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‘Bancada do Cocar’ enfrentará Congresso anti-indígena e antiambiental a partir de 2023

Por Karina Mendes, do Mongabay Brasil*

No aniversário de 200 anos da independência do Brasil, os povos indígenas alcançaram um marco histórico: o maior número de candidatos autodeclarados indígenas eleitos para o Congresso Nacional na história do país, um movimento-chave para o futuro de seus direitos, atacados desde o período da colonização, segundo pesquisadores.

Nas eleições de 2 de outubro, cinco candidatos que se autodeclararam indígenas foram eleitos deputados federais e dois senadores. Embora nem todos estejam alinhados com a causa indígena, lutando por seus direitos ancestrais e protegendo o meio ambiente, especialistas e ativistas celebraram o ato como uma resistência crescente — e necessária — para deter a escalada da agenda anti-indígena e antiambiental no Poder Legislativo desde que o presidente Jair Bolsonaro assumiu o poder em janeiro de 2019.

“Essa mobilização dos povos indígenas, ela nos enche de alegria, nos enche de esperança. E mostra pra gente que nós temos que ir pra luta”, afirma a historiadora Ana Paula da Silva, doutora em memória social e pesquisadora do Programa de Estudos dos Povos Indígenas (Pro Índio) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), em entrevista à Mongabay por telefone.

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As vitórias mais celebradas foram a eleição das renomadas ativistas Sônia Guajajara e Célia Xakriabá (imagem abaixo) como deputadas federais para a Bancada do Cocar, através da primeira Campanha Indígena da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), a principal associação indígena do país, com o objetivo de “aldear a política”.

“As mulheres sempre foram protagonistas, mas, nos trabalhos, nos estudos sobre os povos indígenas, sempre se destacaram os homens. Mas você vê que a força das mulheres é muito grande”, diz Silva, destacando a visibilidade dos movimentos indígenas e o protagonismo da mulher indígena, especialmente desde 2019.

Um ingrediente-chave para o sucesso dos candidatos indígenas eleitos foram suas alianças com outros movimentos sociais focados na identidade, orientação social ou na luta pelo direito à terra, incluindo os quilombolas, os sem-terra e os movimentos negros e LGBT, diz o sociólogo José Carlos Matos Pereira, pesquisador do Programa de Memória dos Movimentos Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Ele cita o caso de Célia Xakriabá, eleita com votos equivalentes a cinco vezes a população indígena de Minas Gerais, o que significa que ela estabeleceu alianças.

“Eu estava olhando a pauta dela. Ela fala em demarcação de terras indígenas, mas ela fala também da titulação de terras quilombolas. E ela faz referência a mil comunidades quilombolas em Minas Gerais”, contou Pereira à Mongabay por telefone, acrescentando que também há indicação de diálogos com sindicatos e representantes da reforma agrária.

O aumento da visibilidade dos povos indígenas nas cidades, incluindo protestos, debates públicos e mídias sociais, assim como a inclusão de reivindicações de reforma urbana, também são destaques do ponto de vista de Pereira.

“Tem que pensar a importância estratégica do papel da cidade no processo eleitoral. Mesmo os candidatos rurais, os candidatos indígenas, qualquer outro tipo de categorização. Ele tem papel importante porque é nas cidades que se dão as principais decisões. E é onde está a maior parte do eleitorado”, destaca ele. “Então, esses movimentos são lutas que podem vir legitimamente da área rural ou da terra indígena. Mas ele está em diálogo permanente com a cidade”.

Segundo o sociólogo, promover uma gestão democrática e participativa da cidade é uma abordagem chave, além da inclusão no processo de tomada de decisões para o uso de recursos públicos que tendem a excluir os povos indígenas. “Porque o que está em jogo é a legislação. E do ponto de vista do dinheiro, onde se vai aplicar o recurso público? Se vai pra universidade, se vai pro agronegócio, se vai pra uma série de outras atividades que não dizem respeito aos interesses, especialmente dos indígenas”, salienta ele.

“Se você pensar do ponto de vista da peça orçamentária, os indígenas não estão no PPA, que é o Plano Plurianual federal, muitas vezes estadual, muitas vezes municipal. Não estão na Lei de Diretrizes Orçamentárias. E não estão na LOA, que é a aplicação prática, a lei do orçamento anual”.

