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Manto Tupinambá pode contribuir com demarcação de terra, e ainda há dez outros mantos em museus europeus

Por Vitor Abdalla*

O retorno de um manto tupinambá, feito com penas vermelhas de ave guará, para o Brasil – depois de mais de três séculos guardado na Dinamarca – (como contamos aqui), foi motivo de celebração para o povo indígena, que vive no sul da Bahia. O artefato foi devolvido pelo Museu Nacional dinamarquês ao Brasil, para o Museu Nacional do Rio de Janeiro.

O manto Tupinambá que chegou ao Brasil no início de julho
Foto: Museu Nacional da Dinamarca/divulgação

No entanto, outros dez mantos semelhantes, também confeccionados com penas de guará, continuam expatriados em museus europeus, segundo levantamento feito pela pesquisadora norte-americana Amy Buono, da Universidade de Chapman. Apenas no Museu Nacional da Dinamarca, há outros quatro além do que chegou ao país no início de julho.

No Museu de História Natural da Universidade de Florença, na Itália, estão outros dois. Há também mantos Tupinambá no Museu das Culturas, em Basileia, na Suíça; no Museu Real de Arte e História, em Bruxelas, na Bélgica; Museu du Quai Branly, em Paris, na França; e na Biblioteca Ambrosiana de Milão, na Itália.

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Um dos mantos Tupinambá que ainda estão no Museu Nacional da Dinamarca
Foto: divulgação
Manto Tupinambá em exibição no Museu Real de Arte e História de Bruxelas
Foto: divulgação

Segundo o Museu Nacional do Rio de Janeiro, no entanto, não há negociações em andamento para trazer esses outros mantos de volta.

Líder dos tupinambás de Olivença, na Bahia, Jamopoty – a primeira cacica mulher desse povo – considera importante reaver esses mantos também. 

“Acho que eles precisam devolver o que não é deles. Eles precisam devolver o que nos pertence. O pertencimento é o que faz a gente ser mais forte”, afirma a liderança indígena (leia a entrevista, que ela concedeu à Agência Brasil, mais adiante).

A devolução do manto indígena que retornou recentemente ao Brasil é uma luta antiga do povo de Jamopoty, iniciada em 2000, quando a liderança tupinambá Amotara – a anciã Nivalda Amaral de Jesus –, viu a peça em uma exposição especial, em São Paulo, sobre os 500 anos da chegada dos portugueses ao Brasil.

“Ela fez um documento, junto com o Conselho [Conselho Indígena Tupinambá de Olivença (CITO)], pedindo que o manto ficasse no Brasil, porque ele precisava vir para o seu povo. Amotara queria que o manto viesse para Olivença”, conta Jamopoty.

Apesar do apelo do cacique, o manto retornou à Dinamarca no fim da exposição. Seriam precisos mais 24 anos para que finalmente a vestimenta retornasse ao Brasil, desta vez para ficar.

Assojaba ou guara-abucu 

De acordo com pesquisa feita por Amy Buono, os mantos tupinambás, chamados de assojaba ou guara-abucu, na antiga língua tupi, foram todos confeccionados entre os séculos XVI e XVII. As vestimentas eram usadas em rituais religiosos nas comunidades indígenas, mas também em assentamentos missionários, nos dois primeiros séculos de colonização.

Artefatos plumários, inclusive panos feitos com penas coloridas já eram usados pelos tupis antes mesmo da chegada dos portugueses, tendo sido inclusive descritos por Pero Vaz de Caminha, em sua famosa carta ao Rei Dom Manuel de Portugal.

Desde a primeira viagem portuguesa ao Brasil, artefatos tupis foram levados para a Europa e continuaram sendo ao longo das décadas seguintes, como evidências da “descoberta” do novo território e como itens valiosos para coleções europeias.

