Criado para dar destaque a meninas fortes – como são as personagens das histórias de Mauricio de Souza: Mônica, Magali, Milena… -, o projeto Donas da Rua da História, da Turma da Mônica, também divulga trajetórias ou feitos de mulheres inspiradoras.
Foi assim com a bióloga Neiva Guedes, a guardiã das araras-azuis no Pantanal. Também com as médicas brasileiras Ester Cerdeira Sabino e Jaqueline Goes de Jesus – que decifraram, em apenas 24 horas, o genoma do coronavírus, dois dias após o registro do primeiro caso da doença no país – e com a infectologista brasileira Ho Yeh Li, que comandou a operação de repatriação dos brasileiros que estavam em Wuhan, na China, primeiro epicentro da pandemia do coronavírus.
Essas homenagens aconteceram em fevereiro, março e maio de 2020, respectivamente.
Agora, é a vez da montanhista Aretha Duarte, figurar nessa galeria: em 23 de maio deste ano, ela se tornou a primeira mulher negra latino-americana a chegar ao ponto mais alto da Terra, o pico do Monte Everest, no Nepal. Ela também era a única mulher do grupo.
Com ela, foram quatro outros aventureiros brasileiros: Gabriel Tarso, Gustavo Ziller, Leonardo Silvério e Alex Cruz.
Sua conquista se deu 68 anos depois que o cume foi alcançado pela primeira vez por seres humanos – foram dois homens: o neozelandês Edmund Hillary e seu guia nepalês Tenzing Norgay -, em 1953. E 46 anos depois que a primeira mulher fez essa perigosa travessia: a japonesa Junko Tabei, em 1975.
Até o ano passado, apenas 25 brasileiros – sendo 5 mulheres – haviam conseguido chegar ao cume da montanha mais alta do mundo. Agora, são 6!
Desejo
A jornada rumo ao Everest começou um ano e meio antes de partir (inclua nesse período a quarentena obrigatório que teve que cumprir para viajar ao Nepal). Foi em dezembro de 2019, vendo fotos de expedições no Nepal que ela se encantou com a montanha mais alta do mundo.
“Vi o Vale do Silêncio, que está a 6.400 metros de altitude, achei impressionante e me arrepiei. Achei lindo e, naquele momento, quis estar lá e falei: ‘eu quero estar nesse lugar, eu posso estar nesse lugar’. E assim surgiu a vontade de, um dia, escalar o Everest”, contou ela ao Estadão e ao programa Fantástico.
Sem dinheiro, iniciou uma grande campanha no mês de março para captar recursos: precisava de R$ 400 mil para realizar a viagem dos sonhos.
Foco
Voltou a trabalhar como catadora de latinhas e outros materiais recicláveis, atividade que realizou durante a infância e a adolescência e juntou mais de 130 toneladas de resíduos!!!
Durante a coleta, Aretha encontrou cerca de 600 brinquedos usados, que foram higienizados e distribuídos para crianças da periferia de Campinas, onde mora, e mais de 1.200 livros, que doou para uma biblioteca comunitária da cidade.
Ela ainda criou uma campanha de arrecadação pela internet (crowdfunding) e também participou de um programa de TV (Caldeirão do Huck). E, quase na reta final, conseguiu a adesão de sete empresas que toparam patrociná-la. Acompanhei um pouco dessa fase pelo seu perfil no Instagram. Era emocionante ver seu entusiasmo.
Ao mesmo tempo, Aretha precisava treinar seis dias por semana para adquirir resistência e fôlego. E ainda trabalhava como instrutora de escalada, atividade que descobriu durante a faculdade de educação física e pela qual se apaixonou.
Foi assim… o professor levou os alunos a uma operadora de montanhismo, onde, depois, ela fez cursos de escalada em rocha. Participou de alguns eventos esportivos e, com o tempo, foi efetivada na empresa e começou a praticar escalada, trekking e a fazer expedições com regularidade.
Antes de chegar ao Everest, ela já conhecia outras montanhas famosas – para onde leva muita gente desde 2011 -, como o Monte Roraima, na Venezuela, o Monte Aconcágua, na Argentina (o mais alto, sem contar o Himalaia), que ela escalou cinco vezes, o Monte Kilimanjaro, na Tanzânia, que é o maior da África, o Elbrus, na Rússia, e o Pequeno Alpamayo, na Bolívia.
