Imagine se deparar na beira da estrada com um recém-nascido? Foi o que aconteceu, em março de 2021, com uma equipe da Polícia Militar Ambiental de Mato Grosso do Sul, que encontrou um filhote de tamanduá-bandeira às margens da BR-262, completamente desorientado e sem sinal da mãe. Ele ainda estava com o cordão umbilical. Vou contar agora a história desse filhotinho, que foi batizado de Joaquin.
Viajar pelas rodovias de Mato Grosso do Sul desperta sentimentos conflitantes. Ao mesmo tempo em que passamos por belíssimas paisagens de Cerrado e Pantanal, vemos nos acostamentos dezenas de animais silvestres vítimas de colisão com veículos.
A BR-262 que atravessa o Pantanal Sul é uma das que mais registra atropelamentos de fauna. Mais que colocar a vida dos motoristas em risco, é também um perigo para os animais, muitos na lista daqueles ameaçados de extinção. Há anos pesquisadores e organizações não governamentais denunciam a carnificina na rodovia e exigem medidas de mitigação.
Somente entre 2023 a 2024, 2.300 animais silvestres morreram atropelados na BR-262 no trecho de 350 km que vai de Campo Grande até a ponte sobre o rio Paraguai em Corumbá (há pouquíssimos dias uma onça-pintada foi morta ali). E os especialistas ainda acreditam que o número pode ser maior porque muitos animais nem sempre morrem na hora, podem escapar para o mato e morrer em decorrência das lesões, sem entrarem nas estatísticas. No ano passado, o Instituto SOS Pantanal denunciou a situação e a mobilização resultou na assinatura de um projeto do DNIT, Departamento Nacional de Infraestrutura de Transporte, onde o órgão que gere a BR se comprometeu a fazer obras de adaptação e mitigação para reduzir os atropelamentos. Contudo, até hoje elas não foram feitas…
A mãe do Joaquin foi possivelmente uma das vítimas desta rodovia que atravessa o Pantanal. Não há uma confirmação sobre o atropelamento porque ela não foi achada. A Polícia Militar Ambiental resgatou o filhote e o levou para o Centro de Reabilitação de Animais Silvestres, em Campo Grande, mantido pelo Instituto de Meio Ambiente de Mato Grosso do Sul e posteriormente, ele foi encaminhado ao Instituto Tamanduá, que nunca antes tinha recebido um indivíduo tão jovem.
Mamadeira de duas em duas horas e abraço em bicho de pelúcia
Cuidar de um animal tão pequeno, como era Joaquin, exige muita dedicação. É como cuidar de um bebê humano. Na natureza, o filhote de tamanduá-bandeira fica de seis a nove meses vivendo no lombo da mãe. Esse cuidado parental é longo e imprescindível para a sua sobrevivência. Ele mama, como todo mamífero. Não nasce comendo cupins e formigas…
Eu frequento o CRAS de Campo Grande desde 1998, já acompanhei muito o trabalho de reabilitação feito pelas equipes de lá. Quando chega um filhote de tamanduá-bandeira tão pequeno, eles são levados para uma sala que mantém a temperatura ambiente estável, nem muito frio e nem muito calor, e ali nas caixas, eles ganham uma “naninha”. Geralmente é um bicho de pelúcia. O filhote então, se agarra àquele bichinho reproduzindo o comportamento que teria na natureza. Fica ali, abraçado, como se estivesse no lombo da mãe e se sente protegido.
A equipe se reveza o tempo todo para atender os pequenos. No caso de Joaquin, recém-nascido, ele recebia alimentação na mamadeira. De duas em duas horas. Jordana Toqueto, médica veterinária do CRAS, explica que “não existe ração específica para esta fase do tamanduá, então eles batem leite de vaca sem lactose, uma porção de ração de filhote de gato ou cão, um ovo e um filete de mel.
