Por Felipe Medeiros*
Vídeo obtido com exclusividade pela agência Amazônia Real comprova: os garimpeiros estão voltando à Terra Indígena (TI) Yanomami. À luz do dia, as cenas revelam que máquinas do garimpo operam livremente, lançando litros de lama poluídos com mercúrio na floresta e no rio Couto Magalhães, ao lado da comunidade Paapiú. Tudo como era antes, quando por décadas eles atuaram destruindo a mata e matando o povo Yanomami.
Em janeiro deste ano, o governo Lula realizou uma megaoperação de ajuda humanitária na TI, prometendo acabar de vez com a atividade ilegal. Os invasores decidiram ignorá-lo.
Em 27 de outubro, a Hutukara Associação Yanomami (HAY) recebeu vídeo gravado por indígena. Por razões de segurança, a identidade dele será preservada. De forma corajosa, ele se aproxima dos garimpeiros para flagrar a ilegalidade. De cima do barranco, consegue mostrar um homem jorrando água de uma mangueira de alta pressão em direção à terra, que antes era um pedaço de floresta. Em seguida é possível ouvir vozes masculinas conversando em português.
“Eles estão destruindo os igarapés onde moramos. Eles [garimpeiros] voltou [voltaram] de novo. Estou pedindo denúncia urgente”, clama o Yanomami. “Quero limpar minha terra.” Nesta semana, o indígena enviou uma foto de onde a comunidade Paapiú retira água para beber. Ela está visivelmente insalubre.
Em janeiro, a imagem de uma indígena desnutrida foi o estopim para que o governo federal atendesse aos insistentes pedidos de socorro dos Yanomami. Sob pressão de líderes da etnia, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva se deslocou para Roraima, levando comitiva de ministros. E prometeu: “O que eu posso dizer para você é que não vai existir mais garimpo ilegal e eu sei da dificuldade de tirar o garimpo ilegal. Eu sei que já se tentou outras vezes tirar e eles voltam, mas nós vamos tirar”, declarou Lula à Amazônia Real.
Na ocasião, o presidente tinha acabado de presenciar centenas de Yanomami em tratamento na Casa de Saúde Indígena (Casai), acometidos por malária e desnutrição.
No mês seguinte, o cerco contra os garimpeiros se fechava por ar, terra e rios. O espaço aéreo foi fechado, com autorização para abater aeronaves não autorizadas, bases fluviais foram instaladas nos principais rios que dão acesso à TI Yanomami. Cabos de aço impediam, de fato, a travessia das voadeiras lotadas de invasores.
Lula também deu autonomia aos ministérios responsáveis pela proteção do meio ambiente e dos povos da floresta. Em Boa Vista, houve uma corrida contra o tempo para salvar vidas de crianças desnutridas.
Mas agora, nove meses depois, as aeronaves dos garimpeiros voltaram a circular, inclusive com novas ameaças. Um sobrevoo de helicóptero ocupado por garimpeiros na área dos indígenas isolados Moxihatëtëa – subgrupo dos Yanomami – foi postado nas redes sociais no início desta semana.
O vídeo que viralizou mostra que não apenas os garimpeiros permanecem ou os que haviam saído voltaram. Sem medo de qualquer represália, eles fazem pouco caso dos indígenas e da própria atuação das autoridades públicas.
Enquanto filmam os isolados, os garimpeiros falam palavras de baixo calão e fazem piada sobre os indígenas “olha a flecha, olha a flecha, olha as flechas voando”, debocham. Outro dispara: “Para quem nunca viu, olha lá os canibal [sic]”. O vídeo passou a circular em outras redes, mas, até o momento, as autoridades do governo federal não se manifestaram.
O vídeo foi publicado originalmente em 13/11, em uma conta identificada como @gusta_192, no TikTok, com a legenda “Indios canibal em Roraima #amazonia” (sic). No mesmo dia, foi retirado do ar, mas foi salvo e republicado pela HAY, no Instagr. Assista a seguir:
O usuário do perfil tem outras publicações ao lado de helicóptero e pilotando aeronaves sobre a floresta amazônica. Em publicação de 6 de novembro é possível acompanhar Silvestre (como é identificado na rede social) decolando de um acampamento de garimpo.
O coordenador político de saúde indígena da HAY, Ênio Mayanawa, alerta que os Moxihatëtëa vivem em condição de isolamento voluntário e qualquer contato com não indígenas, que carregam vírus comuns em centros urbanos, pode exterminá-los em poucos dias.
“Como eles não estão vacinados, é fácil morrer de qualquer doença, gripe, malária, diarreia. Essa é nossa maior preocupação. Temos que respeitar eles”, diz a liderança, em entrevista à Amazônia Real.
As imagens do sobrevoo já foram entregues ao Ministério Público Federal, à Polícia Federal e ao Ministério dos Povos Indígenas, segundo a Hutukara.
“Eles nunca tiveram contato com os brancos. Eles têm medo de serem contaminados por enfermidades, por isso, ficam bravos, fazendo suas defesas para não pousar helicópteros”, explicou Ênio sobre a reação do Moxihatëtëma. Estima-se que cerca de 150 pessoas vivem na comunidade onde ocorreu o sobrevoo.
