Por Maria Fernanda Ribeiro*
O sol ainda demoraria a raiar quando homens e mulheres do povo Mehinako, moradores do Território Indígena do Xingu (TIX), no Mato Grosso, começaram a se dirigir até uma lagoa sagrada a dois quilômetros de distância de suas casas. Era o início dos rituais que antecederiam uma grande pescaria, necessária para alimentar os convidados que chegavam de outras aldeias para o Quarup, o ritual fúnebre ancestral dos povos originários da região do Alto Xingu.
Às margens da lagoa, enquanto o pajé entoava seus cânticos para que os pescadores se mantivessem protegidos das arraias e piranhas, algumas fogueiras eram acesas para que os indígenas ali presentes realizassem outros ritos, considerados fundamentais para que nada atrapalhasse um dos momentos mais importantes da cerimônia que daria fim ao luto dos familiares da pajé Iamony Mehinako, que morreu em maio de 2021, vítima da covid-19.
Uma dessas práticas consiste em acender tochas e queimar os pelos dos corpos de todos os homens que vão entrar na água e das mulheres que vão manusear os peixes para o preparo. O cheiro do pelo queimado, eles creem, espanta animais peçonhentos e evita outros tipos de acidentes.
O clima naquela manhã era de diversão, com risadas e brincadeiras entre eles, mas havia também uma preocupação. E, para garantir que tudo correria bem, estava ali o brigadista florestal Akuykuma Mehinako. A atenção estava voltada para evitar que as labaredas não se espalhassem e que as brasas fossem apagadas antes de a pescaria começar.
“O clima mudou muito e é arriscado para a gente hoje usar o fogo. Antes não era assim, a gente ia embora e deixava o fogo lá e apagava sozinho. Agora não pode mais”, afirma Akuykuma.
O fogo é um elemento muito presente nos rituais do Quarup, pois também é usado para limpar os acampamentos que são levantados no entorno da aldeia, onde os convidados montam suas redes, e também para espantar o frio que se faz presente no mês de agosto, que marca o início do período da seca no Xingu e também das cerimônias fúnebres dos mortos ilustres.
Se durante o dia as temperaturas são elevadas e o calor se mistura com o poeirão que os ventos levantam do chão da aldeia, durante a madrugada os termômetros podem alcançar temperaturas abaixo dos dez graus Celsius.
“Os convidados ficam nos acampamentos e, se eles deixarem o fogo lá, a gente tem que cuidar e apagar”, afirma o brigadista. A crise climática tem obrigado os indígenas do Xingu a fazerem adaptações não só no dia a dia, mas também em suas cerimônias ancestrais.
Watatakalu Yawalapiti, uma das filhas da falecida pajé Iamony, diz que o fogo também é usado para enviar sinais e avisar que determinado grupo de convidados está chegando ao ritual. Segundo ela, durante os preparativos do Quarup deste ano, foram realizadas reuniões com os caciques das aldeias do Alto Xingu relatando as preocupações com os incêndios e os cuidados necessários para evitar que ocorressem desastres ambientais, pois os meses de agosto e setembro são o período mais intenso da chamada temporada do fogo na região amazônica.
Nessa época, os incêndios se alastram com muita facilidade, destruindo plantas medicinais e árvores fundamentais para a sobrevivência dos xinguanos, como as utilizadas para construir as casas tradicionais.
“Antes, o fogo era usado para dar sinais e para aquecer a noite. Aí os convidados iam embora sabendo que o fogo ia apagar. Isso antes, hoje não”, afirma Watatakalu. “Este ano a gente articulou muito o cuidado na vinda das pessoas para não colocarem fogo e para ter cuidado com o fogo nos acampamentos. A gente mudou muito os hábitos que tinha antes. Hoje, antes de ir embora, tem que apagar toda a fogueira”.
Maykuti Mehinako, cacique da aldeia onde aconteceu a cerimônia, relembra os tempos em que não havia preocupação com o fogo e a tensão que hoje existe em práticas que antes eram tão comuns. Mas, se a expectativa era a de um cenário inundado pela fumaça, isso não aconteceu.
Segundo Maykuti, as reuniões mencionadas por Watatakalu e das quais ele também participou surtiram efeito, porque os parentes — como os indígenas se chamam entre si — já entenderam a importância de mudar os hábitos. Este ano, não houve registro de incêndio oriundo do Quarup.
“O clima mudou muito e, para essa cerimônia, a gente conversou bastante com os caciques, para que cada um chamasse a atenção do seu povo, para não tocar mais fogo. E o pessoal entendeu, porque todos sentem as consequências quando um incêndio se alastra e queima plantas importantes para nós, como a embira e a pindaíba, usadas nas construções das nossas casas. Mas, lá fora do território, [os fazendeiros] estão colocando fogo e isso afeta nós também”, afirmou o cacique Maykuti.
