Uma viagem a pé de 180 km pelo sertão de Guimarães Rosa, uma jornada de 15 dias pelo Rio São Francisco e uma viagem pelos Andes argentinos, bolivianos e peruanos foram algumas das imersões que deram fôlego ao estudo da artista-pesquisadora Raquel Lara sobre a relação de moradores desses diferentes territórios com a água– ou com a falta dela, em muitos casos.
Entre caminhos mais ou menos áridos, a jornalista e compositora se deparou com relatos profundos sobre a vida de comunidades inteiras perpassadas pela dinâmica dos cursos d’água em seus “quintais” e a forma como eles têm sido alterados nos últimos anos, muitas vezes deixando de ser puros, navegáveis ou “mergulháveis”.
“Ao longo dessas trajetórias, fui compreendendo que as possibilidades da relação humana com a água também eram atravessadas pelas disponibilidades de acesso à mesma em suas diferentes manifestações e também às formas como nossos contatos com esse elemento são cuidados, cultivados ou interceptados”, afirma Raquel, que se formou em comunicação social, mas sempre foi seduzida pelas mais diversas linguagens criativas como a poesia, a música e dança.
Por isso, a partir dessa inquietação relacionada aos relatos de suas viagens, ela produziu vídeos, poemas e o repertório de canções imersas nas narrativas de moradores, que se traduziram, ao mesmo tempo, em um espetáculo e uma extensa documentação incorporada às suas teses de mestrado e doutorado.
Os relatos colhidos misturam memórias afetivas sobre as brincadeiras nos rios, o contato com as minas d’água, testemunhos históricos de pescadores que viram seu sustento se esvair com a construção de barragens, “causos” sobre caboclos e mães d’água e lendas que inspiram de escultores de carrancas a bordadeiras das comunidades ribeirinhas.
Na realidade, toda trajetória da pesquisadora passa por essa proposta de ir ao encontro das pessoas, das comunidades e das realidades socioambientais além das paredes da Universidade Federal de Juiz de Fora, onde estudou. Mais do que se dedicar com afinco às pesquisas de campo, Raquel buscou transitar por referências literárias que também nasceram de vivências reais no cotidiano de povos tradicionais.
“O contato com a narrativa de Ailton Krenak, importante liderança indígena brasileira, por exemplo, aprofundou meu desejo de encontrar e trazer para o universo da academia, os saberes latino-americanos, essas outras formas de perceber o mundo e compreendê-lo”, reflete a artista. Foi, então, que ela se deu conta de que, para falar dos saberes latino-americanos, precisava experienciá-los.
“Uma vez ouvi dos moradores do Vão dos Buracos, no sertão do noroeste de Minas Gerais, que só conhece quem caminha. Para mim, fez todo sentido. Caminhar sempre me trouxe uma maior possibilidade de conexão com as pessoas e os lugares”, conta a pesquisadora. “Quando você caminha sem preocupação em ter que chegar em algum lugar, você entra em um tempo diferente e se abre para outros tipos de experiência, menos afetadas por expectativas que costumamos criar em torno do que vamos ou não encontrar em nosso caminho. A gente se permite ser menos previsíveis, mais intuitivos e mais afetivos” complementa.
No sertão de Guimarães
Foi assim que Raquel se embrenhou no chamado Caminho do Sertão, que vai dos municípios de Arino até a Chapada Gaúcha, em Minas Gerais. Trata-se de uma rota socio-eco-literária, que tem o intuito de aproximar os caminhantes das comunidades pelas quais se passa. Para isso, os organizadores da expedição propõem a realização de um trajeto que adentra grandes fazendas de monocultura, cerradões e veredas, com hospedagem na casa de moradores locais, trazendo à tona questões enfrentadas pelo sertão no avanço do agronegócio.
