Tecnologia que vem sendo cada vez mais considerada como “plano B” para salvar o planeta de um aquecimento global descontrolado pode ter efeitos colaterais para a biodioversidade piores que os do próprio aquecimento. O alarme foi soado nesta segunda-feira, 22/1, por uma equipe internacional de cientistas.
Eles afirmam que a injeção de aerossóis na estratosfera, que tem como objetivo resfriar o planeta ao rebater parte da luz do Sol de volta para o espaço, pode pôr em risco ecossistemas inteiros ao criar variações climáticas muito repentinas caso seja interrompida subitamente.
Essa abordagem é uma das mais promissoras da polêmica cesta de tecnologias conhecida como geoengenharia ou engenharia planetária, que parece cada vez mais necessária para manter o aquecimento global abaixo do nível considerado “perigoso” – os 2oC sacramentados no Acordo de Paris.
Como as trajetórias de emissão de gases-estufa da humanidade tornam a meta muito difícil de ser alcançada hoje, muita gente vem defendendo mais pesquisas em geoengenharia. Trata-se de uma espécie de saída de emergência, para ganhar tempo enquanto a humanidade não termina de fazer o que realmente precisa, que é descarbonizar a economia.
Entre as soluções de geoengenharia propostas estão fertilizar o mar da Antártida com ferro para aumentar o sequestro de carbono por algas; capturar CO2 do ar em usinas de biomassa; e lançar milhões de toneladas de enxofre na alta atmosfera usando balões, para simular o efeito de grandes erupções vulcânicas, que são capazes de resfriar o planeta por alguns anos.
O problema da geoengenharia é que, como todo remédio extremo, ela pode ter efeitos colaterais que matam o paciente. E ninguém ainda sabe muito bem que efeitos podem ser esses.
O grupo liderado pelo ecólogo Christopher Trisos, da Universidade de Maryland em Annapolis, resolveu investigar a segurança da injeção de aerossóis de enxofre para a biodiversidade. Para isso, testou com modelos climáticos de computador uma hipótese igualmente extrema: a de que a geoengenharia é iniciada subitamente, a partir de 2020, e interrompida também subitamente em 2070. Segundo os pesquisadores, essa hipótese é plausível, porque, diante da ausência de uma governança global da geoengenharia, um país pode começar a jogar enxofre na estratosfera por conta própria e interromper ao perceber efeitos climáticos regionais negativos no próprio território ou num país vizinho, por exemplo.
“É fácil imaginar cenários nos quais os países demandariam interrupção imediata”, disse ao OC o físico Alan Robock, da Universidade Rutgers (EUA), coautor do estudo e um dos maiores especialistas em geoengenharia do mundo. Um dos proponentes da tese do “inverno nuclear”, nos anos 1980, Robock compartilhou o Prêmio Nobel da Paz em 2017, como membro da ICAN (Campanha Internacional para Banir as Armas Nucleares).
Para estimar o efeito sobre a biodiversidade, Trisos, Robock e colegas lançaram mão de um parâmetro chamado “velocidade climática”. Grosso modo, trata-se da distância que espécies de um determinado ecossistema precisariam migrar em um ano para se manter na mesma temperatura.
Essa velocidade varia muito de ecossistema para ecossistema. Sua velocidade mediana global é de 3,7 quilômetros por ano em terra e 4,8 quilômetros por ano nos mares. Isso projetando o cenário de emissões que parece mais realista hoje, o chamado RCP 4.5. Nele, medidas como o Acordo de Paris conseguem evitar o aquecimento global mais extremo, mas mesmo assim o limite de 2oC é ultrapassado. Trisos diz que o grupo usou esse cenário porque “seria irresponsável fazer geoengenharia sem reduções de gases de efeito estufa”.
Com a adoção da geoengenharia a partir de 2020, as temperaturas globais cairiam num primeiro momento. Isso daria alívio imediato aos ecossistemas que hoje são os mais afetados pelo aquecimento, como os recifes de coral. Hoje eles já não conseguem migrar na velocidade necessária e têm sofrido mortandade em massa com frequência cada vez maior.
Viciado em heroína
O problema é que a injeção de aerossóis na atmosfera deixaria o planeta na mesma situação de um viciado em heroína: se a droga (no caso o enxofre) é tirada de repente, a síndrome de abstinência pode ser fatal. Os modelos rodados pelo grupo mostraram que, se as injeções são cortadas em 2070, as temperaturas globais subiriam 0,8oC em uma década – uma taxa de aquecimento global várias vezes maior que a observada hoje, que foi de 1,1oC em mais de 130 anos.
As principais vítimas dessa elevação repentina seriam as espécies dos biomas tropicais, em especial a Amazônia e os corais da América e do Indo-Pacífico. Essas espécies poderiam ter de migrar a 10,4 km/ano em terra e 12,8 km/ano no mar, uma velocidade climática muito maior que a provocada pelo aquecimento global. Nesse cenário, apenas insetos e plâncton poderiam se adaptar.
“As espécies tropicais já vivem num clima mais quente, mas esse clima tem sido estável. Comparado a ambientes fora dos trópicos, tem havido menos variação de temperatura”, disse Trisos. “Então, embora elas vivam em climas mais quentes, podem não conseguir tolerar muito mais aquecimento; quando as temperaturas sobem muito rápido, isso pode empurrá-las para além de seus limites térmicos”, afirmou o pesquisador. O estudo do grupo foi publicado no periódico Nature Ecology and Evolution.
“Esse tipo de risco, do tiro que sai pela culatra, se aplica não só ao caso estudado, mas também a várias outras iniciativas, seja com tecnologia pesada ou leve, voltadas para mitigação e adaptação às mudanças do clima”, disse o biólogo Fabio Scarano, da Fundação Brasileira para o Desenvolvimento Sustentável, membro do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas). “Nos lembra que, para problemas complexos como o do clima, tal qual num jogo de xadrez, a cada lance precisaremos ser capazes de prever várias jogadas – nossas e do adversário – mais à frente no jogo”.
Antes mesmo de o novo estudo sair, na semana passada, a Associação Americana de Geofísica distribuiu uma nota pública reconhecendo que a geoengenharia pode vir a ser uma necessidade, mas pedindo mais recursos para estudos de suas potenciais vantagens e problemas. A nota foi produzida por um comitê integrado por Alan Robock.
O cientista americano diz que a engenharia planetária ainda não é inevitável.
“Não é tarde demais para migrarmos rapidamente para energia solar e eólica. Trata-se de uma questão política, não técnica”, afirma. “Se a geoengenharia no final não for factível, isso deveria levar a sociedade a uma mitigação [redução de emissões] ainda mais forte. Certamente adaptação e sofrimento serão parte disso, Mas uma taxa de carbono que suba gradualmente resolverá o problema”.
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Foto: Greenpeace
*Este texto foi publicado originalmente no site do Observatório do Clima, em 22/1/2017