Para Júnior Hekurari Yanomami, coordenador do Conselho do Distrito Indígena de Saúde (Condisi-Y) e presidente da Associação Urihi, esta nova ação de garimpeiros prova que os direitos dos indígenas continuam sendo violados. “Os garimpeiros estão interessados nessa área. Se tiver contato pode ter confronto com flecha e espingarda, e vão levar muitas doenças”.
Outra prova de que os garimpeiros permanecem no território dos Yanomami é um vídeo divulgado também no início desta semana mostrando uma aeronave que sofreu uma queda na área do rio Mucajaí. “É o reflexo, do que estamos comunicando diariamente, que os invasores estão retornando para o território e que a morosidade da extrusão [retirada] de garimpeiros têm sujeitado a população à violência de criminosos”, disse em nota a HAY.
“Eles estão cheios de tecnologia na Terra Yanomami. Rápido, caiu um e vem outro”, contou Mayanawa. Para ele, os destroços da aeronave foram retirados pelos próprios garimpeiros em outro avião.
Pressão sobre os Moxihatëtëma
Nos últimos anos, os Moxihatëtëma passaram a viver pressionados por garimpeiros que exploram ouro ilegalmente na região da Serra da Estrutura. A atividade criminosa fica a poucos quilômetros das comunidades dos isolados. Até 2011, eles eram considerados extintos, mas foram identificados pela Funai em 2016, quando o órgão avistou um grupo.
Segundo Junior Hekurari Yanomami, a cerca de 10 quilômetros de onde vivem os indígenas isolados, há um garimpo ativo. “Voltaram de novo. Tem dois meses. Lá no Alto Catrimani [outra área] os Yanomami nos avisaram”, contou Júnior.
“É necessário monitoramento de segurança e saúde permanente na Terra Indígena Yanomami. Tem várias operações provisórias e não tem um plano permanente. Estamos pedindo que o governo faça”.
O líder da HAY, Ênio Mayanawa, alerta que voltou a aumentar a presença de garimpeiros. “A gente quer operação grande, envolvendo os Yanomami que sabem o caminho onde ficam os garimpeiros. O Exército andando sozinho e [FAB] sobrevoando não vão conseguir. Eles são espertos, fugindo, se escondendo. Só quebrando o material deles, eles consertam e voltam de novo, no mesmo lugar”.
Hutukara aponta falta de diálogo
Nove meses após o início de uma força tarefa do governo federal para acabar com o garimpo ilegal, os Yanomami criticam a falta de diálogo para combatê-lo de uma forma mais incisiva. Eles contam que as lideranças precisam ser ouvidas. “É chato. Falta sentar com os Yanomami e trabalhar juntos. Vamos esperar o que vai ser feito depois desse sobrevoo em Moxihatëtëma”, reclamou Ênio.
Segundo a liderança, se a Base de Proteção Etnoambiental (Bape) da Serra da Estrutura estivesse ativa, os isolados não estariam em risco. Na gestão de Bolsonaro, o local era usado livremente por garimpeiros. No governo Lula, o controle foi retomado, mas segue desativado. O Ministério dos Povos Indígenas foi questionado pela reportagem pelo abandono da Bape, mas ainda aguarda respostas.
Mayanawa alerta que o garimpo nas comunidades de Paapiú, Xitei, Homoxi e áreas na fronteira com a Venezuela, como Waikás e Aracaçá – essas associadas ao crime organizado internacional – permanece ativo e os preocupa. Mesmo com a presença das autoridades federais, inclusive forças policiais, o garimpo, na prática, não cessou.
“Tem que construir posto de fiscalização e aí vai trabalhar junto com os jovens Yanomami fiscalizando, talvez diminua invasões”, afirma o líder da HAY
“Foi no início de agosto que retornou tudo de novo, que a gente vem monitorando: meses de agosto, setembro e outubro. Que entrou [garimpeiros] no Parima, Missão Catrimani, Catrimani 1. A gente não tem o número correto, mas o movimento de helicópteros aumentou muito”, destaca Junior Hekurari.
Em agosto, as entidades HAY, SEDUUME e Urihi divulgaram relatório informando que o garimpo continuava ativo. O documento pedia estratégias construídas com o apoio dos Yanomami.
Mesmo com uma série de ações para combater o garimpo, as autoridades do governo federal sempre encontraram resistência dos garimpeiros. A classe política estadual a todo momento mostrou estar do lado dos garimpeiros, o que dificultou ainda mais o trabalho de desintrusão. Com a fiscalização intensa, o garimpo reduziu na TI Yanomami, mas nunca chegou ao fim.
Para fugir da fiscalização, garimpeiros se escondiam durante o dia e garimpavam a noite, como denunciado com exclusividade pela Amazônia Real.
A agência procurou também a Força Aérea Brasileira para comentar a notícia, mas os órgãos não responderam. Apenas a PF respondeu de forma protocolar que “não fornece informações ou detalhes acerca de eventuais investigações em andamento”.
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* Este texto foi publicado originalmente no site da agência Amazônia Real em 16/11/2023
Foto (destaque): Chico Batata/Greenpeace (esta foto foi escolhida para ilustrar o texto, mas é de 2021; não há fotos de qualidade das recentes invasões)