
Por Letícia Klein*
Corumbá, uma onça-parda macho batizada em homenagem ao rio homônimo que nasce no estado de Goiás, viveu uma longa jornada no coração do Brasil. O felino partiu do Parque Estadual da Mata Atlântica (Pema), localizado no município de Água Limpa, a cerca de 250 quilômetros da capital Goiânia, atravessou fazendas e cruzou fragmentos de vegetação até chegar a outra unidade de conservação (UC) no sudeste goiano. Ao entrar no Parque Estadual da Serra de Caldas Novas (Pescan), permaneceu por algum tempo, e depois seguiu viagem.
Ao todo, durante os onze meses em que foi monitorado com uma coleira rádio-transmissora GPS, o animal andou mais de 120 quilômetros – de Água Limpa ao município de Cromínia. Os dados foram coletados até julho de 2023, quando o dispositivo ficou sem bateria e se soltou do pescoço de Corumbá.
“[O felino] se movimentou lindamente na paisagem, e vimos os fragmentos entre os dois parques por onde se deslocou. Com isso, conseguimos atribuir a esses locais um grau de prioridade para a conservação da biodiversidade, tendo a onça-parda como uma ‘ferramenta’ para indicar quais áreas são essas”, explica a bióloga Fernanda Cavalcanti de Azevedo, coordenadora-executiva do Programa de Conservação Mamíferos do Cerrado (PCMC), vinculado à Universidade Federal de Catalão (UFCAT).
Desde 2009, o grupo conduz trabalhos de pesquisa e extensão em regiões centrais do Brasil para entender como as espécies nativas do Cerrado, principalmente as carnívoras, relacionam-se com áreas modificadas pela atividade humana. Duas delas são consideradas essenciais pelo PCMC: a raposa-do-campo (Lycalopex vetulus), estrela do projeto Raposinha do Pontal, e a onça-parda (Puma concolor), uma das protagonistas do projeto Suçuaranas Detetives.

Foto: Ricardo Mesquita / PCMC
Conhecido popularmente como puma, leão-baio, suçuarana ou onça-parda, o predador está no topo da cadeia alimentar no Brasil ao lado da onça-pintada, outra espécie que vive ameaçada em áreas centrais do país.
Com isso em vista, a iniciativa Suçuaranas Detetives surgiu da união de dois projetos independentes, mas transversais, ligados ao PCMC: um deles é o Detetives Ecológicos, trabalho de pesquisa iniciado em 2020 e responsável pelo levantamento de dados sobre a ecologia do animal; o outro leva o nome de Suçuaranas no Quintal e foi iniciado dois anos depois, para discutir questões sociais relativas à interação entre as pessoas e a fauna nos arredores dos parques.
Os programas são frutos de um trabalho conjunto entre a Secretaria de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável do estado de Goiás (Semad) e o PCMC.
“Precisávamos entender como algumas espécies-chave usavam o território, considerando tanto as Unidades de Conservação quanto seu entorno, e a relação entre a vida selvagem e as pessoas”, conta Maurício Vianna Tambellini, servidor da Semad e coordenador do Pema e do Pescan.
“Já tínhamos registros de monitoramento de onças-pardas. Então, quando recebemos recursos, escolhemos a onça por se tratar de um animal com grande necessidade de espaço. Assim, foi possível entender melhor a dinâmica dessa espécie e traçar um rumo para a gestão da unidade de conservação que garantisse a sobrevivência do felino”.
A partir da primeira conversa entre Tambellini e os coordenadores do PCMC, nasceu a ideia de criar um projeto que envolvesse as duas UCs, levando em conta os biomas do Cerrado e da Mata Atlântica de Goiás. Dessa forma, os registros recentes de onças-pardas seriam analisados sob o contexto dos dois diferentes ecossistemas, convertendo os hábitos de deslocamento da espécie em uma ‘bússola’ para definir locais prioritários para medidas de proteção ambiental.

Imagem cedida pelo Programa de Conservação Mamíferos do Cerrado
A proposta de usar a espécie como um instrumento de conservação, no entanto, não acontece sem fundamento científico: seu principal objetivo é fortalecer a pesquisa em um potencial corredor ecológico entre o Pema e o Pescan, área de dispersão animal que liga os dois parques, separados por cerca de 80 quilômetros. À medida que for desenvolvido, o projeto buscará a recuperação de áreas de trajeto ecológico e o plantio de espécies nativas dos dois biomas por meio de estímulos aos proprietários rurais. O objetivo é garantir que onças-pardas, bem como outras espécies nativas da região, percorram a faixa contínua de forma segura.
