A Amazônia é um dos maiores hotspots de biodiversidade do planeta. Na maior floresta tropical do mundo são encontrados um sem-número de espécies de plantas e animais. Muitos ainda completamente desconhecidos da ciência. É por isso, que todos os anos, em seus trabalhos de campo, pesquisadores se deparam com novas descobertas. E uma das mais recentes delas foi descrita em um artigo científico divulgado na publicação internacional Mycoscience: uma nova espécie de cogumelos bioluminescentes.
Na verdade, esses fungos já eram antigos conhecidos dos povos indígenas da região, que os chamavam de “brilhos da floresta”. Em 2017, a pesquisadora Noemia Ishikawa foi convidada para conhecê-los de perto. “Foi o meu amigo Aldevan Baniwa que me encorajou a ver os fungos bioluminescentes com meus próprios olhos na Floresta Amazônica em uma noite de lua nova. Eu já tinha visto cogumelos bioluminecentes no Japão, mas sempre foi em laboratórios. Há muito tempo queria ver na natureza, mas eu tenho muito medo de andar a noite no mato, entretanto, no dia estava junto com mais um amigo, o Takehide Ikeda, e ele queria muito ver. Então fomos os três. Quando ficamos no meio do mato, apagamos as lanternas e começamos a ver os brilhos das folhas colonizadas por fungos bioluminescentes: a emoção foi indescritível”, contou ela ao Conexão Planeta.
Ao voltar ao trabalho no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), Noemia relatou a observação a seus colegas. Um ano depois, em 2018, um grupo de pesquisadores foi então em busca do fungo para poder estudá-lo.
“A descoberta de um nova espécie é um processo que começa no encontrar dos cogumelos no campo, análise das características morfológicas, comparação com as espécies já descritas pela ciência para verificar se é diferente de todas do gênero, análise de das sequências de DNA com as já publicadas, entre outras ferramentas de análise. Determinando que é diferente de todas já publicadas nos trabalhos científicos com todos os critérios regidos pelo código de nomenclatura, aí se dá a descoberta. Após análises dos dados e investigação com o que já era descrito, constatei ser uma espécie nova luminecente de Mycena em 2019”, afirma Jadson Oliveira, o autor principal do artigo.
O brilho mágico do fungo durante a noite
O novo fungo, observado às margens do rio Cuieiras, que liga Manaus a Maués, no interior do Amazonas, recebeu o nome de Mycena cristinae.
Oliveira explica que espécies de Mycena bioluminescentes já foram encontradas e descritas na Mata Atlântica, no estado de São Paulo, entre os anos de 2000 e 2010. E outras luminescentes têm sido descritas e vistas, brilhando no escuro, em diversas florestas do mundo. “Há também um lapso entre descrever uma espécie e verificar se são bioluminescentes. Pois as coletas de cogumelos são geralmente feitas de dia quando não é possível verificar o brilho. E apenas à noite, sem luar, é possível perceber os fungos bioluminescentes”, ressalta.
Segundo ele, com isto, muitas espécies de cogumelos de Mycena foram já descritas para ciência sem observar se eram luminescentes* no escuro. “Para perceber que a Mycena cristianae era diferente de todas, precisamos comparar com as espécies luminescentes do sudeste do Brasil e do mundo, e também com todas as espécies próximas ou similares de Mycena já descritas, mesmo sem ter sido verificado a luminescência”.
O especialista explica que os cogumelos são estruturas de reprodução dos fungos, presentes em madeiras, no solo ou em folhas. No caso da nova espécie nova assim como tantas outras, elas são importantes na floresta para fazer a decomposição dos materiais mortos das plantas (folhas, gravetos, galhos, troncos) e outro materiais no chão ou acima dele. “Assim, os fungos reciclam nutrientes, liberando no solo, para serem assimilados por outros organismos. Então são fundamentais nos mecanismos de suporte das florestas. Sem eles, o ciclo de nutrientes seria criticamente afetado, levando a um colapso do ecossistema”.
Os cogumelos Mycena cristinae têm uma cor claro acinzentada no pé e marrom-oliva acinzentada no chapéu, que possui a superfície revestida por uma camada semelhante a de um recife de coral, por isto chamada de coraloide.
O novo cogumelo tem o chapéu em tom de marrom
Até o momento, o cogumelo bioluminescente só foi observado na região próxima ao rio Cuieiras. Novas buscas e coletas têm sido feitas em outras áreas da Amazônia para se descobrir qual é a sua área de distribuição.
Os pesquisadores do Inpa também não sabem dizer se a espécie é endêmica desse bioma ou do Brasil (se só existe em nosso país e em nenhum outro lugar do mundo). “É necessário maior esforço de coletas para ter dados para afirmar as fronteiras de sua distribuição”, diz o cientista.
Brilhos na floresta: livro e homenagens
Além da importante descoberta científica feita pelos pesquisadores brasileiros, o encontro do Mycena cristinae também se transformou em um livro. Logo após a primeira observação dos cogumelos, ainda em 2017, por Noemia Ishikawa ao lado de seus amigos, começou-se a elaboração da obra, contando a experiência.
“Na ciência, normalmente fazemos a pesquisa nos laboratórios e/ou nas expedições científicas, descobrimos algo diferente, publicamos em artigos científicos e só depois passamos a divulgar e popularizar este conhecimento. Com a descoberta do Mycena cristinae, o processo ocorreu de uma forma inversa da popularização”, diz ela.
O livro “Brilhos na Floresta”, que tem o download gratuito neste link, já foi traduzido para sete línguas indígenas (Nheengatú, Baniwa, Tukano, Huarpe, Avá Guarani, Kaingang e Yanonami) e quatro não indígenas (Inglês, Japonês, Espanhol e Francês).
A capa do livro, já traduzido para diversas línguas
Além disso, a descrição da nova espécie também é uma homenagem a dois integrantes da equipe que se foram: a professora Cristina Sayuri Maki, que teve um acidente vascular cerebral, ainda em 2017 – e por isso o fungo foi batizado de cristinae –, e Aldevan Baniwa, vítima da covid, em 2020.
“Levamos três anos até o artigo ser publicado em novembro. Por isso, esta publicação também é carregada de lutos e homenagens a estes dois amigos e lutas de toda equipe com suas perdas e dificuldades durante a pandemia”, destaca Noemia.
Os pesquisadores durante o trabalho de campo, na trilha noturna:
Jadson Oliveira, à esquerda, e Noemia Ishikawa, na direita
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*Dependendo da forma de estímulo envolvido na reação, a luminescência pode ser dividida em: quimioluminescência (estímulo químico), bioluminescência (estímulo bioquímico), termoluminescência (estímulo térmico), eletroluminescência (estímulo elétrico) e fotoluminescência (estímulo luminoso — compreende a fluorescência e fosforescência). Dentre estas, as mais estudadas e aplicadas cientificamente são a quimio e a bioluminescência.
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Fotos: reprodução Revista Mycoscience e arquivo pessoal