
O presidente Bolsonaro falou, hoje, na Cúpula de Líderes sobre o Clima, liderada pelo presidente Joe Biden e realizada virtualmente devido à pandemia. E não surpreendeu. Mentiu.
Mentiu diante de 40 chefes de Estado e do anfitrião – que iniciou o dia anunciando o compromisso de reduzir 50% das emissões do país até 2030. Mentiu para o mundo, como nas assembleias da ONU, realizadas no ano passado e em 2019. Debochou dos brasileiros.
Perda do protagonismo
“O Brasil sai da cúpula dos líderes como entrou: desacreditado”, comentou Marcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima, logo após o pronunciamento. “Bolsonaro passou metade de sua fala pedindo ao mundo dinheiro por conquistas ambientais anteriores, que seu governo tenta destruir desde o dia da posse”.
O presidente brasileiro iniciou sua fala lembrando que o país sempre teve “voz ativa na construção da agenda ambiental global“. Sim, é verdade! Graças à política ambiental dos governos anteriores (que não era uma maravilha, mas era protagonista), que ele rechaça sempre que tem oportunidade. E prometeu: “renovo, “hoje, essa credencial”. Com que credencial diz isso?
Destruição da fiscalização ambiental e desrespeito às leis
Bolsonaro se gabou ao dizer que “o Brasil está na vanguarda do enfrentamento ao aquecimento global” e que, “apesar das limitações orçamentárias”, manteve “o fortalecimento dos órgãos ambientais duplicando os recursos destinados as ações de fiscalização, mas é preciso fazer mais”.
Disse isto um dia depois que mais de 400 servidores do Ibama denunciaram que a fiscalização ambiental está paralisada devido às novas regras impostas pelo ministro Ricardo Salles. Nunca vivemos um cenário como esse no país! O governo trabalha diariamente para dificultar a fiscalização de crimes ambientais, contra a preservação do meio ambiente.
“O desmantelamento dos órgãos de fiscalização ambiental — desenvolvidos durante o processo de redemocratização —, aliado ao desrespeito às leis ambientais representam uma brecha democrática hoje no Brasil”, destaca James N. Green, Co-coordenador nacional da US Network for Democracy in Brazil (USNDB) ou, em tradução livre, Rede dos Estados Unidos para a Democracia no Brasil.
“O país reduziu o desmatamento em 80% de 2004 a 2012, devido a políticas de liderança governamental, fortalecimento do Ibama e ICMBio, respeito às leis ambientais e implementação de ações ousadas. Os problemas atuais do Brasil podem ser resolvidos, mas não sob o governo de Bolsonaro”, conclui.
Revolução nada verde
O presidente destacou ciência e inovação ao falar de “revolução verde“. Nesse momento, teve o desplante de dizer que o Brasil preserva mais de “80% do bioma amazônico” (a mata que ele tem deixado queimar desde 2019).
Bolsonaro tem feito uma revolução, sim! Mas para promover o caos e o conflito, tanto no campo, como na floresta e na ciência, que tanto nega e despreza.
Amazônia e os povos tradicionais
Destacou o desenvolvimento sustentável como forma de tirar a Amazônia dos “piores índices de desenvolvimento humano”, mas desde que assumiu a presidência, há mais de dois anos, não criou nenhum plano com esse objetivo. Seu ministro do meio ambiente fez de tudo para liquidar o Fundo Amazônia, que apoiava projetos dessa natureza realizados por integrantes dos povos que vivem na floresta.
E o “mantra” que entoa, sempre que fala do bioma, e que define sua visão de Amazônia foi repetido na Cúpula: “a região mais rica do país em recursos naturais“. Ele a vê apenas como potencial para exploração.
“É preciso que os grandes chefes de Estado entendam que a Amazônia é a casa de milhares de povos e comunidades tradicionais. Somente é possível cuidar da floresta reconhecendo e valorizando seus verdadeiros guardiões”, destaca Joaquim Belo, presidente do Conselho Nacional das Populações Extrativistas.
