Chico Buarque é compositor, cantor, escritor e dramaturgo. Um dos maiores nomes da cultura brasileira. Criou e cantou clássicos da música nacional, que até hoje, reverberam por diferentes gerações.
“Por mais que eu leia e fale de literatura, por mais que eu publique romances e contos, por mais que eu receba prêmios literários, faço gosto de ser reconhecido no Brasil como compositor popular”, disse ele ontem (24/04) ao receber, em Lisboa, o Prêmio Camões, o mais importante da literatura da língua portuguesa.
O reconhecimento foi dado a Chico em 2019, mas o ex-presidente Jair Bolsonaro se negou a assinar os documentos necessários para a entrega do prêmio. Na cerimônia em Portugal, Chico recebeu finalmente, com quatro anos de atraso, a homenagem, das mãos do agora presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
“Hoje, porém nessa tarde de celebração, reconforta-me lembrar que o ex-presidente teve a rara fineza de não sujar o diploma do meu Prêmio Camões, deixando seu espaço em branco para assinatura do nosso presidente Lula”, disse Chico. “Recebo esse prêmio menos como uma honraria pessoal e mais como um desagravo a tantos autores e artistas brasileiros humilhados e ofendidos nesses últimos anos de estupidez e obscurantismo”, ressaltou.
Chico, hoje com 78 anos, lançou mais de 80 discos durante sua carreira. É de sua autoria obras-primas como “Cálice”, “Construção”, “Apesar de Você”, “A Banda”, “João e Maria” e “Vai Passar”. Muitas dessas canções foram compostas para fazer frente à ditadura militar que o Brasil enfrentou. Por diversas vezes sua obra foi premiada nacional e internacionalmente, tendo recebido vários Grammys Latinos.
Filho do historiador e jornalista Sérgio Buarque de Hollanda e da pintora e pianista Maria Amélia Cesário Alvim, Chico escreveu seu primeiro conto aos 18 anos. Mas só foi mais tarde, na década de 90, que sua verve literária se tornou conhecida pelo grande público, com a publicação do livro “Estorvo”, vencedor do Prêmio Jabuti como Melhor Romance. Depois disso, lançou ainda “Benjamim”, e em 2004, “Budapeste”, que ganhou o Jabuti como Melhor Livro do Ano. Desde então escreveu ainda outras quatro obras.
Em seu discurso, Chico lembrou da relação com o pai, mencionou a história familiar e da miscigenação do povo brasileiro e dos últimos quatro sombrios anos que o Brasil viveu.
Abaixo, na íntegra, a fala de Chico:
“Ao receber esse Prêmio eu penso no meu pai, o historiador e sociólogo Sérgio Buarque de Hollanda, de quem herdei alguns livros e o amor pela língua portuguesa. Relembro quantas vezes interrompi seus estudos para lhe submeter meus escritos juvenis, que ele julgava sem complacência e sem excessiva severidade, para em seguida me indicar leituras que poderiam me valer numa eventual carreira literária.
Mais tarde, quando me bandeei para a música popular, não se aborreceu, longe disso, pois gostava de samba, tocava um pouco de piano e era amigo próximo de Vinicius de Moraes, para quem a palavra cantada talvez fosse simplesmente um jeito mais sensual de falar a nossa língua. Posso imaginar meu pai coruja ao me ver hoje aqui, se bem que, caso fosse possível nos encontrarmos neste salão, eu estaria na assistência e ele cá, no meu posto, a receber o prêmio Camões com muito mais propriedade.
Meu pai também contribuiu para minha formação política, ele que durante a ditadura do Estado Novo militou na esquerda democrática, futuro Partido Socialista Brasileiro. No fim dos anos 60 retirou-se da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo em solidariedade a colegas cassados pela ditadura militar. Mais para o fim da vida participou da fundação do Partido dos Trabalhadores, sem chegar a ver a restauração democrática do nosso país, nem muito menos pressupor que um dia cairemos num fosso, sob muitos aspectos, mais profundo.
