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Morte de Canelinha alerta para proliferação de sarna que debilita lobos-guará na região entre SP e MG

Em 2021, com apenas três meses, o lobo-guará Canelinha foi salvo de um incêndio em Mococa, interior de São Paulo, e entregue ao Instituto Pró-Carnívoros, onde passou pela primeira fase de reabilitação. Cerca de nove meses depois, ele foi levado ao mantenedor de fauna do Instituto Libio, para a segunda fase da reabilitação que o tornaria apto a ser solto na natureza e viver uma vida livre
(contamos aqui).

Morte de Canelinha alerta para proliferação de sarna que debilita tantos lobos-guará na região entre SP e MG
Canelinha com três meses, quando foi resgatado e entregue ao mantenedor
de fauna do Instituto Líbio para iniciar sua recuperação e reabilitação
Foto: reprodução de vídeo

A soltura foi realizada em 27 de abril de 2023, na Fazenda Ambiental Fortaleza, na mesma cidade. Portanto, faz dezesseis meses que Canelinha foi levado ao recinto preparado especialmente para ele e, assim que a grade foi tirada e sua saída liberada, ele saiu “correndo e pulando, sem olhar pra trás”, como destacou o médico-veterinário Jorge Salomão Junior (que acompanhou o lobo no Instituto Líbio), na ocasião (contamos aqui).

Munido de coleira GPS e de monitor cardíaco, o lobo-guará estava sendo monitorado pelos pesquisadores do projeto Sou Amigo do Lobo (do Instituto Pró-Carnívoros em parceria com o CENAP – Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Mamíferos Carnívoros, do ICMBio), que realiza dois trabalhos lindos na região de Mococa: de monitoramento da espécie e de educomunicação com o intuito de sensibilizar a sociedade sobre a importância da preservação desses lobos.

E tudo ia muito bem até que, em 11 de agosto último, o GPS emitiu ‘sinal de mortalidade’, que é enviado para a base de controle quando o animal que o carrega para de se movimentar por um longo (e anormal) período. “Quando isso acontece, há duas possibilidades: é realmente um aviso de mortalidade ou o colar caiu”, explica Rogério Rogério Cunha de Paulabiólogo e analista ambiental do ICMBio.

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“Programamos o colar do Canelinha para que enviasse sinal 16 horas depois de estático. Ainda não era o momento de o colar cair de seu pescoço, mas a gente sempre tem a expectativa de que o animal esteja vivo”. E acrescenta: “Canelinha estava se movimentando bem. A gente acompanhava diariamente. Ele estava circulando bem, dormindo à noite, de dia, ativo à noite, nada anormal. Por isso acreditávamos que poderia ser um problema na programação do drop-off”. 

Infelizmente, 24 horas depois do aviso do GPS, o lobo foi encontrado sem vida e seu corpo foi levado para o exame de necrópsia na USP. “Recolhemos os aparelhos e o monitor de batimentos cardíacos que pode nos dar informações de setembro para cá”, disse Rogério.

Esse foi o mês da última recaptura de Canelinha pelos pesquisadores, que, na ocasião, verificaram que ele estava muito bem. A primeira se deu cinco meses depois de sua soltura. 

“Ele estava muito bem de saúde em setembro, não tinha sarna, nada. Estava forte e tinha aumentado de peso. Também o monitoramos por câmeras. A última imagem que temos dele é de março, começo de abril. Também estava bem, não tinha qualquer marca ou falha na pele, ferimento, nada”, afirma Rogério que ainda conta que a equipe tentou capturá-lo outras vezes, sem sucesso.

Foram 20 dias de expedição de captura na região, que foi cercada de armadilhas, em vão. A intenção era medicá-lo contra sarna, de forma preventiva (como foi feito em setembro), porque havia registros de outros animais com a doença por onde Canelinha andava, e isso alertou biólogos e veterinários. 

A dificuldade de pegá-lo já era esperada por todos. Isso porque a personalidade de Canelinha – era tímido e arisco – já indicava que pegá-lo para aprofundar o monitoramento não seria tarefa fácil.