O início do monitoramento
Para que as suçuaranas se tornassem ‘detetives ecológicas’, seria necessário entender sua movimentação e seu comportamento no espaço. Nos dois parques, especialistas instalaram armadilhas fotográficas e realizaram expedições para buscar vestígios, como pegadas e marcas de arranhões. As iniciativas de campo também visam à coleta de material biológico, incluindo as fezes do animal e a carcaça de suas presas para identificar do que a espécie se alimenta. O processo também envolve a captura de alguns animais para a instalação das coleiras remotas responsáveis pelo mapeamento do grande felino.
Até hoje, as três campanhas de captura foram realizadas dentro dos perímetros do Pema. Em 2022, especialistas capturaram dois machos, batizados de Corumbá e Pema, o mesmo nome do parque; os dois animais foram monitorados por um ano, tempo que corresponde ao funcionamento do dispositivo.
Até 2024, a única onça-parda que seguia observada por meio de GPS era a fêmea Vulcanis. Segundo os dados enviados de forma remota, suas andanças cobrem um território que vai além dos limites do parque – assim como Pema, Vulcanis andou até cruzar o Rio Corumbá, dezenas de quilômetros acima, chegando até a região do Pontal.
Dados do projeto no sudeste goiano corroboram os resultados de outro estudo com onças-pardas, desenvolvido entre 2009 e 2017 por pesquisadores do PCMC na região do Triângulo Mineiro, zona geográfica no estado vizinho delimitada pelos rios Grande e Paranaíba: os machos da espécie possuem hábitos predominantemente noturnos e crepusculares; as fêmeas, no entanto, são catemerais, termo usado para definir animais que se mostram ativos de dia e de noite “na mesma proporção”, como destaca o estudo. Essa diferença de comportamento altera o tipo de caça: as fêmeas, por exemplo, predam animais diurnos, como teiús, quatis, tatus, tamanduás-bandeira e capivaras.

Imagem cedida pelo Programa de Conservação Mamíferos do Cerrado
Cavalcanti também destaca as características reprodutivas da onça-parda, conhecida pela capacidade de cruzar com diferentes machos durante o período de acasalamento. Apesar desse comportamento, de acordo com a pesquisadora, as fêmeas evitam percorrer territórios dominados por machos, de forma a evitar que seus filhotes fiquem sob ameaça: “As armadilhas fotográficas registram mais machos do que fêmeas, o que não significa, no entanto, que eles são mais numerosos. As fêmeas apenas evitam o confronto com os machos para proteger seus filhotes”.
Durante a busca por uma companheira, um macho pode matar um filhote que for fruto de outro acasalamento.
Apesar das interações sociais durante a época de reprodução, as onças-pardas são solitárias. Depois de acasalar, o macho vai embora com a missão de patrulhar seu território e defendê-lo de outros iguais a ele. Já a fêmea, que dá à luz de um a quatro filhotes por ninhada, cuida deles sozinha durante o primeiro ano. Ainda jovens, os machos começam a se afastar da mãe, percorrendo maiores distâncias em relação às fêmeas novas – esse comportamento explica o motivo pelo qual os machos ainda jovens se tornam vítimas de atropelamento com maior frequência.
Diversos trechos de estradas pelo Brasil recortam áreas de biodiversidade, apresentando um risco grave à vida desses animais: em agosto de 2024, um indivíduo da espécie morreu atropelado em uma porção da BR-060, entre as cidades de Anápolis e Goiânia. A movimentação da vida selvagem se intensifica durante períodos de incêndios, o que altera padrões de deslocamento e deixa a fauna mais vulnerável a acidentes.

Foto: CONCER, CC0, via Wikimedia Commons
“As onças utilizam áreas abertas modificadas [pela ação humana, como estradas] para atravessar de um fragmento a outro”, explica a bióloga à frente do estudo. “Esses animais são associados a áreas onde há cobertura vegetal, como os pastos sujos, com bastante arbusto, ou mata para que o animal possa se esconder. Como se trata de um predador de emboscada, a onça-parda precisa de um lugar para ficar de tocaia antes de abater a presa.”
