O artista polonês Frans Krajcberg amou o Brasil como poucos. Brasileiros, inclusive. Foi um dos europeus – como Pierre Vergé e Margaret Mee – que adotaram nosso país como pátria. Amou e defendeu a natureza e os indígenas, seus povos originais, com sua arte. Se desesperou quando viu partes da floresta amazônica em chamas por causa das queimadas.
Usou restos e fragmentos de incêndios florestais para protestar: troncos de árvores mortas se transformaram pelas mãos deste arte-ativista ou artivista (como o artista Bené Fonteles denominou os artistas ativistas). Amou a Amazônia e, em 1978, fez uma viagem pelo Rio Negro com amigos – o artista Sepp Baendereck e o critico de arte Pierre Restany, que resultou na criação do Manifesto do Rio Negro ou Manifesto do Naturalismo Natural. Ah…, quem viaja por esse rio, não sai de lá igual.
No documentário de Regina Jehá – Frans Krajcberg: Manifesto – que será exibido em 27 de novembro, no Itaú Cultural, em São Paulo, estão memórias e reflexões de Krajcberg, que ignoram a cronologia. Estão as expedições à Amazônia, o ateliê Natura instalado num sitio ao sul da Bahia, sua militância ecológica e o amor que ele tinha pela natureza, pelos índios e pelas pessoas que encontrou por este país. Tudo revelado numa atmosfera intima e pessoal que só foi possível graças à longa amizade entre diretora e personagem e à grande admiração de Regina por Krajcberg.
Como diz o texto de apresentação do filme no site do Itaú Cultural, o documentário é “o retrato de um homem extraordinário, preso na história, engajado em sua arte e profundamente vivo para sempre”.
Exibição do documentário em São Paulo
Após a exibição do documentário (90 minutos) no Itaú Cultural, São Paulo, em 27/11, às 18h30, com a presença da diretora, o Manifesto será lido pela atriz e apresentadora Domingas Person, com debate (mais 90 minutos) que terá a participação de Bené Fonteles, artista visual, compositor, poeta, escritor, curador e coordenador do Movimento Artistas pela Natureza. que participou da 32a. Bienal, em 2016. Nela, sua linda Oca Tapera Terreiro ficou bem ao lado das obras de Krajcberg, no térreo.
O evento no Itaú Cultural é gratuito e terá interpretação em Libras. Basta chegar um pouco antes para retirar senha (sujeito a lotação).
Os três amigos e a viagem à Amazônia
Em 1978, Frans Krajcberg e seu amigo Sepp Baendereck decidiram viajar pela Amazônia, mais precisamente pelos rios. Escolheram a região do Alto Rio Negro e seus afluentes e convidaram o critico de arte Pierre Restany para acompanhá-los nessa viagem filosófica que durou 21 dias: de 17 de julho a 8 de agosto.
Tudo foi minuciosamente discutido, mas eles sabiam que encontrariam um mundo muito misterioso e fascinante, que poderia alterar seus planos. Cada um registrou suas experiências pessoais. Os três trocaram ideias e impressões sobre tudo que viam, ouviam, sentiam.
A expedição foi inteiramente documentada por fotos e desenhos de Sepp, fotos e filmagens de Krajcberg e pelo diário pessoal de Restany. E, inspirado por tantas trocas, Restany escreveu o Manifesto do Rio Negro ou Manifesto do Naturalismo Integral, assinado pelos três. E ainda foi feito um documentário – Crônicas da Viagem ao Naturalismo Integral – gravado pelo cinegrafista André Palluch e montado pelo crítico de arte Olívio Tavares de Araújo. Mas o único registro que encontrei foi o vídeo que está no final deste post.
Agora, leia o texto do Manifesto na íntegra. Em seguida, assista ao teaser do documentário de Krajcberg, que será exibido no dia 27/11, em São Paulo. E ainda um trechinho do filme feito sobre a viagem à Amazônia.
Manifesto do Rio Negro ou Manifesto do Naturalismo Integral
A Amazônia constitui hoje, sobre o nosso planeta, o “último reservatório”, refúgio da natureza integral.
Que tipo de arte, qual sistema de linguagem pode suscitar uma tal ambiência – excepcional sob todos os pontos de vista, exorbitante em relação ao senso comum? Um naturalismo do tipo essencialista e fundamental, que se opõe ao realismo e à própria continuidade da tradição realista, do espirito realista, além da sucessão de seus estilos e de suas formas. O espirito do realismo em toda a historia da arte não é o espirito da pura constatação, o testemunho da disponibilidade afetiva. O espirito do realismo é a metáfora; o realismo é, na verdade, a metáfora do poder: poder religioso, poder do dinheiro na época da Renascença, em seguida poder politico, realismo burguês, realismo socialista, poder da sociedade de consumo com a pop-art.
