Há dois dias, em 4/7, o dramaturgo, diretor e ator José Celso Martinez Corrêa foi internado na UTI do Hospital das Clínicas, devido a queimaduras em mais de 50% de seu corpo e intoxicação por fumaça provocadas por incêndio em seu apartamento.
Ele estava sedado, entubado e com ventilação mecânica e, apesar do noticiário de ontem animar amigos e fãs – seu pulmão já estava recuperado -, o ícone das artes cênicas (e da cultura) brasileiras não resistiu e faleceu hoje, aos 86 anos. O velório vai ser realizado no Teatro Oficina.
Em sua conta no Instagram, o Teatro Oficina Uzyna Uzona se despediu de Zé Celso com um trecho de ‘Serafim Ponte Grande’, de Oswald de Andrade, ilustrada pelo retrato abaixo: “Tudo é tempo e contratempo! E o tempo é eterno. Eu sou uma forma vitoriosa do tempo. Nossa fênix acaba de partir pra morada do sol. Amor de muito. Amor sempre”.
Criativo, ousado, transgressor, excêntrico, disruptivo, visionário e revolucionário são apenas algumas das qualidades que podem ser atribuídas a ele. Zé era generoso, alegre, divertido, amoroso, parecia invencível. Amigo, mestre, bruxo, xamã. Um semi-deus dos palcos. Ativista dos direitos humanos, aliado dos povos indígenas e de comunidades tradicionais.
A Queda do Céu no teatro
Em 2015, esteve presente ao lançamento do livro A Queda do Céu, de Davi Kopenawa e Bruce Albert, no Teatro Eva Herz, em São Paulo (foto do destaque deste post). Ficou apaixonado pela obra e logo se interessou em adaptá-la para o teatro, trabalho ao qual se dedicou este ano.
Em entrevista à CBN, o ator e amigo Pascoal da Conceição contou que, na noite anterior ao incêndio, Zé Celso ainda reviu o texto antes de dormir e que a peça será montada, devendo marcar a inauguração do Parque Teatro do Rio Bixiga. Ele será um dos atores.
Ao G1, a atriz Júlia Lemmertz contou que “ele estava adaptando ‘A Queda do Céu’ e ia começar a ensaiar agora em agosto. Estava cheio de vida, cheio de energia”. E completou:
“O mínimo é a gente conseguir aquele parque do Bixiga, fazer daquele Teatro Oficina realmente o templo do Zé e de todos nós, um lugar de muita força, muito encontro. A gente tem que manter essa chama dele, que não à toa ele ardeu até o fim”.
“Ele não merecia ir embora assim, desse jeito tão cruel, mas assim é a vida, a vida não faz o menor sentido. Não acabou, o que ele tem e o que ele nos deixa é infinito”, finalizou Júlia, aos prantos.
Queria aprender mais sobre os Guarani
Uma pena sua ausência neste momento em que estava tão envolvido com a cultura indígena. David Wera Popygua Ju, uma das lideranças do povo Guarani, de São Paulo (que atuou recentemente na versão de Ailton Krenak para a ópera O Guarani, no papel do protagonista), conta que há cerca de um mês encontrou-o para uma conversa sobre a luta dos povos indígenas.
“Ouvi atentamente cada palavra e percebi a tamanha humildade e grandeza de Zé Celso. Um sonhador que deixa um grande legado para a arte e a cultura brasileiras. Mesmo diante de sua grandeza me ouviu atentamente e disse que estava muito entusiasmado com o espetáculo que estava criando [A Queda do Céu]. Contou que se sentia impressionado ao aprender mais sobre a relação dos Guarani com a Mata Atlântica e que queria muito trabalhar com a presença da cultura e narrativa Guarani, e fez o convite para uma parceria”, relatou David, nas redes sociais, completando:
“A vida é assim, vamos sentir falta de sua liderança e coragem. Não podemos esquecer que esse guerreiro dedicou a vida para garantir a liberdade e o respeito à arte e à cultura brasileira. Por muitas vezes confrontado e atacado não deixou de ser um gênio em sua criação. Deixo aqui minha solidariedade a todos os familiares e amigos. Perdemos um grande guerreiro, mas ganhamos uma estrela que tem luz infinita por tudo que criou. Brilha guerreiro, seu legado é eterno. Descanse em paz Guerreiro! Aguyjevete!”.
Sonho antigo
O Parque do Rio Bexiga era um sonho antigo do dramaturgo que só não foi realizado porque Silvio Santos, dono do terreno ao redor do Teatro Oficina, nunca cedeu a suas propostas. A “briga” entre os dois começou nos anos 80, quando Zé Celso descobriu que o empresário planejava construir três grandes torres ao redor do seu teatro.