Ainda que sempre vasta, a área que o felino precisa para viver pode variar em dimensão. No Triângulo Mineiro, a média correspondente aos indivíduos monitorados foi de 210 quilômetros quadrados. Corumbá, o macho que percorreu o sudeste goiano, viveu uma situação considerada atípica – andando mais de 2.000 quilômetros quadrados. Pema, porém, ganhou em quantidade de andanças mensais, com 530 quilômetros quadrados. Já Vulcanis, fiel à menor movimentação observada no caso das fêmeas, perambulou cerca de 160 quilômetros quadrados, patamar similar ao registrado pelo monitoramento das fêmeas em Minas Gerais.
Desde o início do projeto, pelo menos 15 onças-pardas foram detectadas, somando os dois parques. Os registros são dignos de comemoração por serem considerados incomuns. Apesar das diferenças em termos de vegetação, os dois parques goianos compartilham espécies de fauna como a seriema, o tamanduá-bandeira, o ouriço, a irara, o tatu-canastra, o quati, a capivara e o lobo-guará, entre outros. Por contar com um número maior de corpos d’água, o Pema também é o habitat da lontra e da anta, bem como da onça-pintada e do cachorro-vinagre, duas espécies que não habitam o Pescan.
Uma rede de ‘detetives’
O projeto aumentou o número de ‘detetives’ de olho em obter mais informações para melhorar o quadro de conservação. Dessa forma, espécies como a raposinha e o lobo-guará entraram para o ‘time de investigadores’ naturais. Isso pôde auxiliar na detecção de outras grandes espécies de felinos: não havia, por exemplo, registros de onça-pintada na região fazia trinta anos, então foi uma surpresa avistar dois indivíduos nas câmeras e ainda capturar um na campanha de 2022. No último mês de dezembro, a imagem de três cachorros-vinagres dentro do parque também chamou a atenção dos especialistas, já que o animal é considerado raro e corre risco de extinção.
“Pensar em um parque de menos de mil hectares como o Pema, que abriga praticamente todos os carnívoros esperados para a região de transição entre Cerrado e Mata Atlântica, é algo muito inusitado. É de fato [uma situação] bem especial”, avalia o biólogo Frederico Gemesio Lemos, coordenador-geral do PCMC.
As onças pintada e parda, o lobo-guará e a raposinha também foram registrados no Parque Estadual de Terra Ronca (Peter), a terceira UC a integrar o projeto Suçuaranas Detetives desde 2024.
Localizado em São Domingos e Guarani de Goiás, no nordeste do estado, o parque é considerado um dos maiores complexos de cavernas da América Latina, com sete das 30 maiores do Brasil. Em 57 mil hectares, apresenta mais de 300 grutas, cachoeiras, veredas, mata seca, campos úmidos e uma rica diversidade de fauna do Cerrado, incluindo a ave endêmica tiriba-do-paranã (Pyrrhura pfrimeri).

Foto: Bruno Henning / Wikimedia Commons
É possível que as campanhas de captura no Peter e no Pescan aconteçam no próximo ano. A equipe do projeto já fez quatro expedições à UC de Terra Ronca para instalação de armadilhas fotográficas, verificação de vestígios das espécies-alvo e conversas com a comunidade.
“Com esse projeto, esperamos que as pessoas vejam o parque, a fauna e a flora com um olhar diferenciado. Assim, poderão entender o local de dentro para fora como uma gestão de unidade de conservação”, avalia Wesley de Andrade, chefe do Peter. O especialista enfatiza a necessidade de envolver a população nos esforços de preservação das espécies. O parque integra um mosaico de UCs, estando ao lado da Reserva Extrativista de Recanto das Araras de Terra Ronca e inserida na Área de Proteção Ambiental Serra Geral de Goiás.
“O maior desafio da unidade de conservação é lidar com as relações de conflitos e transformá-las em oportunidades de negócios verdes entre o estado e a comunidade”. Segundo Andrade, desde que a atual gestão começou a trazer projetos para o parque e a envolver os habitantes locais, foi possível gerar renda com pagamento de diárias e contratação de funcionários.
O coordenador destaca que isso levou parte da população a associar o cuidado do meio ambiente ao ganho financeiro e à qualidade de vida – ao passo que antigos moradores, que caçavam e extraíam madeira de forma ilegal, hoje atuam e se sentem ‘guardiões’ do parque.
