Quem imaginaria que, depois de tantas lutas e conquistas das mulheres, chegaríamos ao século XXI vivendo numa sociedade tão machista e tão desigual? Se qualquer um de nós parar para pensar, por um minuto, em como tem lidado com essa questão -, certamente identificará, em sua trajetória, alguma atitude que ajudou a enfatizar o machismo.
Não é pra menos já que, há muito tempo temos sido “bombardeados” por pensamentos e movimentos que denigrem a imagem feminina – “Ela deveria estar no tanque”, “Nada que uma boa louça não resolva!”, Ah, isso é coisa de mulherzinha”, “Ela só pode estar de TPM!” – e enaltecendo a dos homens, com um detalhe: os propagamos, muitas vezes, sem perceber. E, em alguns casos, disfarçados de bom humor.
Isso sem contar que, diariamente, reforçamos ideias deturpadas do que é masculinidade, exigindo que os homens sejam fortes, “pegadores”, provedores, viris e violentos porque, do contrário, não são homens de verdade. “Homem não chora!”, “Não pegou ninguém? Ah, esse cara é viado!”. E foi esse um dos pontos destacados pela pesquisa encomendada pela ONU Mulheres Brasil e o site Papo de Homem, com apoio do Grupo Boticário, apresentada a convidados esta semana: Precisamos falar com os homens? Uma jornada pela igualdade de gênero.
O estudo – que integra o movimento global He For She e resultou em ótimo documentário – revelou o machismo nosso de cada dia e a importância de falar com os homens sobre gênero. Sua missão foi identificar como mulheres e homens se sentem em relação ao tema e também como podemos evoluir e transformar a sociedade com mais igualdade e mais diálogo.
“O estudo traz elementos mais concretos sobre as discussões sobre a igualdade de gênero, para a revisão e a repactuação de papéis de gênero, assim como as transformações necessárias para o fim do machismo”, afirma Nadine Gasman, representante da ONU Mulheres Brasil.
Para chegar ao resultado, primeiro os pesquisadores conversaram com 40 influenciadores e especialistas de São Paulo, Rio de Janeiro e Recife. Em seguida, entrevistaram (online) 20 mil pessoas em todo o país.
Como o machismo se expressa e o que provoca
Ficou claro que mulheres e homens veem o Brasil como um país machista, no entanto, apenas 3% dos entrevistados assumiu ter atitudes desse tipo no dia a dia. Ou seja, a maioria enxerga o machismo no outro, mas não o reconhece em si. Mas também ficou evidente que precisamos parar de pensar apenas na mulher quando falamos de gênero e que é preciso incentivar os homens a expressar sentimentos e fragilidades sem receio de serem julgados.
“O estudo traz elementos mais concretos sobre as discussões sobre a igualdade de gênero, para a revisão e a repactuação de papéis de gênero, assim como as transformações necessárias para o fim do machismo”, afirma Nadine Gasman, representante da ONU Mulheres Brasil.
Um dos motivos que ajudam a perpetuar a tensão e essa desigualdade é o fato de que boa parte dos homens ainda não sabe lidar com “a mudança de posição na hierarquia social”, o que alimenta a constante necessidade de provar sua masculinidade. Guilherme Valadares, fundador e diretor de conteúdo do site Papo de Homem, ressalta: “Os homens não precisam se sentir ameaçados. O que está sendo combatido é apenas a masculinidade tóxica, não o masculino como um todo”.
A pesquisa também revela que as mulheres estão convictas de que a igualdade é benéfica para todos, ao mesmo tempo em que afirmam serem as que mais sofrem com a violência e a desigualdade de direitos. Já os homens identificam que o machismo condiciona as masculinidades, restringindo sua relação com as mulheres e com os próprios homens.
Eis alguns dados que apontam a urgência dessa mudança:
– 66,5% dos homens não falam com os amigos sobre medos e sentimentos;
– 56,5% gostariam de ter uma relação mais próxima com os amigos, expressando mais afeto;
– 54% gostariam de ter mais liberdade para explorar hobbies pouco usuais sem serem julgado;
– 45% gostariam de não se sentir obrigatoriamente responsáveis pelo sustento financeiro da casa;
– 45,5% gostariam de se expressar de modo menos duro ou agressivo, mas não sabem como. Interessante notar que, quanto mais inseguros os homens se sentem, mais violentos são, o que intensifica a desigualdade de gênero.
O que pode ser feito
O machismo está enraizado na cultura contemporânea, mas sabemos que há formas de transformar essa realidade. E, agora, com o resultado da pesquisa, ficou evidente que, para que sejam efetivas, exigem o envolvimento dos homens também. Com a ajuda de especialistas, foram identificados alguns mecanismos para garantir sua adesão, como ações educativas leves e independentes, que podem ser praticadas por qualquer pessoa atenta no dia a dia.
São ações que devem ser adotadas por todos (existem mulheres machistas ou que não se dão conta disso), mas principalmente pelos homens:
– não interromper uma mulher quando ela fala,
– não subestimar nem desconfiar de sua capacidade simplesmente por ela ser mulher,
– não usar termos agressivos,
– não aderir a piadas machistas ou, se vir alguém disseminá-las, explicar porque é melhor evitá-las.