O fogo como subsistência
O hoje denominado Território Indígena do Xingu foi a primeira reserva de povos originários a ser demarcada pelo Governo Federal, em 1961. Abriga cerca de 7 mil pessoas de 16 etnias em seus 26.420 quilômetros quadrados.
Parte dessa área, porém, antes tomada por florestas de transição entre a Amazônia e o Cerrado, foi perdida para o fogo: de acordo com estudos, 25% da extensão do TIX já queimou pelo menos uma vez, sendo que 7% de todo o território está tão degradado que perdeu o status de floresta, o que equivale a 189 mil hectares.
Os dados fazem parte de um estudo publicado em março de 2022, liderado pelo pesquisador Divino Silverio, membro do Painel de Ciências pela Amazônia e professor da Universidade Federal Rural da Amazônia (Ufra).
Incêndios florestais e secas recorrentes estão entre os principais fatores que influenciaram na perda de 189 mil hectares de floresta preservada no TIX nos últimos 20 anos.
O monitoramento BD Queimadas, do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), registrou, durante os meses de agosto e setembro deste ano, 393 focos de incêndio no TIX, contra 222 no mesmo período do ano passado. Em setembro deste ano, o Xingu ficou em primeiro lugar do ranking entre os territórios com maior registro de focos.
Devido à crise climática, a estação seca está se tornando mais longa em algumas regiões do território, fazendo com que as florestas se tornem mais secas e mais inflamáveis. De acordo com Silverio, a estação seca nesta região já aumentou em quase um mês — o que, para ele, é consequência do desmatamento e das mudanças no clima.
Para Silverio, a criação de Unidades de Conservação e a demarcação dos territórios indígenas são as medidas mais eficientes para a conservação da Amazônia. Mas, segundo ele, a eficiência destas áreas como barreiras para o desmatamento, os incêndios florestais e a degradação está diminuindo, e o que eram consideradas barreiras fortes agora são frágeis.
“Os indígenas sempre estiveram na região, fazendo fogo e roçado para subsistência. Porém, a floresta estava equilibrada, e o fogo não escapava para a floresta. Mas, com um clima mais seco, os incêndios tendem a sair do controle”, explica o pesquisador.
Eliane Franco Martins é membro da coordenação do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), instituição que participou da produção do dossiê Agro é Fogo, sobre grilagem e desmatamento na Amazônia, Cerrado e Pantanal.
Segundo ela, é importante diferenciar o uso do fogo pelos indígenas, que tem sido empregado há milênios de maneira equilibrada e salutar, do fogo indiscriminado utilizado pela agricultura intensiva e homogeneizadora da paisagem mobilizada pelo agronegócio.
Ela explica que o fogo de uso tradicional é empregado para ajudar as comunidades indígenas a ter o alimento e afastar animais perigosos e peçonhentos das aldeias.
“Eles fazem queimadas tradicionais controladas e o fogo também é uma forma de proteger o território e revitalizar a natureza. É fazer com que a natureza retribua com bons frutos. O fogo feito da forma tradicional não vai matar a natureza, os animais, a biodiversidade”, explica Eliane.
Para ela, é perceptível o prejuízo das práticas tradicionais dos povos indígenas acarretadas não só pela crise climática. “As práticas tradicionais foram prejudicadas pelos impactos das mudanças climáticas, pelas mudanças do agronegócio no entorno dos territórios indígenas e pelo avanço desenfreado do capital próximo aos territórios, como as barragens e a infraestrutura de ferrovias, de estradas, de pontes”.
Quarup, um novo ciclo que começa
O Quarup é o ritual fúnebre dos mortos ilustres do Alto Xingu, reunindo nove etnias. É o momento em que os convidados levam alegria para as famílias que perderam um ente querido e é um marco para o encerramento do luto, quando as pessoas podem parar de chorar e voltam a cantar, a dançar, a usar os adornos, a se enfeitar e a se pintar com jenipapo e urucum.
É também o momento em que o espírito do falecido segue o seu caminho para a morada ancestral. Para isso, segundo Watatakalu, o céu também precisa estar livre da fumaça, para que a alma encontre seu caminho.
“Nos últimos anos, a gente tem notado que todos os Quarups realizados no mês de agosto têm acontecido no meio de fumaça, então a nossa preocupação maior foi essa porque é uma noite de despedida, do encerramento do luto, e de madrugada os espíritos vão subir. O Quarup é o fechamento de um ciclo e o início de um novo”, destaca Watatakalu.