Em 13 de outubro, a APIB publicou uma carta apoiando a candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva, que se comprometeu a criar um Ministério Indígena.

O líder indígena Tingui-Botó abençoa o candidato presidencial Luiz Inácio Lula da Silva em ritual durante o Acampamento Terra Livre (ATL), em abril deste ano, em Brasília) / Foto: Scarlett R Photo/APIB

Eleição histórica

Com 156.963 votos, Sônia Guajajara foi eleita deputada federal pelo estado de São Paulo.

“Vamos entrar pela porta da frente no Congresso Nacional! Muito obrigada, SP. Fizemos história! Brasília, estamos chegando pra aldear a política!”, ela publicou no Twitter logo após os resultados.

Nas eleições de 2018, Sônia Guajajara entrou para a história da política brasileira como a primeira mulher indígena a concorrer à vice-presidência. Nascida na Terra Indígena Arariboia, no Maranhão, uma das mais ameaçadas do país, ela tem mestrado em cultura e sociedade e pós-graduação em educação especial e coordena a APIB.

Sonia recebeu vários prêmios, incluindo o Prêmio Fred Packard pela União Internacional para a Conservação da Natureza e a Comissão Mundial sobre Áreas Protegidas, em 2019. No início deste ano, ela foi citada pela revista Time como uma das 100 pessoas mais influentes do mundo.

Com 101.154 votos, Célia Xakriabá foi eleita para representar Minas Gerais na Câmara dos Deputados. Nascida no município de São João das Missões, é doutora e mestre em Antropologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) — foi a primeira indígena a obter o título de doutorado na UFMG. Representou os povos indígenas na COP26, em novembro de 2021, em Glasgow, e participou ativamente das denúncias contra Bolsonaro por crimes contra a humanidade e genocídio indígena no Tribunal de Haia.

“Nossa vitória não é apenas pelos povos indígenas, é pela mãe terra, educação e cultura. Vamos chegar com a força do nosso cocar, fazendo ecoar nossas vozes e maracás!”, Célia Xakriabá escreveu no Twitter logo após sua eleição.

A reação positiva nas mídias sociais de ativistas, grupos de direitos humanos e celebridades foi imediata, incluindo elogios do ator Leonardo DiCaprio. “A Amazônia e a saúde de nosso planeta estão em grandes mãos com essas líderes incríveis”, ele publicou no Twitter.

Em 2018, Joênia Wapichana foi a primeira mulher indígena eleita para o Congresso Nacional como deputada federal pelo estado de Roraima. Embora ela seja, hoje, a única indígena entre os 594 parlamentares, desempenhou um papel fundamental na defesa dos direitos indígenas, sobretudo para barrar os planos de Bolsonaro de colocar a Fundação Nacional do Índio (Funai) sob o Ministério da Agricultura, um dos primeiros atos de seu mandato.

Apesar de ter recebido 11.221 votos — mais que três dos oito deputados eleitos por Roraima — Joênia não foi reeleita devido ao quociente eleitoral. No Twitter, ela disse estar orgulhosa da eleição de Sônia Guajajara e Célia Xakriabá “duas mulheres indígenas guerreiras que vão continuar o trabalho no Congresso Nacional. Sempre disse que fui a primeira, mas não seria a última e nem [a] única”.

Joênia Wapichana tornou-se o segundo representante indígena do Congresso mais de três décadas depois de Mario Juruna, do povo Xavante, que serviu na Câmara dos Deputados representando o estado do Rio de Janeiro de 1982 a 1986.

Duas outras mulheres indígenas foram eleitas deputadas federais nas eleições de outubro. Uma delas é Juliana Cardoso, a primeira vereadora indígena de São Paulo e que, agora, representará o estado de São Paulo como deputada federal (saiba mais aqui).

A outra é Silvia Waiãpi, eleita pelo Amapá pelo mesmo partido que apoia Bolsonaro, o PL. Ocupando um cargo de tenente, ela foi a primeira mulher indígena a se tornar oficial do exército. Durante o governo Bolsonaro, ela liderou a Secretaria de Saúde Indígena (SESAI) e se envolveu em controvérsias, incluindo acusações do Ministério Público de criar obstáculos para a saúde indígena (saiba mais aqui).

