Em 7 de fevereiro é celebrado o Dia Nacional de Luta dos Povos Indígenas, mais uma data propícia para reflexões sobre a realidade dos indígenas no país e para resgatar o poema do multiartista Reynaldo Jardim (falecido em 2011), ‘O que se odeia no índio’, (que reproduzo no final deste post).
No entanto, devido ao movimento que os indígenas têm feito, nos últimos dois anos em especial, para não serem mais chamados de índios, o poema pode causar desconforto. A retirada desse termo do vocabulário nacional é uma forte reivindicação porque eles o consideram como resquício da invasão portuguesa e da colonização do país, portanto, do massacre que sofrem desde 1500. Além disso, se entendem como comunidade e não como indivíduos isolados.
Foi por isso que Joenia Wapichana, quando deputada federal, escreveu um projeto de lei reivindicando a alteração do Dia do Índio, celebrado em 19 de abril, para Dia dos Povos Indígenas. Obteve a aprovação depois de muita luta no Congresso Nacional, inclusive contra veto de Bolsonaro.
Ao justificar o projeto, na ocasião, ela disse que considerou “a particular contribuição dada pelos povos indígenas à diversidade cultural e à harmonia social e ecológica da humanidade. E, consideramos importante frisar que tal contribuição é ofertada pela coletividade e não pelo indivíduo isolado como remete a ideia do termo ‘índio’”.
E assim foi com o Ministério dos Povos Indígenas criado pelo presidente Lula, e a Funai, transferida do Ministério da Justiça para o novo órgão e rebatizada Fundação Nacional dos Povos Indígenas.
Gosto de pensar que, se Reynaldo Jardim estivesse vivo, talvez atendesse ao pedido desses povos e reescrevesse seu poema forte e tocante chamando-os de indígenas.
A data: homenagem e visibilidade
Criado em 2008, o Dia Nacional de Luta dos Povos Indígenas homenageia o líder guarani Sepé Tiaraju, morto em 7 de fevereiro de 1756 durante a histórica Batalha de Caiboaté, em São Gabriel, no Rio Grande do Sul.
O conflito foi resultado do Tratado de Madrid, que estabelecia novas fronteiras entre as colônias da Espanha e de Portugal, e determinou a expulsão de quem vivia na República Guarani, na região das Missões Jesuíticas (hoje: oeste do RS, norte da Argentina e o Paraguai). Sepé e cerca de 1.500 indígenas morreram lutando para proteger 30 mil pessoas de seu povo da remoção forçada pelo exército unificado dos dois reinos europeus.
Como seu corpo não foi encontrado, disseram que ele subiu aos céus, transformando-se em santo (influência da catequização dos jesuítas). Em 2017, o Vaticano autorizou o início do processo de canonização do guarani – o que o tornará o primeiro santo indígena da Igreja Católica -, que já passou pela fase em que foi admitido como venerável e está na fase da beatificação, que pode demorar alguns anos para ser concluída. Nesse período, a relação com os fiéis tem sido fortalecida, levando alguns a já o chamarem de São Sepé e até uma oração foi escrita em sua devoção.
Outro motivo para a criação da data foi o de dar maior visibilidade a esses povos e às suas pautas mais urgentes como a luta contra os invasores de seus territórios, como também sua homologação e demarcação. Muito propício celebrá-la também neste momento em que a crise humanitária e sanitária dos Yanomamis abala o país e consterna o mundo.
À frente do Ministério da Justiça, no governo Bolsonaro, Sérgio Moro (agora, inacreditavelmente, senador) interrompeu processos de demarcação e homologação em curso. Utilizou-se do precedente 001/2017 para devolver, pelo menos, 17 processos de demarcação para a Funai. A medida, que ignorou totalmente a Constituição Federal, ainda prejudicou a homologação de cinco terras e outras 12 que aguardavam portaria.
Indígenas no poder
Há muito por fazer, sim, mas é imprescindível celebrar este 7 de fevereiro de 2023, porque é o primeiro em que temos um governo que reconhece que O Brasil é Terra Indígena e a importância desses povos para a identidade do país.
É a primeira vez, também, que os indígenas ocupam cargos de poder no governo. Este ano, como havia prometido durante sua campanha, o presidente Lula criou o Ministério dos Povos Indígenas e escolheu a líder e deputada federal eleita Sonia Guajajara para presidi-lo.
“Não é mais possível convivermos com povos indígenas submetidos a toda sorte de males, como desnutrição infantil e de idosos, malária, violação de mulheres e meninas e altos índices de suicídio. Presidente Lula, arrisco dizer, sem exagero, que muitos povos indígenas vivem verdadeira crise humanitária em nosso país e agora estou aqui para trabalharmos juntos, para acabar com a normalização deste estado inconstitucional que se agravou nestes últimos anos”, disse ela em 11 de janeiro, dia de sua posse.
