
No Hospital Universitário de Brasilia (HUB), na área isolada para casos de Covid-19, além do prontuário médico – que apresenta informações básicas do paciente como nome, idade, número do leite, medicamentos e condições -, desde o final de março, os leitos exibem dados inusitados que têm transformado o ambiente e a rotina de profissionais, pacientes e suas famílias.
O time, um prato, um perfume ou um filme favorito. Uma frase ou poesia. Se é jovem, que profissão gostaria de seguir. Trata-se de um prontuário afetivo que ainda pode ser complementado pelo xampu ou o sabonete que o paciente usa e que é utilizado em sua assepsia.
A iniciativa desse prontuário especial, que mostra um pouco mais sobre quem ocupa aquele leito, partiu da médica reumatologista Isadora Jochims, que também é artista visual.
Ela contou ao site de O Globo que, antes de se formar em reumatologia, se interessava muito por intervenções artísticas e que o prontuário é uma das muitas expressões de arte possíveis no ambiente hospitalar, que ajuda a humanizar o tratamento.
“Essa ideia de intervenções artísticas no ambiente de saúde foi uma questão de sobrevivência. De tornar o ambiente mais leve, provocando e ajudando os profissionais que estão ali, atuando”, conta.
“Estou cansada de ouvir que estamos em uma guerra. Não estamos em uma guerra, estamos em uma pandemia, cuidando de vidas”, destaca a médica que integra a Comissão de Humanização do HUB.
Desejos e hábitos
A ideia do prontuário foi gestada durante as ligações da reumatologista para os familiares dos pacientes. Essa é uma das atividades diárias: informá-los sobre o estado de saúde dos infectados, que não podem receber visitas.
Durante uma das conversas, Isadora descobriu desejos e hábitos de um dos doentes. “Depois de passar as informações médicas, perguntei: ‘Olha, se por acaso ele acordar de uma sedação, o que ele gostaria de ouvir? Do que ele gosta?”.
Do outro lado da linha, ouviu uma risada e descobriu que ele era torcedor do Palmeiras, que gostava de Raul Seixas…

Naquele dia, no leito do palmeirense intubado – e em coma induzido – foi anotada a informação de que o time dele tinha ganho o último jogo. A intenção é dar uma boa notícia assim que ele acordar, para animá-lo ainda mais.
Como alguém da família
Para a reumatologista, não se trata apenas de tocar os pacientes. É essencial tocar os sentimentos de todos os envolvidos: pacientes, familiares e profissionais.
“Isto é arte relacional. A arte não existe se não tiver o outro. Pra ela acontecer, eu preciso da resposta do familiar, dos profissionais que estão ali e provocar mudanças na relação”.
Desde o final de março, a enfermaria do HUB adota o prontuário afetivo. Dayani Adami, uma das enfermeiras da equipe de Isadora, aderiu à iniciativa amorosa e revela que, mesmo sedados, os pacientes podem reagir a músicas e outros estímulos relacionados a seus interesses. E acrescenta:
“Esse daqui não é só o paciente do leito 1. Esse daqui é o paciente que gosta da música tal, que gosta de comer tal coisa, que tem filhos. Quando a gente sabe que o paciente é o amor de alguém, a gente cuida dele como se fosse alguém da nossa família”, resume.
“Eles falam pelo coração”

