Por Izabel Santos*
Todos os dias, famílias de Sauim-de-coleira lutam pela sobrevivência em fragmentos florestais entre Manaus e os municípios de Rio Preto da Eva e Itacoatiara. Com a expansão das áreas urbanas, de ocupações humanas e de novas áreas para a agropecuária, uma das espécies mais ameaçadas de extinção é obrigada a se lançar no “mundo dos humanos”, que um dia também foi deles.
Essa é uma história da vida real, mas que ganhou agora uma versão on-line e interativa no livro infanto-juvenil Os sauins-de-coleira e a Planta do Céu.
A obra narra a aventura dos macacos Chiquinha, Chico, Chiquelle e Chicote para sobreviverem à expansão da Região Metropolitana de Manaus e à perda de seu habitat.
O sauim-de-coleira, cujo nome científico é Saguinus bicolor, é o primata-símbolo da capital do Amazonas.
Lançado em 11 de dezembro pelo Instituto Sauim–de-coleira, o livro tem 52 páginas coloridas e foi contemplado pelo edital Conexões Culturais, da Prefeitura de Manaus, através da ManausCult.
Além do livro tradicional, em texto escrito, os autores produziram uma versão em áudio-book. O material traz sons da cidade e dos animais, além de vocalizações do sauim-de-coleira.
A ideia do livro nasceu da experiência de cerca de dez anos de andanças dos biólogos Dayse Campista e Maurício Noronha por escolas e reuniões comunitárias no Amazonas lutando pela conservação do Saguinus bicolor.
Desde uma primeira versão da história, de 2015, eles perceberam que já havia surgido uma geração com potencial para “ser a guardiã do sauim-de-coleira”, lembra Dayse. “É uma obra literária que usa palavras e gírias comuns à cultura amazônica. A intenção é resgatar as tradições linguísticas regionais e fortalecer o senso de pertencimento e a responsabilidade com a conservação ambiental”, explica Maurício.
A trama do livro narra os problemas enfrentados pelo sauim de coleira como espécie. Ela é listada como Criticamente em Perigo (CR), a categoria de maior risco de extinção na lista da União Internacional para a Conservação da Natureza e dos Recursos Naturais (IUCN, na sigla em inglês).
“Tentamos mostrar para os leitores no livro que, devido à perda e fragmentação de habitat, o sauim se atira nesse mundo correndo perigo e acaba morrendo atropelado ou eletrocutado”, explica Dayse. “Com essa narrativa lúdica e divertida, a gente tenta sensibilizar o leitor informando sobre a situação de conservação do sauim e as maneiras para conservá-lo. Também chamamos a atenção para a importância da manutenção da floresta amazônica, que tem sido muito depreciada”, acrescenta Noronha.
Instituída em 2007, a Região Metropolitana de Manaus compreende 13 municípios do Amazonas, abrigando quase 3 milhões de habitantes. O sauim-de-coleira só é encontrado em uma área de 7,5 mil quilômetros quadrados, entre os municípios de Manaus, Rio Preto da Eva e Itacoatiara, até os limites entre os rios Cuieiras e Urubu, na direção das rodovias BR-174 e AM-010. E é em Manaus, a cidade mais desenvolvida e populosa com 2.219.580 pessoas, que oferece mais riscos ao primata.
O sauim de coleira vive encurralado pelo desmatamento, pela expansão urbana e pela competição com outra espécie de primata, o Saguinus midas. “Ele só existe aqui, em uma pequena área, é mascote oficial da capital e o Estado vai perder essa espécie por falta de ações efetivas para evitar a sua extinção? Precisamos agir enquanto é tempo, a proposta do livro é exatamente essa”, alerta Noronha.
Uma obra a oito mãos
O curitibano Rogério Borges, ilustrador da obra, conhece Manaus, mas nunca viu um sauim-de-coleira livre na natureza. Ele contou à reportagem da Amazônia Real que, por já estar familiarizado com a temática ambiental amazônica, o trabalho foi prazeroso.
“Estive em Manaus nos anos 1990, a convite de uma livraria e pude fazer alguns passeios. Ilustrar esse livro foi muito gratificante, porque pude usar os arquivos imagéticos que reuni para narrar visualmente o dinamismo que se desenvolve neste texto interessante e fluído”, afirma.
Borges é o responsável pelos desenhos da obra Contos do Tamoin, do indigenista Orlando Villas Boas. Nesse trabalho, pesquisou sobre as etnias indígenas e o meio ambiente. “Os nossos ambientes naturais e características geográficas sempre me inspiraram muito, porque são diversos os cenários. E a riqueza visual dos habitantes, humanos e animais é uma fonte constante de referência e me convida sempre para a criação”, diz.
O paulista Marcus Aurelius Pimenta, um dos co-autores do livro, destaca o caráter pedagógico de Os sauins-de-coleira e a Planta do Céu.
“O sauim-de-coleira pertence àquele lugar, é feliz naquele lugar e está integrado. Devemos respeitar o que é importante para ele, sem nos colocar em uma posição de superioridade”, afirma Pimenta. “A nossa cultura ainda tem muito desse viés de que somos superiores a outras espécies e que por isso podemos fazer o que quisermos. Esse livro é um chamado para que as pessoas entendam que todas as formas de vida merecem respeito”.