Ao mesmo tempo, como contei acima, a Funai foi transferida do Ministério da Justiça para o novo ministério, rebatizada como Fundação Nacional dos Povos Indígenas (não mais do índio, como determina a Medida Provisória 1154) e ganhou uma presidenta indígena.
Joenia Wapichana tomou posse na última sexta-feira (3), numa cerimônia histórica, marcada por rituais e danças tradicionais e a presença de líderes indígenas como o cacique kaiapó Raoni (foto mais abaixo), indigenistas e sociedade civil, no Memorial dos Povos Indígenas, em Brasília.x
Lá, prometeu reconstruir o órgão. “Esse é o primeiro passo que a gente tem de dar. Reorganizar a Funai. Fortalecer, buscar orçamento”, afirmou, destacando a falta de servidores públicos e do desafio de resgatar as ações judiciais em defesa dos povos indígenas que estão paradas no Judiciário.
“Todo esse caminho que percorremos até hoje para chegar aqui foi longo e muito sofrido. Muitas vidas se perderam e ainda estão se perdendo. Passamos anos de desmonte, de sucateamento, de desvalorização dos servidores públicos”.
Esta é a primeira vez, desde sua criação em 1967, que a Funai é liderada por uma representante legítima e uma mulher. E sua trajetória, que coleciona pioneirismos, a legitima como a escolha perfeita para o cargo.
Joenia foi a primeira advogada indígena, a primeira indígena a fazer uma defesa no Superior Tribunal Federal (no julgamento de homologação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima) e a primeira deputada federal indígena eleita, enfrentando o governo anti-indígena de Bolsonaro, de 2018 a 2022.
Lembro ainda que, hoje, há um indígena à frente da SESAI – Secretaria Especial de Saúde Indígena, Weibe Tapeba, que atua junto à ministra da saúde, Nísia Trindade.
Primeiros atos da Funai
Além da bonita celebração e das presenças ilustres, a cerimônia de posse da presidenta da Funai foi marcada pela assinatura de uma lista de atos importantes, que vão marcar sua história:
– a retomada dos grupos de trabalho para demarcação de seis territórios – Terra Indígena Jeju e Areal (PA), TI Tekoha Porã e TI Karugwá e Pyhaú (ambas em SP), TI Ka’aguy Poty (RS), TI Cambirela (SC), TI Passo Piraju/Nu Porã (MS) – e também para analisar a área reivindicada pelo povo Mukurin (MG);
– a constituição de novos GTs para trabalharem na demarcação da TI Aranã Índio e da TI Aranã Caboclo (ambas em MG) e para dar andamento à análise da área reivindicada pelas etnias Cassupá e Salamãi (RO);
– a criação do GT Yanomami para ações de enfrentamento da crise humanitária no âmbito da Funai; e
– a criação de portarias para restringir o acesso à TI Jacareuba/Katawixi (AM) e à TI Piripkura (MT). Nesta última, vivem os dois últimos sobreviventes desse povo, ameaçados pela pecuária: a terra foi a mais devastada do MT em 2020 (quando se deu o pico do desmatamento sob o governo Bolsonaro).
O que se odeia no índio
A seguir, o poema de Reynaldo Jardim que, em 2014, foi declamado por Maria Bethânia, pela primeira vez, durante o relançamento de sua biografia – Maria Bethânia: Guerreira Guerrilha (escrita por ele), no RJ (o livro está esgotado, mas é encontrado em sebos).
Em 19 de abril de 2020, a APIB – Articulação dos Povos Indígenas do Brasil produziu um vídeo com essa interpretação tocante de Bethânia para o poema de Jardim, como parte integrante do movimento Abril Vermelho e das mobilizações para proteção dos indígenas na pandemia e contra projetos racistas e genocidas do governo Bolsonaro, que poderiam ser aprovados no Congresso, como o PL 191 (propõe abrir as terras indígenas à exploração econômica) e a MP 910 (propõe a grilagem de áreas públicas).
Assista ao vídeo ao final do poema que, como destaquei no início deste post, mantém o termo índio, como no original:
“O que se odeia no índio
não é apenas o ocupado espaço.
O que se odeia no índio
é o puro animal que nele habita,
é a sua cor em bronze arquitetada.
A precisão com que a flecha voa e abate a caça,
o gesto largo com que abraça o rio;
o gosto de afagar as penas e tecer o cocar.
O que se odeia no índio
é o andar sem ruído, a presteza
segura de cada movimento, a eugenia
nítida do corpo erguido contra a luz do sol.
O que se odeia no índio é o sol.
A árvore se odeia no índio.
O rio se odeia no índio.
O corpo a corpo com a vida
se odeia no índio.
O que se odeia no índio
é a permanência da infância.
E a liberdade aberta
Se odeia no índio”.
Há de chegar o dia em que a palavra ‘índio’ não será mais pronunciada e os verbos dos versos de Jardim poderão ser conjugados no passado. A seguir, ouça Bethânia declamando este poema:
Foto: Renato Soares