo deles tem relação de parentesco com grupos indígenas, como os jurunas, mas eles se identificam como ribeirinhos e vivem dispersos ao longo dos rios, fora de áreas protegidas, explicou a pesquisadora.
“Apesar de terem origens distintas e ocupar territórios diferentes, eles partilham de algumas práticas socioculturais e ambientais em que o papel do rio é central”, disse Fuchs.
Como não foram identificados tanto pelo governo como pelos empreendedores da obra como um grupo populacional com direitos específicos, a exemplo dos indígenas, muitos ribeirinhos foram removidos de áreas próximas ao rio como um habitante comum da cidade e receberam como indenização pela casa uma quantia variável de dinheiro ou a possibilidade de obter uma nova moradia em um reassentamento, distante do rio, afirmou Fuchs.
“As mulheres ribeirinhas também pescavam com os maridos e a mudança da família para longe dos rios causou uma perda de renda familiar”, disse a pesquisadora.
Impactos econômicos
A construção da usina também causou perdas econômicas para ribeirinhos em comunidades localizadas não só a jusante – no rio abaixo da barragem, no Xingu –, como também a montante (na parte de cima do reservatório do rio), ponderaram os pesquisadores.
Durante um estudo de mestrado feito no âmbito do projeto pela doutoranda Laura Castro-Diaz, da Universidade Estadual de Michigan, em uma comunidade de ribeirinhos em Vila Nova, situada a jusante do rio, os pescadores apontaram uma diminuição na abundância e variedade de espécies de peixes com maior importância na região. Entre eles, o piraíba (Brachyplathystoma filamentosum) e o tucunaré (Cichla ocellaris).
“A construção da barragem diminuiu o fluxo da água e, com isso, houve uma perda dos pontos de pesca. Isso também aumentou as despesas de deslocamento dos ribeirinhos, que agora precisam ir para mais longe para conseguir pescar”, disse Castro-Diaz.
Outro setor impactado pela obra foi o agropecuário. A construção da usina hidrelétrica contribui para diminuir a produção agrícola familiar em Altamira ao diminuir a disponibilidade de trabalhadores para a atividade, atraídos por empregos na obra.
No período entre 2010 e 2014, 34% dos agricultores patronais e 29% dos produtores agrícolas familiares reportaram ter observado uma queda na disponibilidade de mão de obra em razão da migração de trabalhadores para a cidade para trabalhar na construção de Belo Monte, o que fez aumentar o custo salarial.
No mesmo período, 60% dos agricultores que se dedicavam à agricultura familiar abandonaram suas lavouras de culturas anuais como arroz, feijão e milho. Em contrapartida, aumentou a produção de cacau e a bovinocultura na região, de acordo com dados apresentados por Miqueias Calvi, professor da Universidade Federal do Pará (UFPA), também participante do projeto.
“A construção da usina de Belo Monte foi apresentada como a via para o progresso e crescimento econômico da região, uma vez que iria induzir setores na região, como o agropecuário, para atender à demanda do aumento da população. Mas aconteceu o contrário”, afirmou Calvi.
Hoje, Altamira importa alimentos de outras regiões do país, como pescados de Santa Catarina, frutas de São Paulo e arroz do Rio Grande do Sul, exemplificou o pesquisador.
“Os impactos econômicos positivos da obra foram temporários e transitórios e não contribuíram para a construção de bases para um desenvolvimento sustentável. Foi uma oportunidade perdida”, avaliou Calvi.
*Texto publicado originalmente em 04/09/19 no site da Agência Fapesp de Notícias
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Foto: Guillaume Leturcq