Era março de 2019 (Bolsonaro tinha acabado de assumir a presidência) quando um grupo de servidores da Funai saiu em uma mega e delicada expedição para contatar indígenas isolados na Terra Indígena do Vale do Javari, a oeste do estado do Amazonas, planejada há tempos. Até hoje, ela é considerada a maior expedição das últimas décadas na Amazônia, realizada pelo órgão.
Liderada pelo indigenista Bruno Pereira (na foto acima), um dos maiores especialistas em indígenas isolados ou de recente contato do país (assassinado em junho deste ano junto com o jornalista britânico Dom Phillips), sua missão era encontrar e estabelecer o contato com um grupo de indígenas isolados da etnia Korubo e promover seu reencontro com parte da família contactada pelos indigenistas poucos anos antes.
Isso, num território em que vivem grandes inimigos dos Korubo, os Matis. O clima tenso entre os dois povos se acirrou a partir de 2010, quando os Matis tentaram reocupar terras que ocupavam no passado, vizinhas dos Korubo, na região dos rios Branco e Coari. Em 2015, integrantes de uma família Korubo foram capturados pelos Matis devido a desentendimentos. Parte deles participou da expedição e retornou à família. Emocionante!
O mundo do outro na tela
É essa história que o cineasta Bruno Jorge conta em seu longa-metragem documental ‘A Invenção do Outro‘ (assista ao trailer no final deste post), o grande vencedor da 12ª Mostra Ecofalante de Cinema, em São Paulo, com o Prêmio do Júri na categoria Longa-Metragem da Competição Latino-Americana e o Prêmio do Público de Melhor Longa-Metragem do festival.
Anna Muylaert (diretora, produtora e roteirista), Helena Ignez (atriz e diretora) e Zienhe Castro (cineasta e produtora cultural), que formaram o júri da Competição na categoria longa-metragem, declararam que a obra de Bruno foi escolhida “pela precisão ética e estética na construção de um olhar que leva ao mesmo tempo ao mundo do outro e ao mundo esquecido de si”.
‘A Invenção do Outro’ recebeu o troféu Ecofalante e prêmio de R$ 15 mil.

Uma câmera na mão
Sem equipe, foi Bruno Jorge quem fez os registros desta vibrante jornada com equipamento limitado já que o grupo era grande e navegariam em barcos, levando mantimentos para passar muitos dias acampados.
Na volta da Amazônia, além da edição primorosa de todo o material colhido – realizada de forma primorosa pelo diretor -, Bruno contou com o talento de Bruno Palazzo para fazer a edição do som.
Imagine contar apenas com o microfone da própria câmara para registrar conversas de um grupo grande, em uma expedição tão importante, que se juntou a outro (os Korubo isolados, muito emocionados com o reencontro e curiosos), tendo ao fundo os sons da natureza rica, densa e úmida da floresta amazônica! Por isso, foi também mais que merecida a distinção com o prêmio Candango nesse quesito.

O longa é longo – tem 144 minutos ou quase 2 horas e meia -, mas não senti o tempo passar: ‘sequestrou’ minha atenção e todos os sentidos. Impossível não mergulhar naquele universo e na experiência de todo o grupo. Difícil voltar à realidade porque nos deslocamos do eu.
Isso foi muito bem explicado pelo diretor no 55º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro (FBCB), em novembro de 2022, no qual conquistou não só o prêmio de melhor filme pelo júri oficial – que o definiu como “uma experiência cinematográfica arrebatadora” -, como também os troféus Candango de melhor fotografia, melhor edição de som e melhor montagem (contamos aqui).
“Segundo a psicanálise, o nosso ‘eu’ não nasce pronto, ele é um processo de construção, que começa quando a gente nasce e começa a se identificar com os atributos do outro. Somos camadas de vários outros, que a gente vai tirando e, no final, não sobra nada. Quero agradecer ao júri por premiar um trabalho que tem um deslocamento do eu, da desterritorialização da autoimagem”, declarou Bruno Jorge na ocasião, e finalizou:
“Acho que o principal aprendizado dessa experiência foi que a gente não precisa se identificar com a gente mesmo para se identificar com o outro. Podemos partir de um outro lugar, do coletivo”.
Todos os premiados da Mostra
Prêmio do Público – Melhor Longa-Metragem
“A Invenção do Outro”, de Bruno Jorge
COMPETIÇÃO LATINO-AMERICANA
Prêmio do Júri – Melhor Longa-Metragem
“A Invenção do Outro”, de Bruno Jorge
Prêmio do Júri – Melhor Curta-Metragem
“Quem de Direito”, de Ana Galizia
Prêmio do Público – Melhor Longa-Metragem
“Exu e o Universo”, de Thiago Zanato
Prêmio do Público – Melhor Curta-Metragem
“A Febre da Mata”, de Takumã Kuikuro
“Paulo Galo: Mil faces de um homem leal”, de Iuri Salles e Felipe Larozza
Menção Honrosa do Júri – Longa-Metragem
“Vento na Fronteira”, de Laura Faerman e Marina Weis
“No Vazio do Ar”, de Priscilla Brasil
Menção Honrosa do Júri – Curta-Metragem
“Aribada”, de Simon(e) Jaikiriuma Paetau, Natalia Escobar & Zamanta Enevia
CONCURSO CURTA ECOFALANTE
Prêmio do Júri – Melhor Curta Ecofalante
“As Lavadeiras do Rio Acaraú Transformam a Embarcação em Nave de Condução”, de kulumym-açu
Prêmio do Público
“(D)elas – Mulheres Pretas e o Direito de Ocupar”, de Bruna Lazari Antonio
Menção Honrosa do Júri
“O Fundo do Ar É Cinza”, de Carolina Magalhães.
A seguir, assista ao trailer de ‘A Invenção do Outro’ – sobre a expedição mais importante realizada pela Funai com a liderança de Bruno Pereira – que já revela a profundidade da obra. Assim que o documentário entrar em circuito comercial, nós avisamos.
Fotos: divulgação