A proposta de cortar 486 mil hectares da Floresta Nacional do Jamanxim (PA) para atender a ocupantes que, em sua imensa maioria, entraram na área protegida depois de sua criação é inédita na dimensão e no objetivo. Nunca uma área tão grande de uma unidade de conservação foi desprotegida pelo governo federal. E nunca antes isso aconteceu para benefício de grileiros.
Quem diz é o ecólogo Enrico Bernard, professor da Universidade Federal de Pernambuco. Ele analisou, juntamente com dois colegas, todos os 93 processos de alteração de limites de áreas protegidas no Brasil de 1981 até o final de 2012. Essas mexidas são conhecidas pelos ecólogos como PADDD, sigla em inglês para “redução, reclassificação ou desclassificação de áreas protegidas”. No período estudado, afetaram por redução ou desclassificação uma área de 5,3 milhões de hectares em todo o país.
A imensa maioria dos eventos aconteceu nos Estados, onde a extinção pura e simples de áreas protegidas tem sido possível a governadores com maioria na Assembleia – vide o que quase aconteceu em 2017 em Mato Grosso, quando o governo estadual tentou simplesmente revogar a criação do Parque Estadual Serra de Ricardo Franco, onde o ministro da Casa Civil, Eliseu Padilha (PMDB-RS), foi autuado por crime ambiental.
As áreas protegidas federais tiveram um primeiro surto de alteração em 2001, após a promulgação da Lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação, no ano anterior, que criou as categorias de UC existentes hoje. “A gente considera que isso foi positivo: um ajuste do sistema às novas categorias”, disse Bernard ao OC.
Um segundo surto foi iniciado em 2008, na Amazônia, para acomodar as usinas hidrelétricas do PAC, o finado Programa de Aceleração do Crescimento dos governos Lula e Dilma. Naquela época foi cortada a Floresta Nacional do Bom Futuro, em Rondônia, o que estimulou um movimento posterior de grileiros rumo ao Pará. Depois, o governo Dilma investiu sobre as unidades de conservação da bacia do Tapajós, para acomodar usinas que acabaram engavetadas – por enquanto.
Em nenhum desses casos a área reduzida chegou perto do que se pretende tirar do Jamanxim. A Bom Futuro, mais seriamente afetada, perdeu 182 mil hectares, menos da metade do proposto para a Flona paraense. Há duas exceções, mas que confirmam a regra: a Floresta Nacional do Jatuarana (AM), que perdeu quase 300 mil hectares em 2006 para um parque nacional, e a Floresta Nacional de Roraima, que tinha uma sobreposição de 2,5 milhões de hectares com a Terra Indígena Yanomami e foi corrigida em 2009. Nos dois casos, a mudança aumentou a proteção da floresta.
“Esta é a grande novidade das propostas de alteração que temos recentemente. Elas fogem completamente do padrão dos últimos 35, 36 anos. Porque até então a gente conseguia identificar o que estava por trás, mas a causa agora não é mais essa. A causa é política e de legalização de áreas invadidas”, disse Bernard.
Após o veto de Michel Temer à Medida Provisória 756, que retalhava a Flona do Jamanxim, o ministro do Meio Ambiente, Sarney Filho, declarou que o ICMBio teria a palavra final sobre a proposta de redução, a ser encaminhada ao Congresso “sem pressa” por um projeto de lei. O ICMBio, no entanto, já tem pronto um parecer concordando com a retirada dos 486 mil hectares, como revelou o site Oeco.
Leia a entrevista de Bernard ao Observatório do Clima, a seguir:
O sr. analisou todas as alterações de UCs desde a década de 1980. Isso cresceu em frequência, isso sempre aconteceu? Quão comum é para um governo mudar limite de unidade de conservação?
A gente fez uma pesquisa de 1981 até dezembro de 2012, que foi o primeiro governo Dilma. A partir de 1981, por quase 20 anos, praticamente não se mexeu em limite ou categoria de unidade de conservação no Brasil. Foram pequenas correções e às vezes eram para melhor: uma reserva biológica em Alagoas que não era reserva biológica e virou; Jericoacoara virando parque nacional.
Em 2001, a gente observa o primeiro pico de alteração, após a lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação. A gente considera que isso foi positivo: um ajuste do sistema às novas categorias. O negócio começa a mudar a partir da segunda metade dos anos 2000 e, radicalmente, a partir de 2008. Em 2008 a gente observa uma mudança total no padrão de alteração. Fomos buscar as causas e encontramos dez. Mas ficou claro que, de 2008 para a frente, o que estava mudando limite e categoria de UC no Brasil era geração e transmissão de energia elétrica.
Foi o auge do PAC
Foi a época das usinas do Madeira, de São Luiz do Tapajós. E há coisas interessantíssimas. Em 2007 a Empresa de Pesquisa Energética publica o Plano [Decenal] de Energia do Brasil 2020 e diz que para atender à demanda todos os grandes rios da Amazônia terão de ser barrados. Já no ano seguinte começa a haver essas alterações a acontecer coisas estranhas, como uma Medida Provisória do Lula que autoriza prospecção de energia elétrica dentro de UC. Mas alguém em sã consciência iria procurar potenciais hidrelétricos dentro de UC sabendo de antemão que não se pode construir usina dentro de UC? Já havia uma coisa orquestrada, cujo próximo passo seria mexer nessa questão da restrição. Agora o que a gente está observando é que a motivação mudou.
