*Por André Julião
A possibilidade de reduzir ou mesmo acabar com a fila de transplante de órgãos no Brasil pode se tornar uma realidade por meio do xenotransplante. Assim é chamado o transplante de órgãos entre duas espécies diferentes – nesse caso o Sus scrofa domesticus e o Homo sapiens, porco e homem.
“Os órgãos dos suínos são muito semelhantes aos de humanos, mas se fossem transplantados hoje seriam rejeitados. A ideia é modificá-los para que se tornem compatíveis com o organismo humano”, diz Mayana Zatz, professora do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP) e pesquisadora responsável pelo estudo.
Atualmente, porcos modificados para esse fim são criados em países como Alemanha e Estados Unidos, com resultados promissores de transplantes de seus órgãos em macacos.
Segundo a geneticista, que apresentou a pesquisa durante o evento FAPESP Week London, realizado recentemente na capital da Inglaterra, três genes que provocam a rejeição são bem conhecidos. Desativando-os por meio da técnica de edição gênica conhecida como Crispr-Cas9, é possível fazer com que o sistema imunológico humano não rejeite os órgãos.
O soro do sangue desses porcos será testado com o de pessoas que estão na fila de transplante de rim, a fim de verificar a presença de anticorpos que possam rejeitar os órgãos suínos na população brasileira.
As amostras fazem parte da soroteca do Laboratório de Imunologia do InCor, dirigido pelo médico Jorge Kalil, professor da Faculdade de Medicina da USP e um dos responsáveis pelo projeto. Atualmente, mais de mil amostras de soro de pacientes candidatos a transplante de rim que têm rejeição a qualquer rim humano compõem a soroteca.
O projeto é coordenado pelo professor Silvano Raia, da Faculdade de Medicina da USP. Ele foi o primeiro médico a realizar um transplante de fígado com doador cadáver na América Latina e o primeiro transplante com doador vivo no mundo.
Próximos passos
Simultaneamente, Kalil e a professora Maria Rita Passos-Bueno, do IB-USP e também pesquisadora do projeto, vão desenvolver novos protocolos de acompanhamento de futuros pacientes transplantados, a fim de monitorar no sangue o surgimento de anticorpos que possam causar rejeição.
O Brasil ocupa a segunda colocação em número absoluto de transplantes, atrás apenas dos Estados Unidos. No entanto, a fila de espera por órgãos ultrapassou 41 mil inscritos em 2016. O transplante de rim é o que apresenta a maior discrepância entre número de pacientes na fila de espera e procedimentos realizados: foram 5.592 transplantes para 24.914 inscritos. Em 2017, 1.716 pacientes morreram enquanto esperavam por um rim.
“Trata-se de desenvolver um produto de base biotecnológica nacional, cujo objetivo final será prover à população em fila de espera para transplantes uma alternativa terapêutica viável e definitiva, que pode encurtar o sofrimento do paciente e seus familiares”, disse Zatz à Agência FAPESP.
Hoje, mesmo transplantes entre humanos exigem que o transplantado tome medicamentos imunossupressores, alguns para o resto da vida, a fim de combater a rejeição. No caso dos que precisam de transplante de rim, há ainda um custo elevado em hemodiálise daqueles que esperam por um novo órgão.
A fase inicial do projeto tem duração prevista de três anos e prevê ainda compatibilizar aspectos éticos, religiosos e legais do xenotransplante, pela criação de uma cátedra sobre o assunto no Instituto de Estudos Avançados.
Fabricação de órgãos
Durante sua palestra, Zatz apresentou ainda os resultados mais recentes da criação de órgãos a partir de células-tronco. Como parte do trabalho de doutorado de Ernesto Goulart, de pós-doutorado de Luiz Caires e de Luciano Abreu Brito – todos com bolsa da FAPESP –, fígado e artéria hepática de ratos foram criados usando células-tronco de um mesmo animal.
A aorta e o fígado de ratos foram descelularizados, ou seja, foram removidas todas as células por ácidos especiais, restando apenas um suporte (scaffold) formado por colágeno. Células-tronco de humanos foram colocadas nesses suportes e se reprogramaram em células hepáticas e de aorta, criando novos órgãos.