Em 2017, o grupo do Teatro lançou movimento envolvendo artistas e cidadãos para a preservação do emblemático edifício projetado por Lina Bo Bardi e o tombamento de seu entorno, convidando os interessados a enviarem pedidos de veto ao Governo do Estado de São Paulo contra a construção de torres residenciais no bairro do Bexiga, proposta que havia sido impedida e depois liberada pelo CONDEPHAAT – Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, veja só.
De acordo com o Globo, no ano passado, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) proibiu a prefeitura de autorizar a construção do empreendimento imobiliário no terreno, que havia sido liberada pelos órgãos de preservação municipais.
Ao mesmo tempo, o projeto para a criação do Parque Teatro do Bixiga (que seria negociado com uma permuta de terrenos com Silvio Santos) foi aprovado em duas votações. No entanto, foi vetado em 2020 pelo prefeito em exercício, Eduardo Tuma, e o Grupo Silvio Santos recorreu à segunda instância.
Há cerca de um mês, Zé e seu companheiro por quase 40 anos, o ator Marcelo Drummond (60 anos), enviaram convite para a cerimônia de seu casamento (realizada em 6/6 no icônico teatro; fez um ano hoje!) para Silvio. Espirituosos, sugeriram o presente: a doação do terreno. Silvio não respondeu.
Ao ganhar uma muda de ipê de Fernanda Montenegro e Fernanda Torres, como presente de casamento, logo imaginou que poderia plantá-la no famigerado terreno. Mas a Residencial Bela Vista, empresa do Grupo Silvio Santos, entrou com uma liminar para impedir a ação e, dias depois, Zé Celso recebeu notificação da Justiça avisando que é proibido fazer qualquer intervenção naquela área – o que incluía plantar o ipê, obviamente! – e, caso o fizesse, seria multado em R$ 200 mil.
Zé Celso certamente acreditava de que, em algum momento, ele e o empresario chegariam a um acordo plausível e bom para o teatro e para a cidade.
O diretor morreu sem realizar esse sonho, depois de muita luta – quatro décadas! -, marcada pela ganância e falta de visão de seu “adversário”. Em entrevista para a Veja, em 2017, ele chamou Silvio Santos de “mesquinho”. Mas, agora, o grupo que compõe o Oficina, artistas e muitos amigos já iniciaram campanha para lutar pela criação do Parque Teatro do Bixiga, como ele queria. “Por Zé e pela cidade”.
Antropofagia e Tropicália
O diretor nasceu em Araraquara, no interior de São Paulo, em 1937. Cursou a Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), mas não concluiu a graduação.
Nos anos 60, fundou o Teatro Oficina Uzyna Uzona, formado inicialmente por estudantes de Direito do Largo São Francisco. E assim iniciou a trajetória que chacoalhou as convenções da época e apresentou uma perspectiva revolucionária e subversiva para o cenário teatral e cultural brasileiro.
Protagonizou polêmicas ao colocar atores nus e cenas de relações sexuais, que, em algumas peças, convidavam (ou arrastavam) pessoas do público para participar, às vezes arrancando-lhes as roupas. Devido à peça Os Sertões, que apresentou em Berlim, em 2005, seu trabalhou ficou conhecido na Alemanha como “teatro pornô”.
Em 1967, a estreia de O Rei da Vela, peça escrita em 1933 pelo modernista Oswald de Andrade, ajudou-o a decretar seu teatro antropofágico e o Oficina tornou-se um dos pilares do movimento tropicalista. A peça voltou a ser encenada no palco do Sesc/Pinheiros, em 2017.
“Eu era colonizado. Mas aí chegou O Rei da Vela e Oswald de Andrade se tornou meu grande mestre, meu xamã. Fui interpretando tudo através dele: Shakespeare, Tchekhov”, declarou Zé Celso à revista Veja em 2017. “Toda a minha geração fez isso, a geração da Tropicália. A gente não engolia mais enlatado. A gente comia cultura colonizada e retornava com algo modificado. Nós todos, no fundo, somos índios”.
Lista Forbes
Dois dias antes do incêndio em seu apartamento, Zé Celso foi selecionado para a Lista 50 Over 50 2023 da revista Forbes, que homenageia personalidades de impacto em diferentes áreas, com idade acima de 50 anos.
Segundo o site da publicação, “a lista é uma celebração à vida, à vida longa e produtiva. Nela, estão nomes de gente que brilha intensamente depois de meio século de existência”.
Fazem companhia a Zé Celso nesse reconhecimento: a fotógrafa Claudia Andujar, o artista Cildo Meireles, o cineasta Karin Ainouz, a atriz e apresentadora Regina Casé, a cientista Ester Sabino, os músicos Milton Nascimento, Tom Zé e Arnaldo Antunes e a professora, acadêmica, administradora e economista Claudia Costin, entre outros.
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Fontes: Instituto Socioambiental, G1, ArchDaily, O Globo, Brasil de Fato, Forbes
Foto (destaque): Claudio Tavares/Instituto Socioambiental