“A grande ignorância por parte do governo Bolsonaro é não reconhecer que a gestão da Floresta Amazônica não cabe somente ao governo, mas a todos os cidadãos e, principalmente, aos povos e comunidades tradicionais, que são partes dessa floresta e a mantêm viva e pulsante. Por isso, é que precisamos ser ouvidos e participar das discussões sobre o futuro da Amazônia”, sentencia.
O presidente citou “indígenas e comunidades tradicionais”, sem nenhum constrangimento, claro! Mas graças ao engajamento e ao espírito de luta destes povos, apoiados por ativistas e pela sociedade civil, o mundo sabe que ele mentiu.
A destruição de órgãos como a Funai, a tentativa de violar direitos por meio de decretos e instruções normativas, o apoio e o incentivo a invasores e a expulsão de comunidades de seus territórios em prol do desenvolvimento econômico são exemplos de sua conduta criminosa, disseminadas não só pela imprensa nacional, como também pela internacional.
“Bolsonaro não respeita seu próprio povo e nosso direito ao território. Sob seu governo, o reconhecimento de comunidades quilombolas caiu ao menor patamar da história”, ressalta Biko Rodrigues, articulador nacional da Conaq – Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas.
“Para nós, sua palavra não tem valor algum e a pandemia nos mostrou seu lado mais sombrio. Seu governo negou aos povos indígenas e comunidades quilombolas o acesso universal à água potável. Este é Bolsonaro e qualquer acordo com ele está fadado ao fracasso”.
Na semana passada, a pedido de Joe Biden, lideranças indígenas se encontraram com o embaixador americano, Todd Chapman, e – apesar da presença de indígenas cooptados pelo governo federal, enviados ao encontro pela Funai – reforçaram a importância de serem envolvidos em qualquer acordo que trate de Amazônia. Sonia Guajajara, coordenadora executiva da APIB – Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, explica:
“Sabemos que a retórica de Bolsonaro é uma mentira. O projeto de morte e destruição de Bolsonaro continua o mesmo: retirada de nossos direitos, legalização de crimes socioambientais e a descontinuidade das políticas de proteção à floresta amazônica. Até agora não houve sequer um diálogo desse governo com os povos indígenas para enfrentamento às invasões de nossas terras, por isso é legítimo o nosso pedido de um canal direto com o governo norte-americano para assuntos ligados à Amazônia brasileira“.
Me dá um dinheiro aí!
Por fim, Bolsonaro pediu apoio financeiro para aprofundar seus “compromissos ambiciosos” no combate às mudanças climáticas: “é fundamental poder contar com a ajuda de países, empresas, entidades e pessoas dispostas a atuar de maneira imediata, real e construtiva na solução desses problemas”.
Sobre um possível apoio dos EUA ao governo, Sonia Guajajara resumiu bem: “É fundamental que o presidente Joe Biden estabeleça um diálogo junto ao governo brasileiro com bases na garantia da preservação da vida e da biodiversidade do planeta em contraponto ao fortalecimento de políticas anti-indígenas”.
Quem quiser ler o discurso do presidente na íntegra, o reproduzimos a seguir.
O discurso, na íntegra
“Senhores Chefes de Estado e de Governo,
Senhoras e Senhores,
Agradeço o convite para participar dessa cúpula de líderes. Historicamente o Brasil é voz ativa na construção da agenda ambiental global. Renovo hoje essa credencial, respaldada tanto por nossas conquistas até aqui, quanto pelos compromissos que estamos prontos a assumir perante as gerações futuras.
Como detentor da maior biodiversidade do planeta, e potência agroambiental, o Brasil está na vanguarda do enfrentamento ao aquecimento global.
Ao discutirmos mudanças no clima, não podemos esquecer a causa maior do problema. A queima de combustíveis fósseis ao longo dos últimos dois séculos.
