Uma vez ou outra na história surge alguém que não apenas sonha, mas que realmente muda o “status quo”, a maneira como as coisa vem sendo feitas tradicionalmente. Na área da moda, Yvon Chouinard é certamente uma dessas pessoas. Fundador da marca de roupas e artigos para atividades ao ar livre, a Patagonia, o americano sempre andou contra a corrente. Visionário, o empreendedor sabia que para sua empresa ser sustentável era preciso investir em seus funcionários e no meio ambiente.
Com a Patagonia, o americano adepto de esportes radicais (alpinismo e surfe), amante da natureza e filantropo, criou um modelo de negócios que hoje é considerado exemplo no mundo. Entre as muitas iniciativas lançadas pela marca, como o uso de algodão orgânico, ateliê de conserto das roupas nas lojas e creches para os filhos dos empregados, está ainda a destinação de 1% de suas vendas globais para instituições e organizações de conservação ambiental.
Mas hoje, aos 83 anos, Chouinard foi mais longe. E novamente surpreendeu o mundo empresarial. Anunciou nesta quinta-feira (15/09) que a partir de agora todos os lucros da Patagonia, cerca de US$ 100 milhões por ano, serão doados para uma organização não-governamental focada em combater a crise climática. A iniciativa é em conjunto com a família: a esposa Malinda e os filhos Claire e Fletcher.
A decisão foi divulgada na carta abaixo, que reproduzo na íntegra abaixo:
“A Terra é agora a nossa única acionista
Se tivermos alguma esperança de um planeta próspero – muito menos um negócio – será necessário que todos façamos o que pudermos com os recursos que temos.
Isto é o que podemos fazer.
Eu nunca quis ser um empresário. Comecei como artesão, fazendo equipamentos de escalada para meus amigos e para mim, depois entrei no segmento de vestuário. À medida que começamos a testemunhar a extensão do aquecimento global e da destruição ecológica, e nossa própria contribuição para isso, a Patagonia se comprometeu a usar a própria empresa para mudar a maneira como os negócios eram feitos. Se pudéssemos fazer a coisa certa enquanto ganhávamos o suficiente para pagar as contas, poderíamos influenciar os clientes e outros negócios e talvez mudar o sistema ao longo do caminho.
Começamos com nossos produtos, utilizando materiais que causavam menos danos ao meio ambiente. Doamos 1% das vendas a cada ano. Tornamo-nos uma Empresa B certificada e uma corporação beneficente da Califórnia, escrevendo nossos valores em nosso estatuto corporativo para que fossem preservados. Mais recentemente, em 2018, mudamos o propósito da empresa para: ‘Estamos no negócio para salvar nosso planeta natal’.
Embora estejamos fazendo o nosso melhor para lidar com a crise ambiental, isso não é suficiente. Precisávamos encontrar uma maneira de investir mais dinheiro no combate à crise, mantendo os valores da empresa intactos.
Uma opção era vender a Patagonia e doar todo o dinheiro. Mas não podíamos ter certeza de que um novo proprietário manteria nossos valores ou manteria nossa equipe de pessoas em todo o mundo empregadas.
Outro caminho seria tornar a empresa pública. Que desastre teria sido. Mesmo empresas públicas com boas intenções estão sob muita pressão para gerar ganhos de curto prazo em detrimento da vitalidade e responsabilidade de longo prazo.
Verdade seja dita, não havia boas opções disponíveis. Então, nós criamos o nosso.
Em vez de “ir a público”, podemos dizer que estamos “indo ao propósito”. Em vez de extrair valor da natureza e transformá-lo em riqueza para os investidores, usaremos a riqueza que a Patagonia cria para proteger a fonte de toda a riqueza.
Funciona assim: 100% do capital votante da empresa foi transferido para o Patagonia Purpose Trust, criado para proteger os valores da empresa; e 100% das ações sem direito a voto foram doadas ao Holdfast Collective, uma organização sem fins lucrativos dedicada a combater a crise ambiental e defender a natureza. O financiamento virá da Patagonia: a cada ano, o dinheiro que ganhamos após o reinvestimento no negócio será distribuído como dividendo para ajudar a combater a crise.
Já se passaram quase 50 anos desde que começamos nossa experiência em negócios responsáveis e estamos apenas começando. Se tivermos alguma esperança de um planeta próspero – muito menos um negócio próspero – daqui a 50 anos, todos nós teremos que fazer o que pudermos com os recursos que temos. Essa é mais uma forma que encontramos de fazer a nossa parte.
Apesar de sua imensidão, os recursos da Terra não são infinitos e está claro que ultrapassamos seus limites. Mas o planeta também é resiliente. Podemos salvá-lo se nos comprometermos com isso”.
Patagonia: um capitalismo em prol do meio ambiente
Yvon Chouinard é daquelas pessoas que arrancam risadas espontâneas daqueles que estão por perto. Sempre está contando histórias, seja sobre sua infância em meio à natureza no Maine ou Califórnia, ou suas aventuras pescando ou subindo montanhas.
Foi assim que surgiu a Patagonia. Várias vezes ele falou que no início da vida a única coisa que queria era ser um artesão. Sozinho começou a fabricar os equipamentos usados em suas escaladas num pequeno estúdio de ferragem instalada no galinheiro da casa dos pais. Logo os pinos e pregos de metal feitos para segurar as cordas se tornaram populares entre seus amigos e ele descobriu que poderia ganhar algum dinheiro, apenas o pouco o bastante, para continuar subindo e descendo montanhas, algo que tanto amava.
Alguns anos depois, quando enfrentava o rigoroso inverno da Escócia, na década de 70, decidiu usar uma camisa de rúgbi para que a gola grossa protegesse seu pescoço dos equipamentos pesados que carregava. Quando voltou aos Estados Unidos, a vestimenta improvisada chamou, mais uma vez, a atenção de conhecidos e foi aí que nasceu a “Chouinard Equipment”, que após uma viagem inesquecível à América do Sul, mudaria de nome e se transformaria na marca Patagonia.
Hoje a companhia com centenas de lojas em mais de dez países é avaliada em US$ 3 bilhões (cerca de R$ 15,5 bilhões).
Em entrevista exclusiva ao The New York Times, Chouinard revelou que “ficou muito, muito p…”, em 2017, quando seu nome apareceu na lista Forbes dos maiores bilionários do planeta. Para ele, aquilo representava que ele não tinha conseguido conquistar seu sonho de transformar o mundo num lugar melhor.
“Esperamos que isso influencie uma nova forma de capitalismo que não acabe com algumas poucas pessoas ricas e um monte de pessoas pobres. Vamos doar o máximo de dinheiro para aqueles que estão trabalhando ativamente para salvar este planeta”, disse ao NYT.
O novo fundo criado será administrado pela família e conselheiros próximos. Ao doar todo o dinheiro para a Patagonia Purpose Trust e o Holdfast Collective, os Chouinards pagaram impostos altíssimos de doação. Mas eles não estão preocupados com isso. Muito menos seu fundador.
Yvon Chouinard continua dirigindo um carro antigo, da marca Subaru, com uma prancha de surfe presa no teto.
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Foto de abertura: Jeremy Koreski/Patagonia