Marcelo Min era um ativista incansável. A foto do amigo Leonardo Wen, acima, ilustra bem sua personalidade. Estava sempre com a câmera na mão, mas nem sempre a serviço de um editor. Fotografar não era só sua profissão, era sua vida. Pelas ruas, nada que envolvesse injustiça, violência e impunidade passava despercebido por ele. Tinha um olhar felino.
“Ele era visceral, ousado. E não fotografava essas situações de longe, não! Fazia questão que o vissem”, conta a jornalista Luciana Benatti, esposa de Min. Queria criar mal estar e constrangimento a quem desrespeitava direitos de quem pouco ou nada tinha. E, assim, muitas vezes provocava um desfecho menos cruel para a situação.
Chegou a ter que prestar depoimento na delegacia por ser acusado por policiais de “facilitar a fuga” de crianças de rua – que eles tentavam algemar! -, ao distrair sua atenção. Genial.
Min fotografou para grandes jornais e revistas, cobrindo pautas diversas. Também era ótimo retratista. Mas registrar o cotidiano, denunciando injustiças era alimento para sua alma inquieta. Um trabalho pessoal, muito além do registro de uma imagem.
E claro que nada disso virava tema em grandes publicações. Por isso, ele contava essas histórias em seu blog, o Fotogarrafa. Acreditava que, se conseguisse tocar uma única pessoa com suas imagens e palavras, fazê-la se indignar e entender o que estava acontecendo, já tinha valido o esforço.
“Ele dizia que era preciso ‘contaminar’ as pessoas com a realidade, jogar sementes a partir de pequenas ações. Porque não adianta a gente pensar que só vale uma grande ação; as pequenas são muito efetivas”.
Foi com esse blog que ele conquistou a admiração da jornalista, em 2003, de quem se tornou amigo, parceiro e admirador. Só dois anos depois começaram a namorar. “Costumo dizer que conheci primeiro o fotógrafo e depois o homem. Tenho profunda admiração pelo trabalho do Marcelo”.
A primeira vez em que ouvi falar de Min foi logo após sua morte, em 27 de agosto de 2015, provocada por um AVC fulminante. Tenho muitos amigos fotógrafos e a notícia comoveu a todos nas redes sociais. Mas só me dei conta da dimensão do trabalho que o fotojornalista realizou quando tomei conhecimento da exposição Ahé – inaugurada em 28 de abril deste ano no espaço que leva seu nome – e, em seguida, li o texto amoroso que a jornalista Eliane Brum escreveu sobre o amigo: Rodopiando em Min. Foram parceiros de inúmeras reportagens, por anos, e tinham sintonia fina.
Ahé – que mostra a vida em Jaci Paraná (Rondônia), impactada pela construção da hidrelétrica de Jirau, no rio Madeira – é a segunda exposição do Acervo Marcelo Min, espaço que nasceu de uma homenagem sem grandes intenções.
Luciana já tinha decidido vender todos os equipamentos e entregar o imóvel onde estava instalado o escritório do marido. Mas, antes, ela e Marcello Vitorino, fotógrafo e superamigo de Min, decidiram montar uma exposição para homenageá-lo. “Queria reunir os amigos, promover uma conversa, relembrar bons momentos, me despedir daquelas paredes”, explica. E assim foi!
Com curadoria de Vitorino, eles montaram Velho Chico, exposição com 11 fotos (negativos coloridos e em preto e branco!) da primeira grande reportagem que Min fez com o jornalista Fábio Murakawa, a partir de duas viagens – em 1998 e em 2001 – da nascente à foz do rio.
Sertanejo atravessa o velho Chico assoreado com sua bicicleta nos braços. Foto de Marcelo Min da série “Velho Chico”
“Existe o lado afetivo em tudo que fiz, claro, mas esta decisão não é de uma viúva que decidiu homenagear o marido. Sempre soube do valor real do seu trabalho. Como disse, foi o fotógrafo que conheci primeiro, me encantei com seu olhar. E o acervo é uma forma de continuar em contato com seu trabalho, com o mundo da fotografia, com os amigos, com o fotojornalismo no qual Marcelo sempre acreditou e no qual eu acredito”.
Foto de Marcelo Min, da série e exposição Ahé
A fotografia de qualidade tem pouco espaço e valor no jornalismo de hoje. E Min e Luciana viram essa transformação acontecer. Nesse cenário, o trabalho autoral de Min foi ficando ainda mais evidente. Por isso, ganhar um espaço que o torne cada vez mais reconhecido e ajude a resgatar o valor desse tipo de trabalho – que tem ido parar nas paredes de amantes da fotografia e de colecionadores – é perfeito.
“Marcelo tinha um olhar para além da notícia, por isso suas imagens são atemporais. Estamos revisitando todo o seu arquivo – digital e de negativos – e adquirindo um know-how precioso de como zelar por um acervo como este e fazer essa imagens circularem – em sites, exposições e impressões fine art. E ele ajudou muito nisso, sem querer, porque era ultraorganizado, obcecado pela organização. Seu acervo estava impecável, o que também me ajudou a tomar a decisão de criar este Acervo”.
Com as exposições, Luciana também realiza um desejo antigo. Ela sempre incentivou Min a expor seu trabalho, mas ele dizia que isso ia ficar para mais tarde, para quando ficasse velho e não tivesse mais pernas para pular muro, subir em árvore, em telhado. Ele sabia que o fotojornalismo exige coragem, resistência física, tempo… E Luciana ainda revela:
“É bem possível que Marcelo não me deixasse fazer tudo que estou fazendo agora porque era muito centralizador, meticuloso. Durante um tempo, ele teve assistente para ajudar no trabalho de organização de seu acervo, mas não tinha jeito: depois, ele checava tudo pra ver se estava perfeito”.
