Por Ailton Krenak, com pintura de Daiara Tukano*
A vida é selvagem. Esse é um elemento essencial para um pensamento que tem me provocado: como a ideia de que a vida é selvagem poderia incidir sobre a produção do pensamento urbanístico hoje?
É uma convocatória a uma rebelião do ponto de vista epistemológico, de colaborar com a produção de vida.
Quando falo que a vida é selvagem, quero chamar a atenção para uma potência de existir que tem uma poética esquecida, abandonada pelas escolas, formadoras de profissionais que perpetuam a lógica de que a civilização é urbana, de que tudo fora das cidades é bárbaro, primitivo – e que a gente pode tacar fogo.
Como atravessar o muro das cidades? Quais possíveis implicações poderiam existir entre comunidades humanas que vivem na floresta e as que estão enclausuradas nas metrópoles?
Pois se a gente conseguir fazer com que continuem existindo florestas no mundo, existirão comunidades dentro delas. Eu vi um número que a World Wide Fund for Nature (WWF) publicou em um relatório, dizendo que 1,4 bilhão de pessoas no mundo dependem da floresta, no sentido de ter uma economia ligada a ela. Não é a turma das madeireiras, não! É uma economia que supõe que os humanos que vivem ali precisam de floresta para viver.
A antropóloga Lux Vidal escreveu um trabalho muito importante sobre habitações indígenas, no qual relaciona materiais e conceitos que organizam a ideia de habitat equilibrado com o entorno, com a terra, o Sol, a Lua e as estrelas. Um habitat que está integrado ao cosmos, diferente desse implante que as cidades viraram no mundo.
Aí eu me pergunto: como fazer a floresta existir em nós, em nossas casas, em nossos quintais?
Podemos provocar o surgimento de uma experiência de florestania começando por contestar essa ordem urbana sanitária ao dizer: eu vou deixar o meu quintal cheio de mato, quero estudar a gramática dele.
Como eu acho no meio do mato um ipê, uma peroba rosa, um jacarandá? E se eu tivesse um buritizeiro no quintal?
Temos que parar com essa fúria de meter asfalto e cimento em cima de tudo.
Nossos córregos estão sem respirar, porque uma mentalidade de catacumba, agravada com a política do marco sanitário, acha que tem que meter uma placa de concreto em cima de qualquer riacho, como se fosse uma vergonha ter água correndo ali.
A sinuosidade do corpo dos rios é insuportável para a mente reta, concreta e ereta de quem planeja o urbano. Hoje, na maior parte do tempo, o planejamento urbano é feito contra a paisagem.
Como reconverter o tecido urbano industrial em tecido urbano natural, trazendo a natureza para o centro e transformando as cidades por dentro?
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*Ailton Krenak escreveu este artigo especialmente para a Amazônia Latitude, que o publicou em seu site em 13/12/2022 e depois o editou num booklet especial, disponível em PDF.
Ilustração: Daiara Tukano (“A redenção”, de 2022, acrílica sobre tela 1mx1m, exposição Nhe’ē Porã, Museu da Língua Portuguesa)