Educar para proteger
A conservação das espécies, segundo Cavalcanti, não pode ser feita sem a presença das pessoas. “Coexistir é benéfico para os dois lados. Os projetos em grande parte já despertaram com esse objetivo, e o Suçuaranas Detetives tem isso como algo fundamental. Levantamos os dados ecológicos para entender a necessidade das espécies e, assim, trabalhar junto à comunidade para propor estratégias e ferramentas que minimizem os impactos [à natureza]”.
A proximidade entre os especialistas e a comunidade potencializa os resultados esperados. A equipe do projeto é composta por três pesquisadoras que moram em Água Limpa, onde está localizado o Pema, o que permite manter contato constante com os moradores, tanto de forma presencial quanto por meio de grupos virtuais.
A bióloga Bruna Lima Ferreira, que atua na área de coexistência humano-fauna do PCMC, afirma que a onça parece ser mais reconhecida na região desde que o projeto começou. “Reconhecida, conhecida ela já era! Agora, porém, o animal é associado aos moradores, a pesquisas, a nomes, histórias, e tem gente envolvida – ‘as meninas da onça’, ‘as amigas da onça’. Foram várias as ocasiões em que pessoas, de forma espontânea, faziam alguma pergunta sobre esse animal, contando algum causo ou questionando: ‘e por onde anda a onça?’”.
A pesquisadora explica que avaliar as mudanças de percepção das pessoas em relação aos animais é complexo, já que envolve pensar em que patamar estariam antes da aplicação dos projetos, além de criar metas e indicadores de atividades e monitoramento.
Em 2023, no começo das ações de dimensões humanas, a equipe foi de porta em porta em comunidades rurais e aplicou questionários para identificar elementos como atitudes, emoções, crenças e intenções de comportamento.

Foto: Lucas Alves Mateus, CC BY-SA 3.0, via Wikimedia Commons
“O que queremos saber agora é se atitudes em relação ao abate de onças e às grandes questões ambientais foram alteradas em decorrência disso tudo. Especialmente ouvindo o que os atores da região pensam e querem em relação à conservação e a coexistência com a biodiversidade da região”, relata Ferreira.
Uma das ações previstas para os próximos anos é o codesenvolvimento de um plano de ação para incorporar as discussões sobre coexistência e conservação da biodiversidade nas regiões em que o projeto atua. Na primeira etapa de construção, serão feitas entrevistas e workshops com foco nos elementos de percepção presentes no questionário original – e outros pontos sobre a interação com a fauna, para saber se houve mudanças na visão dos moradores sobre o assunto.
A equipe também desenvolve atividades de educação ambiental nas escolas, onde quem faz sucesso é o personagem do filhote Peminha. A iniciativa ainda leva informação a grupos de turistas em datas comemorativas, em eventos como a Semana da Suçuarana, além da elaboração de guias sobre diferentes espécies nativas da região. A expectativa dos pesquisadores, agora, é expandir o projeto para mais parques. O próximo, o Parque Estadual Águas do Paraíso (Peap), em Alto Paraíso de Goiás, já tem armadilhas fotográficas – e registrou de forma inédita uma onça-pintada em agosto de 2024.
Quando Pema, a onça, foi capturado no Pema, o parque, os pesquisadores viram que ele já havia aparecido nas câmeras do projeto Raposinha do Pontal, em Corumbaíba, no outro lado do Rio Corumbá. O animal passou um tempo no parque, cruzou o rio a nado, e depois permaneceu na zona rural, onde virou pai de pelo menos uma ninhada. Então, sumiu das câmeras – e a coleira parou de funcionar. “Será que foi abatido?” Essa foi a dúvida da equipe que o monitorava. Até que, quase um ano depois, Pema apareceu em um vídeo publicado nas redes sociais por um fazendeiro de Pontal. Alguns meses depois, voltou ao parque. Predadores de topo de cadeia são indícios de um ecossistema saudável. E com respeito e a prática da boa vizinhança, há lugar para todos.
* Texto publicado originalmente no site da agência Mongabay Brasil em 9/4/2025
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Foto: Programa de Conservação Mamíferos do Cerrado / divulgação (A onça-parda Pema, habitante do Parque Estadual da Mata Atlântica, em Goiás)