A cidade pelas frestas
O blog Fotogarrafa não está mais no ar, mas o perfeccionismo de Min protegeu todo o conteúdo produzido por ele nos três anos em que o manteve atualizado. E graças a isso, Luciana e Vitorino já estão envolvidos em outro projeto bacana, sem data para ser lançado: um livro.
“Queremos disseminar tudo o que Marcelo fez no blog porque, lá, ele publicou suas ideias, tudo que não foi absorvido pela imprensa tradicional, mostrou seu olhar para a cidade de São Paulo, para os movimentos sociais, para as pessoas e as crianças. A série de imagens Meninos da República é um registro histórico incrível”, conta ela. “Como Vitorino descreveu outro dia, enquanto selecionávamos o material, Marcelo olhava a cidade pelas frestas. E queremos mostrar isso também”.
A foto abaixo é um exemplo, apesar de não ter sido publicada em seu blog. Foi feita na Cidade Tiradentes, numa visita da prefeita Marta Suplicy à região, que Min cobria para a Folha de São Paulo. Naquele dia, ele teve certeza de que tinha feito uma imagem especial, que o jornal não publicaria. Ela foi divulgada num blog de fotógrafos e ganhou um fã estrangeiro que morava no Rio de Janeiro e quis comprá-la. À ela Min deu o nome de Ventania e foi a única imagem que ele mandou imprimir. Por isso, ganhou espaço de destaque no acervo e no site.
Beleza e verdade
Luciana e Min fizeram diversos trabalhos juntos e, em dado momento, acalentaram o sonho de produzirem (e venderem) reportagens de caráter investigativo no centro de São Paulo. Isso aconteceu em 2015, quando montaram pequeno escritório no Edifício Esther, na Avenida Ipiranga. São dessa época muitas fotos de Min no centro da cidade, inclusive a série Meninos da República, feita no entorno desse prédio. Ele conversava e brincava com eles diariamente. Não demorou muito para perceberem que não seria tão fácil assim, mas procuraram continuar firmes em seu propósito e ativismo.
Com a vinda do primeiro filho (na foto abaixo com Luciana, logo após o nascimento, em foto de Marcelo Min) – Arthur, hoje está com nove anos -, descobriram outra vertente para sua intenção de disseminar boas ideias e práticas: o parto humanizado. A experiência os influenciou e eles acabaram se envolvendo com o tema a ponto de produzirem um livro com nove histórias lindas, entre elas, a sua: Parto com Amor, publicado pela Panda Books, em 2011.
Min fez fotos tão lindas, que, sem planejar, inaugurou um novo olhar para esse momento tão importante na vida de uma família. “Até então, o enfoque era no sofrimento ou na equipe médica”, explica Luciana. No livro, a parturiente é a protagonista e não importa se o parto foi em casa ou no hospital, o ambiente é sempre tranquilo e aconchegante.
A partir daí, as fotos de parto começaram a ganhar uma nova estética. “As imagens realmente ficaram lindas e valorizavam a mulher durante o trabalho de parto, com alegria, serenidade, intensidade e, também, dor. Depois do nascimento da criança, quando as grávidas viam as imagens, achavam graça porque não lembravam de ter visto Marcelo na sala, enquanto fotografava”.
Ele era assim, silencioso, em qualquer lugar. Respeitava o espaço e o momento de todos, por isso também conquistava respeito e admiração. Podia ser numa sala de parto ou no bar próximo a uma usina hidrelétrica, como aconteceu durante as gravações do documentário Jaci: sete pecados de uma obra amazônica (trailler, abaixo), da ONG Repórter Brasil, para o qual ele fez a direção de fotografia, trabalho que rendeu as imagens belíssimas da exposição Ahé.
A propósito, esse nome não foi escolhido à toa: significa ‘gente verdadeira’ na língua dos índios Karipuna, que viveram na região de Jaci-Paraná. Gente verdadeira, como Min. No texto de apresentação de Ahé, Vitorino descreveu bem o amigo: “Numa época em que o jornalismo lida de modo muito peculiar com a verdade, Marcelo Min deixa mais um recado sobre o que verdadeiramente interessa. A vida quis que sua primeira grande reportagem fosse no rio São Francisco e sua última, no rio Madeira. Como o rio, Min seguiu seu fluxo, independente de todo e qualquer obstáculo”.
Min só não está presente fisicamente. Suas belas e potentes imagens continuarão a inspirar quem nelas botar os olhos. Com o Acervo Marcelo Min, Luciana não só perpetua seu legado, como também abre espaço para cutucar talentos e ajudar a transformar o olhar da sociedade para a realidade por meio da fotografia autoral e visceral, que sempre espalha beleza e verdade.
A cada ano, uma nova exposição
As imagens que compõem as duas exposições estão à venda em séries limitadas (dez de cada), numeradas e assinadas, impressas em papel 100% algodão pelo Espaço Ophicina – parceiro de Luciana e do Acervo desde o início – com um supercontrole de qualidade, que pode incluir a montagem com materiais de PH neutro e proteção contra umidade. Assim, o talento de Min é preservado, em qualquer lugar do mundo onde esteja.
trailer do documentário “JACI, sete pecados de uma obra amazônica” from Repórter Brasil on Vimeo.
Emocionante, apaixonante, sensacional…
Parabéns Mônica, mais uma vez!!!
Obrigado por nos apresentar vida e obra deste lutador indômito, artista do fotojornalismo, “ativista incansável”.
Grande abraço.
José Walker.
Parabéns à Monica por este texto/homenagem, ao Marcelo Vitorino e à Luciana pelo preservar da memória. Conheci o Marcelo muito superficialmente, em alguns encontros de fotógrafo e eventos e sempre me pareceu uma pessoa simpática, atenciosa e carinhosa com todos.