Morte fulminante

Dizer que Canelinha morreu de sarna é incorreto. Essa doença não mata, mas debilita fortemente o organismo, baixa a imunidade, provocando anemia e tornando o animal vulnerável a outros males. Alguns têm maior resistência à infestação; outros sucumbem facilmente.

A necropsia acusou vários problemas que podem ter levado o lobo à morte: edema pulmonar, pneumonia, insuficiência renal (foi identificada como infarto dos rins), além de inflamação na parte gastrointestinal, entre outras questões. O lobo não tinha nada no estômago e no intestino, portanto, durante as últimas 24 horas não consumiu alimentos. Estava fraco.

“Neste período seco, é mais difícil encontrar comida e, por isso, ele estava com baixa energia, certamente”, explica Rogério. “Para os lobos, é imprescindível ter o balanço energético equilibrado. Ele estava andando e não estava consumindo. Esse é um sinal de debilidade”. 

Foram recolhidas amostras para análise e identificação de outras doenças: ele testou negativo para raiva, por exemplo. Mas ainda faltam os resultados para cinomose, por exemplo, e enfermidades que possam ter levado à uma morte aguda como foi a dele. 

“Ele estava caído no meio de um pasto, o que significa que estava andando, caiu e morreu abruptamente”, explica Rogério. “Ele não estava fraquinho e se entocou para morrer, como fazem os lobos, os cachorros”.  

Para o biólogo, é muito difícil pensar que Canelinha se foi. “Um bicho forte, que sempre se mostrou super adaptado, ajustado ao ambiente que escolheu para viver. Os trabalhos de reabilitação e de soltura foram excepcionais. De todos os bichos que a gente reintroduziu, ele foi o que mais rápido se estabeleceu no território. Em 20 dias, ele já estava estabelecido na área que adotou como casa”. 

E acrescenta: “Agora mesmo, já morto, o corpo dele não tinha ferimento. Ele era conhecido e respeitado por todas as pessoas da região, os proprietários de fazendas… Foi um bicho que não sofreu atropelamento, não brigou com outros animais, não disputou território, não teve conflito com pessoas. Canelinha driblou tudo isso. Foi um bicho emblemático. Era o embaixador dos lobos-guará na região!”.

Para o veterinário Jorge Salomão Júnior, que acompanhou Canelinha até a soltura, a dor é grande. “É de estraçalhar a gente! Sabemos de todas as dificuldades a que esses animais estão sujeitos – atropelamento, caça, retaliação, fragmentação de habitat… -, mas a gente sempre torce pela adaptação. Então quando isso acontece, parece que tiram um pedaço da gente. É um companheiro que vai embora”.

E ele acrescenta: “Quero lembrar do Canelinha saindo, correndo, pulando e sem olhar pra trás – como foi na sua soltura tão especial -, e focar também no tempo em que ele viveu em vida livre e teve a oportunidade de ser um lobo. Espero que tenha sido tão bom pra ele como foi pra nós. Ele nos ensinou muito, me ensinou coisas que eu posso utilizar para melhorar o trabalho com outros animais. É sempre um aprendizado e vamos continuar! Por mais que a gente ‘apanhe’, já está difícil pra eles com a nossa ajuda, imagina sem. Então, a gente tem que fazer pelo menos o mínimo possível pra ajudar essa bicharada”. 

Morte de Canelinha alerta para proliferação de sarna que debilita tantos lobos-guará na região entre SP e MG
Canelinha, lindo e elegante, no período de reabilitação
Foto:
acervo Instituto Líbio

O legado de Canelinha

Como destacou Jorge, a convivência com este lobo-guará tão especial rendeu, aos profissionais envolvidos em todas as fases desse trabalho, muito aprendizado e a possibilidade de testar novas formas de lidar com a espécie na reintrodução, na soltura e no monitoramento: mais efetivas e menos custosas.

Canelinha foi o primeiro animal libertado em soltura abrupta, ou seja, ele foi reabilitado e treinado numa área e solto em outra área. O recinto do qual ele saiu “galopando” para a floresta era provisório. Rogério explica que o que a equipe fazia, até então, era treinar os bichos no recinto instalado na área onde ele viveria, teoricamente. Mas com o Canelinha não foi assim. Ele não conhecia a área onde foi solto. 