A proposta passa também por compor o caminho que tem como pano de fundo a dimensão literária, já que a rota foi pensada a partir do clássico Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. No total, foram cerca de 180 km percorridos, sete dias, perfazendo parte do caminho realizado por Riobaldo, personagem-narrador da obra de Rosa.
Uma jornada cinematográfica pelo Velho Chico
Em 2015, Raquel participou de outra expedição para reunir relatos ao longo do Rio São Francisco junto à equipe do projeto Cinema no rio São Francisco, que promove a exibição de filmes de ficção e documentários com temática sociocultural em praças públicas em vilarejos, assentamentos e cidades ao longo das margens de um dos maiores e mais emblemáticos rios do país.
“Enquanto viajava, busquei narrativas com a água, nas quais a relação com o rio São Francisco impera. Passamos por dez cidades, onde conversei com moradores mais velhos. De uma forma geral, no sertão, me impressionou a facilidade com que algumas pessoas já embalavam na conversa e começavam a contar histórias. Narrar parecia uma atividade fluida para muitos dos sertanejos e sertanejas com quem estivemos”, conta Raquel.
Muitas narrativas, infelizmente, são perpassadas pelo testemunho de um rio que está “minguando”, como muitos dizem. Além do desmatamento da mata ciliar, o intenso uso da água para agricultura irrigada e diversas indústrias o Velho Chico agoniza com os milhares de litros de esgoto sem qualquer tratamento que são despejados em seus cursos.
Outro drama é o efeito das cinco hidrelétricas de grande porte em Três Marias, Sobradinho, Itaparica, Paulo Afonso e Xingó, que criam reservatórios, alterando o fluxo de peixes do rio e a qualidade das águas, além de acabarem com lagoas temporárias e de deixar cidades e povoados inteiros sem água.
Os caminhos latinos
Em 2016, as pesquisas ganharam a América Latina quando a jornalista viajou pelo norte argentino, Bolívia andina e Puno, no Peru. Foram trinta dias de viagem, passando por quinze cidades. Segundo a pesquisadora, apesar das muitas as diferenças geográficas, climáticas, culturais entre os caminhos mineiros e andinos que percorreu, o que chamou atenção foram as semelhanças desses espaços áridos.
“Pode-se sentir uma conexão diferente dessas pessoas com esses cenários ocres, a mesma dos cerros nortenhos e do chão sertanejo. Os sertões se encontram na presença das mineradoras e do agronegócio que desviam e represam águas e vidas”, ressalta Raquel.
Assim, ao se colocar em movimento, no deslocamento físico, Raquel se colocou em movimento também em um sentido mais subjetivo, passeando por outras sensibilidades, outras formas de viver e enxergar o mundo e de compreender a relação do homem, mas teve dificuldade de trazer essa dimensão da documentação para o texto acadêmico, objetivo e explicativo. “Querer capturá-las pela racionalidade, seria reduzi-las ou mesmo torná-las estéreis e sem sentido.
Canto das Águas
Por isso, as linguagens artísticas lhe permitiram assimilar as experiências vividas, criar conexões entre elas. Assim, as reflexões que Raquel foi tecendo ao longo da pesquisa só foram possíveis através das poesias e das músicas que ela reuniu em formato de show. Canto das águas é o nome da apresentação musical permeada por alguns dos textos poéticos e de algumas falas dos narradores que fizeram parte de sua pesquisa.
Na semana passada, em 14/09, Raquel apresentou seu espetáculo no Teatro Estelar, no bairro do Bixiga, em São Paulo. No show, memórias e experiências trazidas dessas viagens se traduziram em textos e canções que transitam entre os ritmos regionais, o samba, o blues, entre outros gêneros que despertam o imaginário do ouvinte ao evocar as conexões entre a água e a natureza, a alegria, a ancestralidade, a mitologia, a morte e a vida.
Fotos: Mariana Florêncio (Raquel), Felipe Salema (crianças e Ailton Krenak), Raquel Lara (pescador e Andes)