Foto: Breno Esaki / Agência Saúde / Governo Brasília
Assim que descobriu o prontuário afetivo, a enfermeira cearense Domitília Bonfim, que trabalha no Hospital Regional do Guará, no DF, abraçou a ideia e a implementou rapidamente.
“Eu gosto de trabalhar nessa linha da humanização, sempre gostei, tem tudo a ver comigo. Por isso, quando a Isadora publicou a respeito, me tocou muito, me identifiquei. Imprimi na minha casa, cortei corações de papel, colei e saí ligando pras famílias”, contou ao Diário do Nordeste.
Ela explicou que, quando estamos inconscientes, em coma, intubados, o sentido que permanece ativo, fisiologicamente, é a audição. E o que dizemos tem efeitos importantes, que são revelados pelo monitor cardíaco, que indica febre, dor e, agora, satisfação, alguma alegria. “Eles respondem pelo coração”.
Ânimo e esperança
Domitília contou que a equipe está muito cansada e estressada, vendo colegas morrerem de Covid-19. Ela mesma passou por essa situação: um colega seu de plantão foi o primeiro profissional a morrer na rede do Distrito Federal.
“E todos têm familiares que estão partindo também. Tá muito difícil. É uma catástrofe: nenhum serviço de saúde do mundo aguentou, e aqui não seria diferente. Muitas vezes temos vontade, mas falta energia. E a gente tem que interceder”, explicou.
Quando descobriu o prontuário afetivo, quis implanta-lo logo, mas não queria que todos o considerassem como mais uma tarefa. “Plantei a sementinha, esperei a resposta, e pedi apoio à psicologia pra dar continuidade”.
Pouco tempo depois, veio o retorno dos colegas. Domitília começou a ouvir eles dizerem frases como ‘nossa, isso me deu um gás, eu tava tão cansado, sem esperança! Fazer meu trabalho olhando para esse prontuário, saber que a pessoa tem duas filhas adolescentes esperando por ela, muda tudo’.
Sim, às vezes é preciso ter informações mais palpáveis para lidar com as pessoas de forma mais especial. E a enfermeira explica:
“Não que a equipe não saiba que ali está um ser humano, mas, com a pandemia a gente se afastou muito da família, não tem mais contato pele a pele, é só por telefone e por boletim médico. Então, todos se comoveram como o prontuário, que reforça que ali é um ser humano, pai de família, mãe, avó de 20 netos”.
Mas Isadora Jochims explica que nem sempre o retorno dos profissionais é positivo. Nem todos lidaram bem com a proposta. Não se sentiram confortáveis porque preferem se “afastar” da história dos pacientes para conseguir lidar com eles.
Menos tempo de internação e ansiedade

Foto: Divulgação
No Hospital do Rim de Goiânia, que é particular, uma espécie de prontuário afetivo é comum na rotina e foi ampliado com a pandemia. Lá, as informações são afixadas na porta dos quartos ou anos leitos de pessoas com Covid-19 na UTI.
“Partimos da premissa de que todo paciente é o amor de alguém. Ele tem uma história, tem gostos, afinidades e sentimentos. Durante o tratamento, ele vai ficar isolado, sozinho e, nesse momento, seremos a família dele”, Stephany Araújo Nogueira, supervisora da enfermagem da UTI.
Os profissionais buscam conhecer gostos e história de vida do paciente, mas também identificar o nome ou apelido pelo qual mais gosta de ser chamado. Dessa forma, eles passam a tratá-lo de “forma personalizada e com ainda mais afeto”.
E vão além: se utilizam de objetos que possam lembrar seus parentes ou o ambiente de casa, como sprays, cremes, sabonetes…
“Teve o caso de uma paciente que a família levou o shampoo do esposo. A equipe usava durante os banhos nela. Quando a paciente teve alta, ela contou que sentia a presença do marido. Tudo ajuda bastante no processo de recuperação. Eles se sentem mais acolhidos”, contou a diretora-executiva do Hospital do Rim, Lilian Costa.
Ela ainda salientou que, no momento da extubação (retirada do tubo de respiração), a equipe de médicos, enfermeiros e psicólogos costuma colocar uma música ambiente da preferência do paciente, que o ajuda a voltar à consciência e a participar desse processo.
Como as visitas são proibidas, mesmo que o paciente esteja consciente, as famílias enviam vídeos para os pacientes. “Filhos e netos, gravam e mandam. A psicóloga leva e passa para o paciente. É um conforto”, acrescentou Lilian.
A responsável pela coleta de informações para o prontuário afetivo do Hospital do Rim é a psicóloga Amanda Rodrigues Mendes de Oliveira, que ainda conta que um atendimento mais humanizado ainda “pode reduzir o tempo de internação do paciente. E ajuda a minimizar a ansiedade da família”.
Papo bacana
Agora, assista à live realizada em 1º de abril na qual a reumatologista Isadora Jochims e a enfermeira Domitília Bonfim trocaram ideias e experiências sobre a adoção do prontuário afetivo:
Fonte: Diário do Nordeste, G1
Foto (destaque): Breno Esaki / Agência de Saúde DF