Marcus é jornalista, escritor, roteirista e autor de outros 24 livros para os públicos adulto e infantil, com destaque para Terra Papagalli , Chapeuzinhos Coloridos, Mundo Ripilica, Florestabilidade e Peixonautas.
Já Rogério é um reconhecido ilustrador laureado com os prêmios como Jabuti, Fundação Nacional do Livro Infantil e Associação Paulista de Críticos de Arte e da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). Trabalhou em grandes editoras e com os produtores da Vila Sésamo.
Dayse Campista e Maurício Noronha são fundadores e gestores do Instituto Sauim-de-coleira. Ela já publicou vários livros e cartilhas de conteúdo ambiental. Ele é coordenador da campanha Salve o Saium, autor de artigos científicos e livros sobre temas amazônicos.
Medidas urgentes para driblar a extinção
Pesquisadores, autoridades e a sociedade civil se uniram, com força desde 2010, para evitar que o pequeno primata desapareça. Um dos frutos dessa luta foi a criação do Corredor Ecológico do Sauim-de-coleira, que acabou se convertendo na Área de Proteção Ambiental (APA) Sauim-de-coleira de Manaus, concretizada em 2018.
O Ministério Público Federal no Amazonas (MPF-AM) acompanha a situação e já tornou a Prefeitura de Manaus alvo de uma Ação Civil Pública (ACP) e de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC).
De acordo com informações da Prefeitura de Manaus, a APA tem aproximadamente 1.050,37 hectares entre áreas de preservação permanente, áreas verdes e áreas particulares.
Os locais incluem o Parque Municipal do Mindu, o Corredor Ecológico Urbano do Igarapé do Mindu, o Parque Estadual Sumaúma e a Reserva Adolpho Ducke.
Os limites da APA se encontram com os igarapés do Geladinho e Goiabinha, e áreas verdes de loteamentos habitacionais como Cidade Nova, Loteamento Nascentes das Águas Claras, Parque das Garças, Renato Souza Pinto I e II, Ribeiro Júnior, Vila da Barra, Galileia, Nova Cidade, Vila Real, Riacho Doce II e III, Francisca Mendes I e II e Jardim Canarana.
“A criação da APA do Sauim-de-caleira de Manaus era uma medida necessária e possível. Temos diversos fragmentos florestais existentes na cidade desde a Reserva Ducke até a foz do Rio Negro. Essa área de proteção é uma figura maior e a mais ampla possível indicada pelo Grupo de Trabalho Interinstitucional, composto por diversos órgãos ambientais e representantes da sociedade civil”, explicou o procurador Leonardo de Faria Galiano, secretário-executivo da 4ª Câmara de Meio Ambiente e Patrimônio Cultural do MPF-AM.
De acordo com o procurador, desde 2017, as recomendações do MPF-AM vêm sendo cumpridas pelo Executivo Municipal. “A única pendência que existe é um serviço de dragagem de uma parte do Corredor Ecológico do Mindu. Houve postergação do início das obras por uma questão de preservação ambiental, pois trata-se de um serviço muito sensível que se não for bem executado, pode trazer prejuízos”, informa. “Caso as ações não sejam executadas, a Prefeitura pode ser punida por descumprimento da TAC.”
O próximo passo na luta pela preservação do saium-de-coleira é a criação de um plano de manejo sustentável que possibilite a coexistência de ocupações urbanas e áreas verdes. “Agora é necessário um aprofundamento da criação da APA do Sauim-de-coleira de Manaus com o plano de manejo. Estamos acompanhando e cobrando do município uma previsão orçamentária para 2021 sobre essa medida para viabilizar as ações concretas”, diz Galiano.
Criação da APA estadual, sem previsão
Além da APA municipal em Manaus, o Sauim-de-coleira também pode ganhar uma Unidade de Conservação estadual, a APA do Sauim–de-coleira. A área deve ter 211.264,93 hectares entre os municípios de Rio Preto da Eva e Itacoatiara, com limites no médio e baixo interflúvio das bacias do rio Preto da Eva e rio Urubu, afluentes da margem esquerda do rio Amazonas.
O encaminhamento da documentação foi iniciado em novembro de 2017, e incluiu abaixo-assinados e moções de apoio de 12 instituições científicas. Em janeiro de 2018, foi constituído um grupo técnico de trabalho. Os trâmites para a criação, contudo, foram paralisados por causa da pandemia de Covid-19 e o ano eleitoral.
A Sema informou à reportagem que retomará as tratativas a respeito da implementação da Unidade de Conservação em 2021. Serão propostas consultas públicas.
A criação da APA Sauim-de-coleira está de acordo com as estratégias previstas no Plano de Ação Nacional para a Conservação do Sauim-de-coleira, do Ministério do Meio Ambiente, que prevê a inserção de pelo menos 30% da área de distribuição do animal em unidades de conservação.
As medidas de conservação são urgentes, pois desde 1980 estima-se uma redução acentuada das populações da espécie que perdem mais ou menos 250 quilômetros quadrados de habitat por ano. A redução de áreas também impacta a variabilidade genética das populações, que ficam presas nos mesmos locais por anos e se reproduzindo entre si.
*Este texto foi publicado originalmente no site da Amazônia Real, em 21/12/2020. E foi revisado e editado por Mônica Nunes, do Conexão Planeta, para publicação neste site.
Foto (destaque): Mauricio Noronha