Morte de Canelinha alerta para proliferação de sarna que debilita tantos lobos-guará na região entre SP e MG
Canelinha durante a fase de reabilitação / Foto: Rogério Cunha

“Tanto é que saiu dessa área – onde foi solto – no mesmo dia e logo se instalou em outra. Canelinha nos mostrou que isso é possível de fazer sem prejuízo da readaptação do animal. E isso é muito importante porque esse procedimento é muito menos custoso pra gente adotar no CETAS – Centro de Triagem de Animais Silvestres, por exemplo”. E Rogério completa: “É necessário obedecer a alguns critérios – foi o que a gente fez, propôs, trabalhou, desenvolveu protocolos… – e vimos que é possível”.

Para o analista ambiental, Canelinha foi como um embaixador dos lobos na região, porque chamou a atenção das pessoas para os lobos de Mococa. E, agora, ele espera que tudo que Canelinha proporcionou, também com sua morte, ajude os pesquisadores a criarem um plano de ação para o problema da sarna

“A gente tem falado disso há sete anos, desde os primeiros bichos que capturamos com sarna na região. E precisamos desenvolver uma estrutura de combate a esse mal de forma muito mais ostensiva do que temos feito. Mas só nós não conseguiremos”, alerta. 

O biólogo conta que já existe uma estratégia de ação dentro do PAN Canídeos – Plano de Ação Nacional para a Conservação dos Canídeos Silvestres, do ICMBio, “mas a gente precisa de parceiros e de recursos para poder expandir”, explica.

Sarna: um dos maiores males para os lobos-guará

A sarna tem sido um dos maiores males para os lobos nessa região entre São Paulo e Minas Gerais, que envolve os municípios de Mococa, Casa Branca, São José do Rio Pardo e Arceburgo. Toda essa área no nordeste de São Paulo e sudoeste de Minas é o epicentro da sarna. Em 2021, contabilizamos sete casos ali, inclusive em animais que a gente monitorava desde 2019, que nunca haviam tido sarna.

E é importante frisar que a sarna não mata os lobos. “Não mata, mas infecta, provoca problemas no maior órgão do corpo, que é a pele. Se a pele não está saudável, o bicho não vai ser saudável. Quando a imunidade baixa e a pele está totalmente infestada por esses ácaros, eles cavam tuneis na pele, provocam coceira e pode provocar uma septicemia. Ao se coçar, o bicho abre a porta de entrada para uma infecção, que pode se tornar severa, ainda mais se uma mosca deposita larvas ali, que comem o bicho por dentro, um show de horror!”, relata o biólogo. “É o que eu acredito – minha opinião – que aconteceu com o Canelinha”.

De dois anos pra cá, no sul da Serra da Canastra, em Delfinópolis, numa área que ainda não foi desapropriada, mais na borda do parque, entrando numa zona que seria continua da região que é o “centro da sarna”, apareceram casos recorrentes de sarna.

Pra se ter ideia da dimensão da situação na atualidade, na semana passada, no Parque Nacional da Serra da Canastra – que é o maior santuário para o lobo-guará no país, uma das áreas mais importantes para a espécie em toda a área de distribuição – foi registrado o primeiro caso de sarna. “É assustador!”, alerta Rogério.

“O lobo veio de uma área de fazenda, de pastagens, então a gente não acredita que seja residente do parque, mas que seja um bicho que usa a área externa e interna dele. O caso foi registrado na borda do parque, por meio de uma câmera [de armadilha fotográfica] a 300 metros, numa estrada clandestina, que é acesso a uma área de mineração. Foi por essa estrada que entraram javalis no parque há quase 30 anos! Essa é também a estrada pela qual entra caçador com cachorro. Já se tentou fechar a estrada, mas ela é sempre reaberta por causa de mineração. Como é uma área que não tem platô, é muito fácil de acessar o parque por ela. Provavelmente esse lobo foi contaminado por animais de fora do parque”. E pode contaminar animais da reserva.

“A velocidade com que a gente tem perdido lobos para a debilidade que a sarna provoca assusta muito. Temos orientado as pessoas para medicarem os lobos na região, mas têm aparecido mais”, conta Rogério.