O meu pai era paulista, meu avô pernambucano, meu bisavô mineiro e meu tataravô baiano. Tenho antepassados negros e indigenas, cujos nomes meus antepassados brancos trataram de suprimir da história familiar. Como a imensa maioria do povo prasileiro, trago nas veias o sangue do açoitado e do açoitador, o que ajuda a nos explicar um pouco.
Recuando no tempo, em busca das minhas origens, recentemente vim a saber que tive por decavós paternos o casal Shemtov ben Abraham, batizado como Diogo Pires, e Provida Fidalgo, oriundos da comunidade barcelense. A exemplo de tantos cristãos novos portugueses, sua prole exilou-se no nordeste brasileiro do século XVI. Assim, enquanto descendente de judeus sefarditas perseguidos pela inquisição, pode ser que algum dia, eu também alcance o direito à cidadania portuguesa a modo de reparação histórica.
Já morei fora do Brasil e não pretendo repetir a experiência, mas é sempre bom saber que tem uma porta entreaberta em Portugal, onde mais ou menos me sinto em casa e esmero-me nas colocações pronominais. Conheci Lisboa, Coimbra e Porto em 1966 ao lado de João Cabral de Melo Neto, quando aqui foi encenado seu poema “Morte e vida Severina” com músicas minhas. Ele, um poeta consagrado e eu um atrevido estudante de arquitetura.
O grande João Cabral, o primeiro brasileiro a receber o Prêmio Camões, sabidamente não gostava de música e nem sei se chegou a folhear algum livro meu.
Escrevi meu primeiro romance “Estorvo”; em 1990, e publicá-lo foi para mim como me arriscar novamente no escritório do meu pai em busca de sua aprovação. Contei dessa vez com padrinhos como Rubem Fonseca, Raduan Nassar e José Saramago, hoje meus colegas de Prêmio Camões. De vários autores aqui premiados, fui amigo de outros tantos de Brasil, Portugal, Angola, Moçambique, Cabo Verde… Sou leitor e admirador. Esqueci de citar antes o nosso grande Manuel Alegre, aqui presente, que também foi premiado com Camões.
Por mais que eu leia e fale de literatura, por mais que eu publique romances e contos, por mais que eu receba prêmios literários, faço gosto de ser reconhecido no Brasil como compositor popular, e em Portugal como o “gajo” que um dia pediu que lhe mandassem um cravo e um cheirinho de alecrim. Valeu a pena esperar por esta cerimônia marcada, não por acaso, para a véspera do dia em que os portugueses dessem a avenida Liberdade a festejar a revolução dos cravos.
Lá se vão quatro anos que meu prêmio foi anunciado e eu já me perguntava se não o haviam esquecido. Porque sabe-se: prêmios também são perecíveis, tem data de validade.
Quatro anos com uma pandemia no meio davam às vezes a impressão que um tempo bem mais longo havia transcorrido. No que se refere ao meu país, quatro anos de governo funesto duraram uma eternidade, porque foi um tempo em que o tempo parecia andar para trás. Aquele governo foi derrotado nas urnas mas nem por isso podemos nos distrair, pois a ameaça facista persiste, no Brasil e por toda parte. Hoje, porém nessa tarde de celebração, reconforta-me lembrar que o ex-presidente teve a rara fineza de não sujar o diploma do meu Prêmio Camões, deixando seu espaço em branco para assinatura do nosso presidente Lula.
Recebo esse prêmio menos como uma honraria pessoal e mais como um desagravo a tantos autores e artistas brasileiros humilhados e ofendidos nesses últimos anos de estupidez e obscurantismo. Muito obrigado”.
Leia também:
“Tempos de crise são também tempos de criatividade e afeto”, diz Chico Buarque em apoio à campanha nacional de solidariedade
Foto de abertura: Ricardo Stuckert/PR/Fotos Públicas