O governo brasileiro tem feito esforços para repatriar artefatos indígenas. Na última quarta-feira (10), 585 peças que estavam no Museu de História Natural de Lille (MHN), na França, retornaram ao Brasil. O conjunto de objetos provém de mais de 40 povos diferentes, segundo a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai).

(o texto a seguir faz parte de outra reportagem da Agência Brasil, também publicada em 14/7/2024)

“Agora vamos demarcar nossa terra!”

Habitantes do litoral brasileiro, os indígenas do grupo tupi foram alguns dos primeiros a ter contato com os portugueses, quando estes desembarcaram na Bahia, em 1500. Também por isso foram os que mais sofreram nos primeiros séculos de colonização europeia no Brasil.

Escravizados para a exploração do pau-brasil, exterminados por doenças e conflitos com os novos colonizadores e, por fim, aculturados por força do processo de evangelização promovido pela Igreja Católica, os Tupinambá viram suas terras sendo usurpadas e sua cultura sendo gradativamente apagada.

Já com o Brasil independente, no final do século XIX, considerava-se os Tupinambáextintos como povo e que seus descendentes não mantinham mais ligação com suas tradições ancestrais. Por isso, o Estado retirou deles os direitos indígenas diferenciados.

Os próprios Tupinambá consideravam-se “caboclos” ou mesmo “índios civilizados”, de acordo com o Instituto Socioambiental (ISA). Mas nada disso foi suficiente para apagar sua memória ancestral e para que eles abandonassem sua identidade indígena.

Em 2001, o povo Tupinambá de Olivença finalmente voltou a ser reconhecido como indígena pela Funai. E, em 2009, depois de décadas de conflitos fundiários com fazendeiros, tiveram sua terra indígena delimitada.

Apesar disso, a luta pelo reconhecimento de seus direitos ainda não terminou. A Agência Brasil conversou com Jamopoty, que falou sobre os desafios para resgatar sua cultura ancestral, a luta pela conclusão do processo de demarcação de suas terras e o retorno, ao Brasil, do primeiro manto feito com penas de ave guará, que tem quatro séculos de idade e estava no Museu Nacional da Dinamarca desde o fim do século XVII.

Cacique Jamopoty: “Com o manto, agora vamos demarcar nossa terra!
Foto: divulgação

Depois de séculos, o manto tupinambá que estava na Dinamarca voltou ao Brasil. Seu povo aguardou esse momento por muitos anos e esperava estar presente na chegada dele ao Brasil. Mas não foi isso que aconteceu. O Museu Nacional recebeu o artefato e só depois avisou que ele estava no Brasil. Como foi isso para vocês?

Nós estávamos planejando a chegada desse manto, que para nós é um ser vivo. Estamos chamando-o de ancião, um ancião de 400 anos que foi levado do nosso povo. 

Amotara foi a primeira anciã [tupinambá] a reconhecer o manto, em São Paulo [em 2000, quando ele estava no país, emprestado pelo Museu Nacional da Dinamarca para uma exposição sobre os 500 anos da chegada dos portugueses ao Brasil] e ela dizia que o manto precisava estar entre nós. 

Nós dissemos que o manto não podia chegar no Brasil sem nós. Ele chegou sem nós e está, até hoje, sem nós no Museu Nacional do Rio de Janeiro.

Estamos felizes por ele estar no Brasil, mas ao mesmo tempo tristes, porque ainda não fizemos nossa parte espiritual. Ele é um ser vivo, é a nossa história. Nós planejamos tudo isso [a recepção do manto pelos tupinambás] com nossos anciãos da aldeia e não aconteceu. Ele chegou sem a gente saber.

Qual a importância do retorno desse manto para o seu povo?

Houve tantos retrocessos em nossas vidas, nós ainda não temos nossa terra demarcada, nosso território está todo invadido. Então, a gente vai buscando um sentido de nos aprofundar como povo. E o manto é um desses sentidos. 