“A doença está cercando a Canastra! Disseminar sarna para aquela população de lobos, que é teoricamente estável, indivíduos que não têm tanta adaptação para lidar com essas adversidades porque eles estão numa área pura, numa área perfeita, é um grande problema. A gente vai ter um massacre de lobos!”, alerta.

O biólogo destaca também que, nos últimos três anos, tem havido uma grande evolução no conhecimento sobre a dinâmica dessa doença. “Flávia Fiori está terminando o mestrado sobre essa avaliação. Em nossas análises, todos os lobos de que temos registro, cruzamos com algum tipo de passagem pra identificar se há alguma característica peculiar. E o que identificamos é que os bichos que aparecem com sarna vivem em paisagens com mosaico que incluem pastagens, ou seja, áreas degradadas”. Onde há preservação, não há sarna.

“De acordo com o estudo da Flávia, os ácaros não resistem muito, nem estão associados com áreas de vegetação nativa, mas sim ao capim, ao pasto plantado que retém mais umidade. Então, o habitat desse ácaro tem uma configuração especifica, onde ele fica resistente e disponível para outros bichos pegarem e carregarem para outros lugares”. 

Quem sabe, com sua morte, o Canelinha ainda pode ajudar os pesquisadores a desenvolverem estratégias de combate à proliferação da sarna entre os lobos na Canastra e em outras regiões. Ao examinar o corpo do lobo, a médica veterinária Flávia Fiori, do Instituto Pró-Carnívoros, coletou, pela primeira vez – em sete anos de trabalho -, um ácaro vivo! “Ele estava vivo depois de 24 horas que Canelinha morreu!”.

E por que isso é tão importante? “Quando a gente coleta o ácaro morto da pele de um lobo, não tem muita informação. A gente sabe qual é o tipo de sarna – sarcóptica – e só! Mas o que a gente quer, agora, é descobrir de onde vem essa sarna. É a mesma, geneticamente, que a sarna do cachorro, que é a mesma do ser humano? Ou está circulando no meio silvestre por outros animais?”, questiona Rogerio.

Se estiver circulando entre os animais silvestres por causa dos cachorros, será feito um trabalho de conscientização com moradores da região e proprietários das fazendas para que cuidem devidamente de seus cães. Mas, segundo Rogério, todos os cachorros capturados em armadilhas ou analisados nas fazendas, não têm essa sarna. 

Então, o que talvez o ácaro coletado vivo e congelado pelos pesquisadores pode oferecer é material genético que ajude a descobrir a realidade e a salvar os lobos-guará.

“Que a perda do Canelinha não seja em vão! Que ela nos ajude a levantar essa bandeira! Ele tem um nome e uma história. Então, que a gente consiga, com base nesse emblemismo, chamar a atenção para essa doença que tem trazido tanto mal para os lobos”, acrescenta o biólogo.

Descendentes?

O trabalho de recuperação e conservação de um animal vulnerável envolve muitas fases desde seu restabelecimento, desenvolvimento, soltura (quando é o caso), readaptação até a reprodução. E a pergunta que fica sem resposta é se Canelinha deixou descendentes.

No caso das fêmeas, é fácil de identificar porque ocorrem mudanças em seu corpo, seu comportamento e sua movimentação mudam totalmente. Mas, em relação ao macho é mais difícil.

O fato é que este era o sonho das equipes dos projetos Sou Amigo do Lobo Lobos do Pardo. Afinal, como explica Rogério, “esse é o sucesso final de um processo de reintrodução: os bichos se adaptarem à vida nova, não morrerem de fome, se estabelecerem no território e reproduzirem”.

Nunca saberemos se Canelinha “cumpriu” essa parte de sua evolução, mas uma pessoa que acompanhou o biólogo e equipe no resgate do corpo do lobo contou que viu um filhote de lobo-guará ali perto da área em que Canelinha foi encontrado, então pode ser que ele tenha deixado, ao menos, um descendente. 

“A gente espera que ele tenha alcançado todas essas fases do trabalho de conservação”, finaliza Rogério Cunha. Ficam o desejo e o sonho.

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Foto (destaque): Rogério Cunha de Paula/ICMBio

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