O Brasil participou com menos de 1% das emissões históricas de gases de efeito estufa. Mesmo sendo uma das maiores economias do mundo. No presente, respondemos por menos de 3% das emissões globais anuais. Contamos com uma das matrizes energéticas mais limpas com renovados investimentos em energia solar, eólica, hidráulica e biomassa.
Somos pioneiros na difusão de biocombustíveis renováveis, como etanol, fundamentais para a despoluição de nossos centros urbanos.
No campo, promovemos uma revolução verde a partir da ciência e inovação. Produzimos mais utilizando menos recursos, o que faz da nossa agricultura, uma das mais sustentáveis do planeta. Temos orgulho de conservar 84% de nosso bioma amazônico e 12% da água doce da Terra.
Como resultado, somente nos últimos 15 anos, evitamos a emissão de mais de 7,8 bilhões de toneladas de carbono na atmosfera.
À luz de nossas responsabilidades comuns, porém, diferenciadas, continuamos a colaborar com os esforços mundiais contra a mudança do clima.
Somos um dos poucos países em desenvolvimento a adotar e reafirmar uma NDC transversal e abrangente com metas absolutas de redução de emissões, inclusive, para 2025 de 37% e de 40% até 2030.
Coincidimos, senhor presidente, com o seu chamado ao estabelecimento de compromissos ambiciosos. Nesse sentido, determinei que nossa neutralidade climática seja alcançada até 2050, antecipando em 10 anos a sinalização anterior.
Entre as medidas necessárias para tanto destaco aqui o compromisso de eliminar o desmatamento ilegal até 2030, com a plena e pronta aplicação do nosso Código Florestal. Com isso, reduziremos em quase 50% nossas emissões até essa data.
Há que se reconhecer que será uma tarefa complexa. Medidas de comando e controle são parte da resposta. Apesar das limitações orçamentárias do governo, determinei o fortalecimento dos órgãos ambientais duplicando os recursos destinados as ações de fiscalização, mas é preciso fazer mais.
Devemos enfrentar o desafio de melhorar a vida dos mais de 23 milhões de brasileiros que vivem na Amazônia. Região mais rica do país em recursos naturais, mas que apresenta os piores índices de desenvolvimento humano.
A solução desse paradoxo amazônico é condição essencial para o desenvolvimento sustentável da região. Devemos aprimorar a governança da Terra. Bem como tornar realidade a bioeconomia, valorizando efetivamente a floresta e a biodiversidade.
Esse deve ser o esforço que contemple os interesses de todos os brasileiros, inclusive indígenas e comunidades tradicionais.
Diante da magnitude dos obstáculos, inclusive financeiros, é fundamental poder contar com a contribuição de países, empresas, entidades e pessoas dispostas a atuar de maneira imediata, real e construtiva na solução desses problemas.
Neste ano, a comunidade internacional terá oportunidade singular de cooperar com a construção de nosso futuro comum. A COP26 terá como uma de suas principais missões, a plena adoção dos mecanismos previstos nos artigos 5° e 6° do Acordo de Paris.
Os mercados de carbono são cruciais como fonte de recurso e investimentos para impulsionar a ação climática. Tanto na área florestal quanto em outros relevantes setores da economia como indústria, geração de energia e manejo de resíduos.
Da mesma forma é preciso haver justa remuneração pelos serviços ambientais prestados por nossos biomas ao planeta.
Como forma de reconhecer o caráter econômico das atividades de conservação. Estamos, reitero, abertos à cooperação internacional.
Senhoras e senhores, como todos reafirmamos em 92, no Rio de Janeiro, na conferência presidida pelo Brasil, o direito ao desenvolvimento deve ser exercido de tal forma que a resposta equitativamente e de forma sustentável às necessidades ambientais e de desenvolvimento das gerações presentes e futuras.
Com esse espírito de responsabilidade coletiva e destino comum, convido-os novamente a apoiar-nos nessa missão.
Contem com o Brasil, muito obrigado”.
Foto: Reprodução vídeo
Com depoimentos divulgados pelo Observatório do Clima