Hoje, ele está no Museu Nacional, mas ele é nosso. Ele tem um povo, um povo que o Brasil dizia estar extinto. No entanto, estamos aqui. Então ele é um pouquinho da nossa história. Estamos nos organizando e vamos até o Rio de Janeiro [para encontrar o manto] e esse dia vai ser muito importante para nós.

Seu povo vem há séculos tentando sobreviver e manter suas tradições, em meio ao extermínio, à influência de outras culturas, a conflitos fundiários. O que o manto representa nessa luta pela identidade dos tupinambás e pelo seu reconhecimento como povo?

Nossa terra foi delimitada, já tem até o levantamento fundiário dela, mas não foi assinada a portaria declaratória da terra. Ela precisa ser assinada. 

Quando a Dinamarca devolve o manto, ela está confirmando que levou um artefato de um povo que estava aqui nessa região há 400 anos. Isso afirma a história do nosso povo. 

Os tupinambás foram os primeiros a serem atacados [a partir da chegada dos portugueses], nós fomos quase dizimados. Com essa luta toda, nosso território ainda não foi demarcado. O manto tupinambá traz a força para os povos, não só para os tupinambás, mas para os outros povos. Acredito que essa força não veio à toa. A gente vai conseguir, através da chegada do manto, a portaria declaratória da nossa terra.

Como vocês têm tentado manter suas tradições e recuperar sua cultura ancestral?

Nossa luta é árdua. Sabemos que tudo será pela educação: o fortalecimento da cultura, o fortalecimento da língua. Nós construímos os conselhos de educação e fomos para cima do Estado dizer: “Nós somos indígenas! Queremos nossa cultura, queremos nossa educação diferenciada!”. 

Não existe povo forte, sem educação, sem sua cultura, sem sua forma de viver. Dizem que somos supostos índios, que não somos mais indígenas. Somos reconhecidos pelo governo brasileiro, mas ainda precisam reconhecer nossa terra. 

Estamos na luta pelo resgate da nossa língua, estamos na luta pelo resgate da nossa educação, buscando viver nossas tradições, respeitando uns aos outros. Estamos sempre valorizando nossa terra, sempre valorizando o meio ambiente, nossas nascentes, nosso mar. Onde tem ar puro é onde o índio habita. Então a gente vai preservar nem que isso custe a nossa vida.

O povo tupinambá está satisfeito com o manto ficar sob a guarda do Museu Nacional ou preferia que o artefato estivesse com vocês?

Num primeiro momento, a Amotara queria que o manto viesse para a aldeia, mas ela mesma entendia que o manto tinha 400 anos, que não podia estar guardado em qualquer lugar. Ele está no Rio de Janeiro, na biblioteca do Museu Nacional, porque o museu ainda não terminou a reforma [depois do incêndio que o destruiu em 2018]. 

Nós ainda não o vimos, então não podemos dizer que tratamento o manto está recebendo. Mas o Museu diz que está construindo um lugar adequado para receber o manto, com climatização, com luz, com tudo para o manto. 

A gente gostaria que o governo brasileiro demarcasse nosso território, construísse um museu e desse todas as condições dentro da nossa aldeia, nós estaríamos mais preparados para receber o manto. Mas ele foi para o Rio de Janeiro, que também é um território Tupinambá. A gente entende que o manto tem 400 anos, está meio fragilizado.

Se, hoje, o Museu Nacional tem condições de cuidar dele, a gente vai estar junto. E tem também outros mantos [Tupinambá] que estão em outros países [como mostramos acima]. Então, a gente espera também que [os países] têm que devolver esses mantos e também outras peças que pertencem a outros povos.

*Os dois textos reproduzidos aqui (museus guardam outros dez mantos e entrevista com Jamopoty) foram publicados originalmente no site da Agência Brasil em 14/7/2024
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Foto (destaque): Paulo Pinto/Agência Brasil e divulgação do Museu Nacional da Dinamarca e do Museu de Arte e História de Bruxelas

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