O diálogo entre homens e mulheres é imprescindível, mas entre os homens também. Por isso, a criação de espaços nos quais os homens possam discutir (entre eles) sobre masculinidade, é imprescindível, como grupos que reúnam homens autores de agressão em um ambiente saudável para a reflexão. Também são bem vindas iniciativas que proponham a criação (ou alteração) de políticas públicas, como o aumento ou implantação da licença-paternidade.
No lugar do outro
O lançamento da pesquisa e do documentário aconteceu em São Paulo em 23/10 e reuniu – para um bate-papo após a exibição do vídeo – Nadine (ONU Mulheres), Gustavo Venturi, sociólogo que participou do estudo como consultor, e três ativistas: a jornalista feminista Juliana de Faria (criadora do movimento e do site Think Olga), o sociólogo Túlio Custódio (Inesplorato e Pitacodemia), que mediou a conversa, e a estudante de arquitetura e ativista feminista negra Stephanie Ribeiro (escreve para Blogueiras Negras e Huffpost Brasil, entre outros).
Abaixo, uma seleção do que disse cada um:
– Gustavo Venturi: “O machismo não é natural. É uma construção social, histórica e cultural. Passa pela mudança de comportamento e essa transformação tem avançado não de forma linear. E essa realidade não vai ser efetivamente transformada sem que ampliemos a rede. Passa pela educação, pelo papel da mídia… Temos que continuar juntos e articulando. E justamente neste momento de retrocessos, talvez possamos avançar ainda mais. Nos colocarmos no lugar do outro, pode ajudar muito nesse processo”.
– Juliana de Faria: O Think Olga trabalha o empoderamento feminino por meio da informação. Somos mulheres que produzem conteúdos para mulheres porque é preciso falar com elas também. Muitas vezes, nós mulheres não conseguimos enxergar as violências que vivemos. Como englobar os homens se não englobarmos as mulheres? Queremos transformar as mulheres que sofrem essas violências em multiplicadoras de conhecimento, para que levem essa conversa para seus universos. Porque as mudanças começam nos nossos microuniversos”.
– Túlio Custódio: “Tenho tentando me debruçar sobre o tema e olhar para os recortes das masculinidades, assim, no plural. Nós homens, para falarmos de nós, temos que trazer essa bagagem com a gente. Não dá pra ignorar opressões e entender porque estamos colocados na estrutura de privilégios da sociedade. O que significam nossas masculinidades? Se não tivermos isso claro, vamos aprofundar as desigualdades em relação à performance, à questão de classe, raça, territórios… E precisamos pensar na questão de gênero nas dimensões ética e performática também. Como ficam as imagens de ser homem e de ser mulher?”.
– Stephanie Ribeiro: “Na pirâmide da sociedade, os homens brancos estão no topo, seguidos por uma mistura de homens e mulheres em que há opressão de um e de outro e, na base, estão as mulheres negras. A violência contra a mulher negra aumentou 54%. As mulheres negras não estão no imaginário, elas não podem chorar, elas têm que ser fortes, firmes, resistir aos preconceitos. Quanto menor for o acesso financeiro e estrutural para os homens, mais eles jogam na virilidade e na mulher a possibilidade de exercer poder. Vivemos numa sociedade desigual, com racismo extremo, questões de gênero extremas e isso tudo está naturalizado. Depois da abolição, houve uma construção midiática de que a negra é forte e fogosa e o negro é viril. E, por isso, na construção da masculinidade, vai chegar um momento em que teremos que fazer um debate de classes, como aconteceu no femininismo”.
– Nadine Gasman: “Há muito temos lutado e falado com as mulheres. Agora, é tempo de os homens fazerem sua parte e, para isso, temos que falar com eles, entendê-los. 50% dos homens brasileiros gostariam de ser diferentes, de serem mais afetivos, de mostrar seus sentimentos. 85% das mulheres têm medo de sair na rua. Então, vamos construir o mundo que queremos, juntos”.
Documentário disponível online: espalhe!
O resultado da pesquisa foi muito bem transposto para o ótimo documentário Precisamos falar com os homens? Uma jornada pela igualdade de gênero, que estará disponível, a partir de 1/11, no canal da ONU Mulheres no You Tube e também no site Video Camp, do Instituto Alana.
Pra quem não sabe, o Video Camp é uma ótima ferramenta para disseminar conteúdos audiovisuais para grupos, como em condomínios, escolas, praças públicas etc. E, por isso, será um importante aliado na disseminação de todas as preciosas informações obtidas com a pesquisa e muito bem editadas para o documentário. Agora, assista ao trailler e alguns drops temáticos.
Por fim, resgatei o vídeo Dear Dady (Querido papai), que viralizou nas redes sociais no ano passado. Ele foi produzido pela ONG Care Norway para falar da violência contra a mulher. Tocante, no mínimo.
Foto: Reprodução