Futuramente, essa pode ser uma solução para pessoas que precisam de transplante de órgãos. Por serem feitos com células do próprio paciente, estes não estariam sujeitos a rejeição pelo organismo.
“A partir de estudos de milhares de pessoas no mundo inteiro que têm doenças, comparando com pessoas saudáveis, podemos derivar o que chamamos de riscos poligênicos, que são as chances aumentadas de ter diabetes, problemas cardíacos, hipertensão, câncer, entre outras. Essas doenças dependem muitos dos genes, mas também do ambiente”, disse Zatz.A pesquisadora apresentou ainda o projeto 80+, que sequenciou o genoma de 1.324 pessoas com mais de 60 anos para entender como os que permanecem saudáveis depois dos 80, ou mesmo depois dos 100 anos de idade, diferem dos demais e quais desses fatores podem ser aplicados para a população como um todo. Atualmente existem cerca de 500 mil pessoas acima de 100 anos no mundo.
Zatz apresentou ainda outras possibilidades de uso da genética para um envelhecimento saudável, como a medicina P4 (preditiva, preventiva, personalizada e participativa). Por meio da análise do perfil genético do paciente, é possível saber quais doenças a pessoa pode vir a desenvolver. Com isso, pode-se preveni-las e mesmo participar do tratamento junto com o médico.
*A coordenação científica do projeto é do IB-USP, no âmbito do Centro de Pesquisa do Genoma Humano e Células-Tronco (CEGH-CEL), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPIDs) financiados pela FAPESP. As outras instituições associadas são o Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP e o Laboratório de Imunologia do Instituto do Coração (InCor).
O projeto é uma parceria da farmacêutica EMS e FAPESP, no âmbito do Programa de Apoio à Pesquisa em Parceria para Inovação Tecnológica (PITE).
*Texto publicado originalmente em 11/02/2019 no site da Agência Fapesp de Notícias
Ilustração: domínio público/pixabay
Se na época da Escravatura Negra no Brasil, a medicina já utilizasse a técnica de transplantes, seria considerado absolutamente normal que negros doassem seus órgãos para os brancos, porque o escravo era propriedade do seu senhor para servi-lo de todos os modos possíveis e imaginários, na condição de objeto legitimamente adquirido no intercâmbio de compra e venda. Porcos são objetos, certo? ERRADO. Hoje já nos horroriza o fato de algumas raças humanas submeterem outras à escravidão e, felizmente, muitos também estremecem diante da exploração dos animais, seja para qualquer finalidade, na condição de propriedade da espécie “superior” que os pode manipular e até brincar com eles, torturá-los e matá-los sob o aval da Lei. Entretanto, felizmente o Planeta evolui e terráqueos conscientes e racionais estão reconhecendo que é possível preservar a própria vida sem precisar matar outras, quando luzes de novas Áureas Leis se descortinam no horizonte para desvendar os olhos da justiça, às vezes míope. Mas afinal, dirão pesquisadores, eminentes cientistas e professores que tanto enaltecem a vida humana, nem sempre merecedora das medalhas e dos prêmios, em desfavor da de outras espécies, ainda não libertas. Afinal, dirão eles, porcos já estão morrendo mesmo para virar os “imprescindíveis” bacon, presunto e lingüiça, que diferença faz se vão morrer de qualquer maneira? Deveríamos aplaudir, certo? ERRADO. A tão adiantada Ciência contemporânea pode sim( porque estudou para saber), criar protótipos artificiais, perfeitamente adequados ao corpo humano na intenção de salva-lo. Existem maneiras de acabar com a fila de transplantes sim e cientistas podem, devem e precisam fazer isso sem ter que buscar a resposta nas tripas e no sangue dos animais, porque são sencientes, isto é, pensam, sentem e sofrem como qualquer doente humano que não esteja em coma ou anestesiado. No momento em que o Planeta se debruça sobre a forma ética de manipular fauna e flora, preservando-as, fica difícil aplaudir o contrário, ainda que meu filho dependa do coração do meu cão para continuar vivo ou que meu cão precise do coração do meu filho para não morrer.