”As medidas de cada ingrediente da mamadeira variam de acordo com peso e idade do filhote de tamanduá. E não é só dar a mamadeira. Como os tamanduás tem uma língua longa, na vida adulta pode chegar a 60 cm, os filhotes também são linguarudos e o risco de engasgar com o leite é grande. Então, alimentar um filhote tão pequeno também exige paciência e muita atenção”, explica Jordana.
Joaquin ficou sob os cuidados da equipe do CRAS, onde recebeu um primeiro atendimento e passou pela adaptação para aceitar a mamadeira. Quando estava mamando bem, foi transferido para a base de campo do Instituto Tamanduá na Pousada Aguapé, no Pantanal em Aquidauana, Mato Grosso do Sul. O filhote já estava pesando entre 1,8 a 2 kg quando chegou ao Projeto Órfãos do Fogo. Ele ficou sob os cuidados intensivos de duas médicas veterinárias. Recebia mamadeira de duas em duas horas. A reabilitação e a adaptação alimentar envolvem dezenas de profissionais – zootecnistas, médicos veterinários, biólogos, todos unidos na missão de salvar os filhotes.
“Com quatro meses o filhote passa por um processo de adaptação para outra dieta. Sai da mamadeira e vai para o potinho. Começa a comer ração, desenvolvida pela equipe do instituto e uma empresa estrangeira, e a recebe até uns seis a oito meses, dependendo da resposta do animal”, diz Flávia Miranda, médica veterinária e presidente do Instituto Tamanduá. Nesta fase de introdução de novos alimentos, a comida no potinho é uma papa, mas à medida que vai crescendo o filhote de tamanduá passa a receber ração seca e só depois entra na fase de adaptar à oferta cupins e formigas.
O momento da alimentação é um dos mais fofos. O filhote faminto ouve os passos dos pesquisadores e fica todo agitado sabendo que vai comer. Joaquin era o xodó da equipe e respondeu muito bem ao tratamento. Com nove meses ele saiu do recinto berçário e foi para o de imersão. É um pouco afastado da sede da pousada, sem muito contato com as pessoas e bem grande. Lá ele viveu solto.
“A equipe nesta fase foi bem reduzida, poucas pessoas entraram em contato com ele. Joaquin já estava maior e começou a receber além da ração seca, nacos de cupinzeiros algumas vezes por semana para estimular a busca por alimento. O recinto era grande, tinha formigueiros e ele se adaptou ao clima, porque fica na chuva, no sol, se preparando para voltar para a natureza”, destaca Flávia.
Pronto para ganhar a liberdade
Somente com um ano e meio de vida, Joaquin deixou de ser filhote. Estava apto para ganhar a liberdade. Esse protocolo de reabilitação foi instituído na Argentina, pela equipe da Fundação Rewilding Argentina, em 2006. Flávia Miranda foi uma das especialistas convidadas na época para desenvolver a estratégia e o protocolo que seriam aplicados com os tamanduás-bandeira que viriam de cativeiro para os recintos do Parque Nacional de Iberá e depois seriam soltos na natureza. Desde então o Instituto Tamanduá é parceiro da equipe da fundação no país vizinho.
A região de Esteros de Iberá, na Província de Corrientes, no norte da Argentina, tem uma planície alagável bem semelhante ao Pantanal. Mas a caça e a perda de habitat levaram à extinção local de muitas espécies, entre elas o tamanduá-bandeira que ficou extinto por mais de 100 anos por lá. O imenso esforço de refaunação em Iberá, patrocinado pela Fundação Rewilding, liberou o primeiro casal da espécie em 2007, nos anos seguintes foram feitas mais solturas e a adaptação foi um sucesso. Atualmente já habitam na região de Iberá mais de 200 tamanduás. Eu visitei a região em 2023 e pude ver esses animais pelos campos em vida livre e alguns em reabilitação nos recintos de imersão. É emocionante saber que um lugar onde os animais foram localmente extintos, agora, com a ajuda de pesquisadores de diferentes partes do mundo, está de novo sendo povoado pela fauna nativa. Flávia Miranda também retornou a Iberá dois anos atrás e pôde constatar a evolução de todo o esforço de refaunação.