O naturalismo não é metafórico. Não traduz nenhuma vontade de poder, mas sim um outro estado de sensibilidade, uma maior abertura de consciência. A tendência à objetividade do “constatado” traduz uma disciplina da percepção, uma plena disponibilidade para a mensagem direta e espontânea dos dados imediatos da consciência. Como no jornalismo, mas sendo este transferido ao domínio da sensibilidade pura, “o naturalismo é a informação sensível sobre a natureza”. Praticar esta disponibilidade ante o natural concedido é admitir a modéstia da percepção humana e suas próprias limitações, em relação a um todo que é um fim em si. Essa disciplina na conscientização de seus próprios limites é a qualidade primeira do bom repórter : é assim que ele pode transmitir aquilo que vê – “desnaturando” o menos possível os fatos.
O naturalismo assim concebido implica não somente maior disciplina da percepção, mas também maior na abertura humana. No final das contas a natureza é, e ela nos ultrapassa dentro da percepção de sua própria duração. Porém, no espaço-tempo da vida de um homem, a natureza é a medida de sua consciência e de sua sensibilidade.
O naturalismo integral é alérgico a todo tipo de poder ou de metáfora de poder. O único poder que ele reconhece é o, poder purificador e catártico da imaginação a serviço da sensibilidade, e jamais o poder abusivo da sociedade.
Este naturalismo é de ordem individual. A opção naturalista oposta à opção realista é fruto de uma escolha que engaja a totalidade da consciência individual. Essa opção não é somente critica, ela não se limite a exprimir o medo do homem frente ao perigo que corre a natureza pelo excesso de civilização industrial e a consciência planetária. Ela traduz o advento de um estado global da percepção, a passagem individual para a consciência planetária. Nos vivemos uma época de balanço dobrado. Ao final do século se junta o final do milênio, com todas as transferências de tabus e da paranóia coletiva que esta concorrência temporal implica – a começar pela transferência do medo do ano 1000 sobre o medo do ano 2000, o átomo no lugar da peste.
Vivemos, assim, uma época de balanço. Balanço do nosso passado aberto sobre nosso futuro. Nosso Primeiro Milênio deve anunciar o Segundo. Nossa civilização judaico-cristã deve preparar sua Segunda Renascença. A volta do idealismo em pleno século XX supermaterialista, a volta de interesse pela historia das religiões e a tradição do ocultismo, a procura cada vez maior por novas iconografias simbolistas: todos esses sintomas são conseqüência de um processo de desmaterialização do objeto, iniciado em 1966, e que é o fenômeno maior da historia da arte contemporânea no Ocidente.
Apôs séculos de “tirania do objeto” e seu clímax na apoteose da aventura do objeto como linguagem sintética da sociedade de consumo – a arte duvida de sua justificação material, ela se desmaterializa, se conceitua. Os andamentos conceituais da arte contemporânea só têm sentido se examinados através dessa ótica autocrítica. A arte é ela mesma colocada numa posição critica. Ela se questiona sobre sua imanência, sua necessidade, sua função.
O naturalismo integral é uma resposta. E justamente por sua virtude de integracionista, de generalização e extremismo da estrutura da percepção, ou seja, da planetarização da consciência, hoje ela se apresenta como uma opção aberta – um fio diretor dentro do caos da arte atual. Autocrítica, desmaterialização, tentação idealista, percursos subterrâneos simbolistas e ocultistas: essa aparente confusão se organizará talvez um dia, a partir da noção do naturalismo – expressão da consciência planetária.
Esta reestruturação perceptiva refere-se á uma real mudança e a desmaterialização do objeto de arte, sua interpretação idealista, a volta ao sentido oculto das coisas e sua simbologia constituem um conjunto de fenômenos que se inscrevem como um preâmbulo operacional à nossa Segunda Renascença – etapa necessária para uma mutação antropológica final.
Hoje, vivemos dois sentidos da natureza: aquele ancestral, do “concedido” planetário, e aquele moderno, do “adquirido” industrial e urbano. Pode-se optar por um ou outro, negar um em proveito do outro; o importante é que esses dois sentidos da natureza sejam vividos e assumidos na integridade de sua estrutura antológica, dentro da perspectiva de uma universalização da consciência perceptiva – o Eu abraçando o mundo, fazendo dele um uno, dentro de um acordo e uma harmonia da emoção assumida como a única realidade da linguagem humana.
O naturalismo como disciplina de pensamento e da consciência perceptiva é um programa ambicioso e exigente que ultrapassa de longe as balbuciantes perspectivas ecológicas de hoje. Trata-se de lutar muito mais contra a poluição subjetiva do que contra a poluição objetiva – a poluição dos sentidos e do cérebro contra aqueda do ar e da água.
Um contexto tão excepcional como o do Amazonas suscita a idéia de um retorno à natureza original. A natureza original deve ser exaltada como uma higiene da percepção e um oxigênio mental: um naturalismo integral, gigantesco catalisador e acelerador das nossas faculdades de sentir, pensar e agir.
Pierre Restany (1930-2003)
Alto Rio Negro, quinta-feira, 3 de agosto de 1978.
Na presença de Sepp Baendereck (1920-1988) e Frans Krajcberg (1921-2017)
A seguir, assista ao teaser do documentário de Regina Jehá e ao trecho do documentário da viagem à Amazônia:
https://vimeo.com/272243680
https://vimeo.com/274749871
Fotos: Divulgação