
Por Daniel Mello*
Um céu estrelado que só é possível ver em áreas distantes das luzes urbanas faz fundo ao balançar de um maracá, chocalho indígena. O ritmo do instrumento é acompanhado por cantos na língua Krahô sobre as cores das flores. É assim que começa A Flor do Buriti, filme premiado no Festival de Cannes, na França, e que estreia hoje (4) nos cinemas brasileiros.
“Quando o Hyjnõ sacode aquele maracá, como diz o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, “é um acelerador de partículas. Eu acho que a partir disso abrem-se muitas possibilidades”, reflete a codiretora Renée Nader Messora. A frase do renomado antropólogo foi dita para comparar o papel do xamanismo nas sociedades indígenas à ciência nas culturas ocidentais.
O maracá de Francisco Hyjnõ Krahô foi ouvido no Cinema Claude Debussy, onde ocorre, anualmente, um mais importantes festivais dedicados à sétima arte. Ali, o elenco, formado essencialmente por atores indígenas de comunidades Krahô do norte de Tocantins, foi premiado.
A Flor do Buriti foi filmado ao longo de 15 meses, se apoiando no trabalho de formação que os diretores João Salaviza e Renée Nader Messora desenvolveram nos territórios Krahô.

Foto: divulgação
“A gente começou primeiro a trabalhar com o audiovisual como ferramenta. A comunidade estava muito curiosa e querendo aprender cinema, fotografia, edição”, conta Renée sobre o processo que já teve como fruto o longa-metragem Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos, lançado em 2018.
A partir da formação, foi criado um coletivo de audiovisual na aldeia.
Massacre e milícia
No novo filme, os indígenas encenam dois momentos históricos marcantes para a comunidade: um massacre ocorrido em 1940 e o recrutamento dos jovens, em 1969, para integrarem uma milícia indígena formada pela ditadura militar, no poder à época.
As lembranças contextualizam a situação atual dos Krahô, que lutam por espaço na política e para livrar suas terras dos invasores: fazendeiros e traficantes de animais silvestres.
“O ponto de partida, a chispa inicial, foi essa vontade que a gente tinha de trazer a história do massacre. Era uma vontade desde o Chuva é Cantoria, que foi filmado em 2015 e 2016”, conta a diretora sobre como o projeto surgiu.
No meio do caminho, as batalhas cotidianas da comunidade foram trazendo elementos para a construção do novo filme.
“Um pouco mais tarde, o Francisco Hyjnõ que é um outro protagonista do Flor do Buriti, estava muito envolvido num processo de roubo de terra em uma fronteira da área indígena. Ele já tinha feito a denúncia para a Funai, já tinha conseguido um drone para capturar imagens aéreas e utilizar essas imagens como prova, que terminaram também por entrar no nosso filme”, detalha Renné a respeito do processo de construção do longa.

Foto: divulgação
Narrativas
Com indígenas em parte da equipe de roteiro, o filme mistura visões de mundo e formas de contar histórias.
“O filme tenta abrir isso [outras maneiras de contar histórias], não tem mais um protagonista único, são vários protagonistas. E tem essa maneira de contar onde as temporalidades vão se misturando, vão tentando criar uma nova uma nova forma. Quanto mais a gente dialoga e passa tempo junto com a comunidade, mais essa forma de ver o mundo vai entrando na nossa forma de fazer filme”, conta a diretora ao relatar a imersão na cultura Krahô.
As narrativas indígenas podem parecer complexas para pessoas não habituadas, mas abrem mais possibilidades de acolher a pluralidade de pontos de vista. “Uma forma muito mais aberta, que contempla muitos olhares também. Às vezes, o mito está sendo contado a partir da perspectiva de uma pessoa humana, mas, por momentos, o mito passa a ser contado a partir da perspectiva de um animal. A pessoa que escuta e que não está muito treinada vai se perdendo nessa multiplicidade. Aqui a gente queria trazer um pouquinho dessa sensação”, finaliza.
* Este texto foi originalmente publicado no site da Agência Brasil em 3/7/2024
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Foto (destaque): divulgação