Até dezembro de 2019, Aretha não tinha interesse algum pelo Everest. “Achava que as pessoas queriam ir para lá para se autopromover. Em 2013, fui ao acampamento base, com mais de 5 mil metros de altitude”. E se contentou.
Pra chegar ao trecho mais perigoso da montanha, que inicia a chegada ao pico, chamado de ‘Zona da Morte’, existem mais três acampamentos: o primeiro, em 6.400 metros; o segundo, em 7.162 metros; e o terceiro, em 8 mil metros. No vídeo do programa Fantástico é possível acompanhar a subida e o momento em que ela mira os companheiros já no topo e vai!
Inspiração
Assim, às 10h24 pelo horário nepalês (eram 1h39 da madrugada no Brasil), de 23 de maio de 2021, Aretha finalmente venceu a última etapa, chegando ao pico, em 8.848 metros.
Ao Estadão, ela contou que a escalada do Everest é mais difícil em termos emocionais do que técnicos.
“É uma montanha extremamente especial, no sentido de ter facilitadores, como a fixação de cordas ao longo de toda a montanha. Então, tecnicamente, posso afirmar que não é o mais alto nível. No entanto, questões emocionais, físicas, relacionadas a estrutura, logística, lidar com outras pessoas, como os sherpas (guias locais do Nepal) ou os colegas de trabalho. Então, tem uma série de adversidades, especialmente para a mulher, com questões fisiológicas e bioquímicas envolvidas. Tem momentos que as mulheres são muito mais sensíveis e emotivas do que os homens”.
Aretha disse que, ao chegar no topo da montanha, ficou muito emocionada e se deu conta de que havia conquistado um outro patamar no montanhismo: “Caraca! Subi de nível!”, pensou naquele momento. Destacando que é difícil explicar tudo o que sentiu – “pois a emoção é forte”, ela contou que pensou muito sobre sua realização “e o quanto ela pode servir de inspiração para as pessoas”.
E destacou: “As mulheres negras não precisam ficar focadas só no sonho grande, mas no próximo passo, e, depois, no passo seguinte, e no outro, com constância e regularidade, até chegar ao objetivo grande. Todas as mulheres podem”.
À reportagem do Fantástico, ela declarou que, com seu feito, ela gostaria que as pessoas percebessem que têm “um poder interno gigante de realização e, qualquer um, independente das circunstâncias em que vive, onde mora, tem a capacidade de alcançar o seu Everest! Todo mundo pode! Não existe circunstância que proíba você de ter a sua grande realização!”.
Sonho
Aretha é movida por sonhos e desafios. Agora, seu objetivo é criar uma escola de escalada para jovens da periferia de Campinas. Ela quer popularizar o esporte que a encanta e ajudou a transformar sua vida, e que estreou, este ano, nas Olimpíadas de Tóquio. E também foi incluído nos Jogos Olímpicos de 2024, em Paris.
“Daí, eles podem passar a entender o que é esse esporte, as vertentes, as possibilidades de realização e, quem sabe, se tornarem talentos que nos representem nas Olimpíadas”, declarou ao Estadão.
Para ela, o mais importante é ajudar as pessoas que vivem na periferia a conquistarem uma vida mais digna e justa, por meio do esporte, compreendendo que possuem, dentro de si, toda a capacidade para se desenvolver. Mas claro que seu sonho é grandioso: em Campinas, seria o primeiro centro de escalada que poderia inspirar a construção de outros pelo país afora.
“Um centro de escalada pode ajudar nesse processo, não só em Campinas. Espero que seja um projeto piloto que se espalhe pelo Brasil. Nós precisamos encontrar líderes (comunitários) que aceitem a proposta e a implementação e, principalmente, que possam gerir esse projeto de escalada, com foco esportivo, intelectuale cognitivo”.
A primeira sementinha desse projeto já está plantada: enquanto ela catava latinhas para reciclagem, visando captar os recursos necessários para sua viagem ao Everest, foi instalada, em sua cidade, a primeira parede comunitária de escalada do país.
Pra conhecer melhor a garra e a determinação de Aretha Duarte, vale uma busca na internet. Foram diversas as reportagens escritas sobre ela quando conquistou a montanha mais alta do mundo. Destaco, aqui, as do Fantástico, do Estadão e a entrevista na revista Trip.
Foto (destaque): montagem com imagens de divulgação