Iamony era pajé e uma liderança importante, conta Mapulu Kamayurá, a única pajé mulher do Xingu. “E o avô e a avó dela eram grandes caciques. A gente trabalhava juntas. Eu curava paciente com ela no hospital e em outras aldeias. Ela foi minha aluna e, hoje, estou sozinha, não tem outra igual a ela”.
Invasão dos porcos
Mas não é só o fogo que tem preocupado e afetado os preparativos do Quarup. Além da necessidade de muitos peixes para alimentar os convidados, o ritual também precisa de farta quantidade de polvilho para o preparo do beiju de mandioca, iguaria que junto com os pescados compõe a alimentação tradicional dos xinguanos.
O problema, relata o cacique Maykuti, é que, de uns anos para cá, as roças estão sendo invadidas com frequência pelos porcos do mato, que destroem as plantações e colocam em risco a segurança alimentar.
Katia Yukari Ono, articuladora comunitária e assessora técnica em manejo de recursos naturais e fogo do TIX, do Programa Xingu, do Instituto Socioambiental (ISA), afirma que são vários os elementos que interferem nas práticas tradicionais, no que ela diz serem “mudanças ambientais conjugadas”.
Tais alterações são oriundas dos impactos da construção de estradas que causam o assoreamento de rios e lagoas, do desmatamento provocado pelas lavouras de soja e milho no entorno e da crise climática, que mudou o calendário das plantações.
Para ela, que trabalha há 19 anos com os povos do Xingu, a invasão dos porcos pode ser explicada pelo processo de desmatamento que diminuiu o espaço dos animais e, consequentemente, seus alimentos. Dentro da cadeia alimentar, a onça é o predador do porco do mato, mas o espaço dela também foi reduzido e, dessa forma, eles se reproduzem mais. E tem mais um fator, explica Katia, que é o desmatamento, que facilita o deslocamento desses animais até as roças. Para tentar diminuir o impacto, os indígenas foram obrigados a construir cercas para proteger as plantações.
Ataruti Mehinako não só já teve a roça destruída, como também sente os efeitos das altas temperaturas na qualidade da colheita. “A terra está mais quente e a mandioca demora mais a nascer. A gente tem que ir de manhã para a roça e levar água para molhar o solo e tentar minimizar os efeitos do calor. Teve momentos em que a gente plantou, mas não nasceu ou ficou muito fraquinha. E ainda tem o porco que chega e destrói tudinho e a gente fica sem nada”.
Um rio que secou e que tinha a água “bem limpinha e fresquinha” também alterou a dinâmica dos preparativos do Quarup, conforme relata a jovem Ataruti. Durante a cerimônia fúnebre. é necessário uma quantidade incontável de centenas de litros de mingau de pequi, que, além de complementar a alimentação dos convidados, também é oferecido aos espíritos durante o ritual da pescaria, assim como a pimenta, para que eles possam liberar o peixe e para que haja fartura. “Tem todo um procedimento a ser seguido para o peixe não fugir”, diz Assalu Mehinako, filho de Iamony.
O pequi faz parte da alimentação tradicional dos povos indígenas do Xingu e a época de colheita é uma verdadeira festa nas aldeias. “Quando não tem peixe ou mingau, o convidado fica bravo, por isso que a gente tem que cuidar muito das pessoas que estão vindo e oferecer muita comida pra eles”.
Acontece que, para ter mingau de pequi suficiente na época do Quarup, o fruto é colhido com bastante antecedência e precisa ser armazenado corretamente durante meses para que não apodreça até o momento do preparo da bebida.
Segundo Ataruti, quilos e quilos de pequi são guardados embaixo d’água — no caso da aldeia onde ela mora, costumava ser nesse rio com água limpa e temperatura amena que praticamente secou desde que as estradas que ligam as fazendas às cidades foram abertas.
“A gente tem que colocar o pequi dentro do rio bem direitinho, bem organizadinho, porque, se o sol ficar muito quente, vai estragar. Fica um ano guardado dentro do rio para o Quarup. E antes a gente guardava aqui, mas como não tem mais rio, a gente teve que mudar de lugar”, diz Ataruti.
“Esse rio começou a secar no dia que abriram a estrada, aí nunca mais voltou. Na época de chuva até ficou um pouco cheio e tentou voltar a ser um rio, mas chegou na época da seca e ele secou mais. Em 2022, o rio não voltou mais, nem um pouco, nadinha de água”.
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* Este texto foi originalmente publicado no site da Mongabay Brasil em 6/12/2022 e adaptado por Mônica Nunes para publicação aqui, no Conexão Planeta
Foto: Sitah (Tocadores de flautas durante o ritual do Quarup em aldeia Mehinako, no Território Indígena do Xingu)