Candidaturas controversas

Para o Senado, foram eleitos dois senadores que se autodeclararam indígenas: Wellington Dias, pelo Piauí, e o atual vice-presidente Hamilton Mourão pelo Rio Grande do Sul. Dias foi previamente eleito para o Senado em 2011; Mourão teve sua identidade indígena posta em xeque durante a campanha de 2018.

Dois candidatos autodeclarados indígenas apoiadores de Bolsonaro também foram eleitos como deputados estaduais: Amanda Brandão Armelau, que se lançou candidata como “Índia Armelau” no Rio de Janeiro e o policial militar Lucinio Castelo de Assumção foi reeleito no Espírito Santo.

Um recorde de 186 candidatos que se autodeclararam indígenas concorreram nas eleições de outubro, um aumento de 40% em relação às eleições de 2018. Nas eleições municipais de 2020, o número de candidatos indígenas que concorreram a prefeitos, vice-prefeitos e vereadores aumentou 20% em relação às eleições municipais anteriores.

(NOTA DO CONEXÃO PLANETA: nenhuma destas candidaturas, nem a de Silvia Waiãpi, têm qualquer relação com a Bancada do Cocar).

O que está em jogo no resultado das eleições presidenciais?

Apesar da conquista histórica dos indígenas no Congresso Nacional, a Bancada do Cocar e outras bancadas de esquerda terão desafios para defender os direitos dos povos tradicionais e o meio ambiente em meio à eleição de um Congresso mais conservador, com mais representantes de apoiadores de Bolsonaro e da Bancada Ruralista na Câmara e no Senado, alertam os especialistas.

Eles argumentam que o resultado de 30 de outubro será fundamental para determinar o futuro da Amazônia e de outros biomas, assim como os direitos dos povos indígenas e de outras minorias, já que o chamado Centrão, que tem uma representação relevante no Congresso, alia-se a quem está no poder.

“Nós estamos aqui num debate que tem a ver com essa polarização nacional e que os indígenas representam um pouco dessa ideia. Ou de uma forma muito firme a questão de duas lógicas: a mercantilização da vida da natureza, que é um pouco uma crítica”, diz José Carlos Matos Pereira, pesquisador do Programa de Memória dos Movimentos Sociais da UFRJ.

“Tem uma lógica do mercado que é estrutural, que é de longa duração. Que é a incorporação das terras indígenas no mercado de terra. Se a gente for na longa duração, a desestruturação dos territórios indígenas vem compor o que a gente chama de município brasileiro hoje… Então, os indígenas significam entrave para essa lógica”.

Para Ana Paula da Silva, doutora em memória social e pesquisadora do Programa de Estudos dos Povos Indígenas da UERJ, é urgente ter, no Brasil, um governo alinhado com a defesa do meio ambiente e a luta pelos direitos indígenas e contra a mudança climática para deter os retrocessos dos últimos quatro anos de Bolsonaro.

“O estado brasileiro sempre esteve de costas para os povos indígenas. Hoje, como em momento nenhum da história, o estado é anti-indígena com esse governo aí. E nós precisamos dar uma resposta nas urnas, de que a gente não quer esse governo”.

Segundo ela, é urgente estabelecer um diálogo de toda a sociedade com os povos indígenas e com os movimentos sociais para lutar por um tipo de sociedade “em que o capital e o desenvolvimento caminhem de mãos dadas com os povos das florestas, com as comunidades tradicionais”.

“Há 200 anos o Brasil é um país independente. Mas que independência é essa, né? Pra quem é essa independência? Pra quem é esse país? Porque pros povos indígenas, não é… E, hoje, é muito mais evidente que o Estado brasileiro está de costas para os povos indígenas”.

A seguir, assista ao vídeo produzido pela Mongabay Brasil e publicado antes das eleições, em 29/9/2022:


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*Este texto foi publicado originalmente no site do Mongabay Brasil, em 25/10/2022, e adaptado por Mônica Nunes para publicação aqui, no Conexão Planeta

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