“A gente troca muitas informações, eles nos ajudam muito aqui no Brasil. A gente viu que com um ano e seis meses esse animal está apto para voltar para a natureza. É quando ele recebe uma mochila com rádio que emite sinais VHF e UHF e esses sinais nos permitem saber por onde o animal está andando, o que ele está fazendo, se está se alimentando. São dois anos de monitoramento”, revela a fundadora do Instituto Tamanduá.
Joaquin foi solto pela primeira vez em novembro de 2022, completamente recuperado. A equipe da organização fazia monitoramentos diários, encontrando o animal via sinais de GPS. Esse acompanhamento permitiu aos pesquisadores perceber que seis meses depois da reintrodução, o tamanduá estava perdendo peso e não tinha se adaptado perfeitamente à vida livre. Foi necessário então que ele fosse recapturado e passasse mais um tempo no recinto de imersão para se fortalecer.
Em uma segunda tentativa, Joaquin foi solto novamente em fevereiro de 2024. Desde então, demonstrou estar integrado ao Pantanal.
Joaquin, bem e saudável, na vida selvagem
Em dezembro de 2024, eu estava participando do curso de capacitação para manejo de fauna silvestre, oferecido pelo Instituto Tamanduá na fazenda Aguapé no Pantanal. Era o dia de aula prática de captura para aprender como deve ser feita a coleta de amostras biológicas, sangue, pelo, carrapatos, e também para ver como deve ser esse processo, que envolve sedação e liberação de um animal de vida livre.
O médico veterinário do instituto tinha capturado um tamanduá e todos nós estávamos ali atentos às explicações da equipe de pesquisadores. Foi quando ao longe vi um tamanduá enorme, andando no campo. Ele tinha a mochila com o rádio. Farejou a nossa presença. Imediatamente eu perguntei à médica veterinária Maíra Prestes quem era aquele indivíduo. “É o Joaquin!!!”, ela respondeu com um sorriso no rosto.
“É uma felicidade vê-lo bem assim, o Joaquin passou por bastante coisa, teve que voltar para a reabilitação por questão da adaptação, mas a gente fica contente de ver ele comendo e tranquilo no Pantanal”, celebra Flávia Miranda.
Satisfação mesmo foi quando, semanas depois deste encontro, a equipe recapturou o Joaquin para a retirada definitiva do colete com o rádio. É o fim de um trabalho de anos de reabilitação do tamanduá, quando o animal está completamente integrado e recuperado. “Ele tá lindo, está com peso maravilhoso, com um pelo lindo e pronto para ser um paizão e reproduzir na natureza. A gente está muito contente e grata por todas as pessoas que passaram por esses quase quatro anos de projeto, de reabilitação do Joaquin. Foram muitos profissionais e voluntários e muitos apoiadores e financiadores. Eu quero agradecer em nome do instituto e em nome do Joaquin que está lá nesse momento solto no Pantanal, curtindo a vida tranquilamente, diz ela.
Sem dúvida nenhuma, essa é mais uma vitória da conservação.
Ah, para quem ficou curioso e quer saber por que o filhote de tamanduá-bandeira foi batizado de Joaquin, a escolha do nome foi uma homenagem a Joaquin De La Torre Ponce, diretor regional para América Latina e Caribe da IFAW, International Fund for Animal Welfare, uma das instituições parceiras do Instituto tamanduá e que patrocinou a sua reabilitação.
Contribua com o trabalho do Instituto Tamanduá
Você pode ajudar esse trabalho lindo e importantíssimo feito pela equipe de profissionais do Instituto Tamanduá. Faça uma doação pelo PIX – apoie@tamandua.org ou diretamente no site da ONG.
Vale lembrar que o tamanduá-bandeira, conhecido ainda como papa-formigas, tamanduá-açú, jurumi ou jurumim, é considerado ameaçado de extinção.
Foto de abertura: Instituto Tamanduá