Como assim?
Não é mais energia elétrica. Não pode nem mesmo ser creditado ao agronegócio. Naquela época, quando não conseguíamos encontrar uma causa exata, chamávamos de driver [motivo] político. Porque não existia até então um driver para acomodar grilagem de terra. Agora tem o 11o driver: para acomodar grilagem de terra. Esta é a grande novidade das propostas de alteração que temos recentemente. Elas fogem completamente do padrão dos últimos 35, 36 anos. Porque até então a gente conseguia identificar o que estava por trás, mas a causa agora não é mais essa. A causa é política e de legalização de áreas invadidas.
Quando o sr. fala das novas propostas, está se referindo às Medidas Provisórias 756 e 758 ou teve coisa antes?
Começou antes. Essas duas foram as de maior vulto, mas houve outras tentativas recentes. Governos estaduais tentaram mexer. A 756 e a 758 chamaram atenção pela extensão.
Essa é a maior redução já proposta em Unidades de Conservação?
A questão é a seguinte: a Floresta Nacional de Roraima deixou de existir por sobreposição com a Terra Indígena Yanomâmi. Se você for seguir o critério técnico, fica claro que essa de Roraima foi a maior, porque foram mais de 2 milhões de hectares. Só que saiu de uma Floresta Nacional e continuou como Terra Indígena, ou seja, continua sendo área protegida. Neste caso do Jamanxim, sai de Unidade de Conservação para nada [para Área de Proteção Ambiental, categoria de UC que permite posse privada e desmatamento].
As oito reduções feitas pela presidente Dilma Rousseff no Tapajós não somaram essa extensão?
Não. O mais afetado no Tapajós foi o Parque Nacional da Amazônia. Vai entrar para a história como a maior clarividência que um chefe de Estado já teve. No licenciamento se faz o EIA, depois o Rima, depois as proposições seguintes. Ela, num lampejo, alterou o limite antes de ter avaliado o impacto. Claramente para evitar qualquer possibilidade de a sobreposição com o parque nacional levantar questionamento em relação ao EIA-Rima de São Luiz do Tapajós.
Qual foi o efeito dessas mudanças de limite sobre desmatamento? Pode-se argumentar que os limites vêm sendo alterados desde 2008 mas o desmatamento não subiu naquele período
Vamos por partes. Na nossa pesquisa deixamos claro que o Brasil perdeu o equivalente à área do Rio Grande do Norte em unidades de conservação. Isso é chocante, e isso foi concentrado principalmente ao longo dos últimos anos. “Ah, mas o Brasil criou outras unidades de conservação no mesmo período!” OK, mas também apagou do mapa uma área equivalente à do Rio Grande do Norte. Temos um estudo de 2016 que mostra que, quando você “desclassifica” uma área, o desmatamento vai lá pra cima.
Então, ao mexer com o limite, a primeira consequência que você tem é pico de desmatamento. Você ainda percebe que unidade de conservação e terra indígena ainda têm importância grande como ordenamento territorial. Claro que há casos de unidades invadidas e unidades que estão sendo desmatadas, mas no todo a proteção ainda freia o desmatamento. Quando você mexe no limite, você dá uma mensagem clara: “Pode vir”!
Claro que não podemos ser radicais e falar que a unidade nunca pode ter seus limites alterados. Deveria poder, porque existem casos que precisam ser corrigidos: casos onde houve erros de planejamento. Isso seria tranquilo se não estivéssemos no Brasil. O problema é o precedente. Se permite Jamanxim, pode ter certeza absoluta de que vai chover pedido de alteração de limite depois. É um precedente que não é exagero dizer que coloca em risco todo um sistema de áreas protegidas. Porque vai passar a ser bombardeado: mil hectares aqui, dez mil ali, cem mil acolá, e a somatória no final vai ser uma área significativa.
O ICMBio em 2009 deu um parecer sobre o Jamanxim falando que havia uma área de 35 mil hectares que poderia ser reduzida porque estava ocupada e já estava muito desmatada…
Para a maior parte das áreas você tem série histórica de imagens de satélite, dá para saber onde estava ocupado e onde não estava. Isso é um ponto. Há precedentes de unidades de conservação de áreas criadas e que passaram por desapropriação. Se o problema for ter gente dentro, há o recurso à desapropriação. Pode-se argumentar que não funcionou no caso de Minas Gerais, tem ação no STF dos ruralistas questionando, OK. Mas, legalmente, está previsto todo um rito de desapropriação.
A questão é: por que se está abrindo mão da área? É porque não tem dinheiro para indenizar? Porque quando foi criado já estava desmatado, e isso categoriza um erro? Se isso não ficar claro, de novo abre um precedente. Basta que esteja desmatado para desclassificar? Então, meu amigo, vai abrir a porteira. Vai abrir mão de 40% da Rebio [Reserva Biológica] Gurupi, no Maranhão, de milhares de hectares da Resex [Reserva Extrativista] Chico Mendes, no Acre, que estão com gado…
É preciso deixar claro qual é a razão de abrir mão. Se foi erro de criação, OK, mas, se foi desmatamento a posteriori, você está assinando um atestado de incompetência.
*Este texto foi publicado no site do Observatório do Clima em 30/6/2017
Fotos: Ibama/Flickr e retrato de Enrico Bernard, da UFPE/arquivo pessoal