O PL 2.148/2015, aprovado na Câmara dos Deputados por 299 votos a 103, na última quinta-feira (21/12), no apagar das luzes do ano legislativo, cria uma situação paradoxal: o Brasil se torna caso raro de país que estabelece um regime de cap-and-trade (limitação e comércio de emissões) no qual um setor importante da economia pode ganhar trade sem se submeter ao cap.
A ganância da bancada ruralista e dos desenvolvedores de projetos de carbono para poder gerar créditos em propriedades rurais produziu um texto legal que tira a credibilidade do REDD+ no país e pode dificultar a captação de recursos internacionais.
Os ruralistas já haviam pressionado, no Senado Federal, para o agronegócio primário ser nominalmente dispensado de participar do mercado regulado. Ou seja, cerca de 75% das emissões brasileiras (que vêm de desmatamento e da criação de gado, principalmente) de saída já ficaram fora da legislação.
Barafunda jurídica
Jogo jogado: embora o Executivo, autor da proposta original, preferisse não discriminar nenhum setor de saída e deixar a porta aberta para a inclusão posterior do agro, há um debate entre especialistas sobre quão eficiente é o mercado de carbono para regular as emissões de uso da terra.
A Câmara, porém, foi além da dispensa: no substitutivo do deputado Aliel Machado (PV-PR), é criada uma série de dispositivos para permitir que fazendeiros possam gerar créditos de carbono. Trata-se de um anseio antigo do agro, o de poder receber por mecanismos de mercado por manter as áreas de preservação permanente e reservas legais em suas propriedades – algo que os proprietários já são obrigados a fazer pelo Código Florestal.
São criadas, por exemplo, quatro definições diferentes para programas e/ou projetos de REDD+ e mais duas definições sobre REDD+, o mecanismo de redução de emissões por desmatamento regulamentado na Convenção do Clima das Nações Unidas.
Hoje, o REDD+ só opera formalmente em esquemas de pagamento por resultado e fora do mercado, como o Fundo Amazônia (no qual o Brasil recebe de doadores internacionais sempre que a taxa de desmatamento cair abaixo de um determinado patamar).
Há, ainda, um mercado voluntário de créditos de carbono, no qual empresas pagam a projetos privados ou comunitários por conservação de florestas para neutralizar emissões de suas atividades. A redução é verificada por organizações certificadoras internacionais.
O substitutivo de Machado cria uma pororoca de esquemas de REDD+: estatais e privados, de mercado e não-mercado. E faz isso bagunçando a contabilidade nacional de carbono florestal, o que pode prejudicar a captação de recursos para o país no Fundo Verde do Clima (que se fia numa contabilidade única federal) e o Fundo Amazônia.
Além disso, esvazia a Comissão Nacional de REDD+ (Conaredd) ao criar um sistema de créditos privados não sujeito às salvaguardas estabelecidas pelo colegiado. Apesar de tudo o que diz fazer para evitar a dupla contagem de créditos florestais (ou seja, uma mesma floresta ser contada duas vezes no esforço de mitigação), o PL aumenta o risco de dupla contagem com a barafunda jurídica no REDD+.
Faroeste de carbono florestal
Caso o PL seja aprovado como lei, cada fazendeiro do Brasil poderá, mediante uma carta, tirar sua propriedade da contabilidade nacional (que é única e federal) e gerar créditos a partir dela para o mercado – mesmo que a propriedade tenha desmatamento ilegal.
Além de diluir o esforço nacional de redução de emissões de desmatamento, a proposta inunda o mercado com créditos de floresta que não têm adicionalidade – já que manter reserva legal e APP é obrigação –, nem integridade ambiental, nem credibilidade.
A mesma bancada ruralista que dias atrás derrubou vetos presidenciais para poder espoliar terras indígenas e que usou seu poder político para escapar de limitação de emissões agora espera que os mercados internacionais confiem nela. Tudo isso num ano em que um estudo na revista Science mostrou que milhões de créditos de carbono florestal são falsos, baseados em estimativas furadas de conservação.
No mercado internacional, a chance de tal sistema atrair compradores é baixa. Isso porque, além do problema de credibilidade dos vendedores, pelas regras de projetos de carbono do Acordo de Paris, dadas pelo artigo 6.4, qualquer projeto que queira vender créditos precisa da chamada “adicionalidade regulatória” – ou seja, tem de ir além da legislação nacional.
Por uma manobra regimental, a Câmara pode vir a se tornar a Casa originadora do projeto – ou seja, caso o Senado altere o texto para devolver-lhe o bom senso, a palavra final será dos deputados.
“O projeto oficializa o faroeste de carbono florestal no Brasil. A ganância dos ruralistas, além de não levar a lugar nenhum, já que dificilmente alguém comprará esses créditos florestais, cria ruído num PL que estabelece um instrumento maduro e sofisticado para ajudar o país a cumprir suas metas climáticas com a maior eficiência possível”, disse Stela Herschmann, coordenadora-adjunta de Política Internacional do Observatório do Clima.
“O agro-ogro, junto com o lobby dos desenvolvedores de projetos de carbono, mais uma vez não perde a oportunidade de perder uma oportunidade. Primeiro ao pedir para sair do sistema, depois ao querer vender para o sistema, matando qualquer credibilidade socioambiental. O Brasil será a lavanderia de créditos podres de carbono sem-sem: sem adicionalidade, sem integridade e sem credibilidade”, afirmou Alexandre Prado, líder de Mudanças Climáticas do WWF Brasil.
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* Este texto foi publicado originalmente pelo Observatório do Clima em 21/12/2023
Foto: Zeca Ribeiro/Câmara dos Deputados