Em uma pesquisa realizada com 334 profissionais da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, uma das perguntas pedia aos entrevistados para dizerem quais eram os cenários de suas melhores memórias de infância. Entre as respostas, 28% mencionaram que era a rua em que cresceram brincando e encontrando os amigos.
A rua foi lembrada como um indicador de qualidade da infância. Por ser um ambiente calmo e seguro na época, as crianças brincavam com muita liberdade de taco, carrinho de rolimã, vôlei, entre outras brincadeiras que acontecem em espaços amplos. “Me lembro dos meus pés encardidos que suavam na correia das havaianas e soltavam aquela água preta no banho”, recordou um dos participantes. Coisa de outros tempos.
Difícil saber qual é a causa e qual é o efeito. Se foram as crianças que deixaram de frequentar a rua e, por isso, ela foi ocupada pelos carros, ou se é a rua que não consegue mais acolher as crianças e elas pararam de frequenta-la. O fato é que existe uma relação direta entre como se vive a infância e como são os espaços da cidade, como comprova o estudo do Instituto de Ciência Social Aplicada (FIFAs), da Alemanha, sobre a qualidade dos espaços de ação da criança pela cidade.
Os horizontes da infância estão encolhendo cada vez mais nos centros urbanos: crianças criadas em ambientes fechados, pequenos, com pouco tempo livre e oportunidades de expressão. Precisamos resgatar a liberdade diária e a autonomia das crianças na cidade, ingredientes essenciais para uma infância saudável.
Olhar para o caminho que as crianças percorrem entre a casa e a escola é um bom jeito de começar. Muitas vezes, é o único recorte da cidade que as crianças usufruem durante a rotina semanal. Os caminhos podem ser concebidos de forma divertida e segura para as crianças. A publicação da campanha alemã Mais espaços livres para as crianças brincarem, um ganho para todos, realizada pelo Grupo de Trabalho em Segurança no Tráfego do Ministério da Construção, Habitação, Desenvolvimento Urbano e Transportes do Estado da Renânia do Norte-Vestfália, apresenta exemplos práticos e de baixo custo que visam devolver as ruas e os caminhos às crianças.
Este e outros estudos indicam que escolher a mobilidade ativa, sempre que possível, como transporte rotineiro das crianças, traz muitos benefícios. Minha filha mais nova sempre estudou ao lado de casa e, com isso, sempre foi à escola à pé. Ela cresceu e chegou o momento de mudar para uma escola mais distante. Ter que pegar carro ou transporte público para esse trajeto a entristecia muito. Ao longo do caminho, ora ela reclamava que brincava menos por ter que sair mais cedo de casa, ora ela caía no sono. Acordava mau humorada, chegava sonolenta, pouco disposta para os amigos e as professoras. Sinais suficientes para pensar em uma alternativa para levá-la à escola, que tomasse menos tempo e fosse mais divertida.
Foi quando tive a ideia de pegar emprestada, com a minha vizinha, sua bicicleta integrada. Esse equipamento permite que a criança pedale junto, mas sem autonomia de direção, o que garante a sua segurança. O que antes era chato e desafiador tornou-se a hora mais esperada e divertida do dia. O sono e as reclamações foram substituídos por boas conversas entre nós e trocas sobre a percepção do entorno. Um tempo de atenção exclusiva, tão importante para uma filha mais nova.
O trajeto começa no bairro da Urca e, ao chegarmos na mureta que contorna o mar, ela aponta se a água está suja ou não. Sempre se lamenta quando vê plásticos boiando. Um pouco mais adiante, passamos pela ponte onde estão os barcos dos pescadores, vemos a alegria dos meninos que pulam da ponte na água, felizes por sentir a velocidade no corpo e pelo refresco na hora mais quente do dia. Logo Lia anuncia: “Mamãe, agora é a minha hora favorita, pedala forte!”. Termina a frase já gargalhando na descida que nos leva em alta velocidade até o próximo cruzamento, na saída do bairro.
O trajeto segue pelo bairro de Botafogo, de trânsito intenso, ruas pouco arborizadas e calçadas estreitas. Em alguns trechos preciso escolher entre receber a reclamação de um pedestre ou pedalar entre um ônibus e a calçada. Lia também percebe o desconforto da falta de estrutura adequada e segura para nós, ciclistas, e curiosa me questiona por que não há ciclovias por toda cidade.
O muro branco do cemitério São João Batista é um ponto de referência no trajeto para ela. Ela cumprimenta um avô que não conheceu “Tchau, vovô!” e já sabe que a escola está perto.
Somos recebidas pelo Sr. Eliezer, o guarda da escola, com um sorriso no rosto, que a admira pela disposição de ir à escola de bicicleta em uma cidade nada acolhedora para ciclistas mirins. Ela chega animada, aberta para encontrar os amigos e para sua jornada escolar. Chega mais presente.
A bicicleta foi uma aposta para uma relação mais saudável entre nós, com a escola e com o entorno. Trouxe sentido ao nosso caminho, tempo de qualidade para nós duas, brincadeira para seu trajeto rotineiro, descobertas e intimidade com o bairro, melhoria no desempenho escolar, além de incentivo para outras famílias e da contribuição ao trânsito (um carro a menos!) e menos poluição para o ar.
Apesar de todos os benefícios, é uma escolha bastante corajosa pedalar com uma criança em uma cidade sem estrutura segura para ciclistas. Mas, aí, volto com a reflexão do início do artigo: se não ocuparmos as ruas com as nossas bicicletas, como vamos contribuir para que as cidades se tornem menos dos carros e mais das pessoas?
Precisamos criar demandas e torná-las visíveis. Vamos todos pedalar?
Foto: Arquivo Pessoal/Laís Fleury