O Ministério da Saúde divulgou ontem (15/12) um novo boletim epidemiológico sobre o número de casos de microcefalia no Brasil associados ao Zika vírus. Até o momento, foram registrados 2.401 casos suspeitos e 29 mortes, espalhados em 549 municípios de 20 estados do país. Pernambuco e Paraíba continuam sendo os locais com o maior número de casos, com 874 e 322, respectivamente. Há um mês, nasceu também numa maternidade de Guarulhos, em São Paulo, uma criança com microcefalia. Pode ser o primeiro caso da doença relacionada com o Zika vírus neste estado. Outros cinco estão sendo analisados.
Difícil não se alarmar com a notícia. Para se ter uma ideia, no ano passado, foram somente 12 registros de microcefalia em Pernambuco. Com a relação já estabelecida pelo governo entre a doença e o Zika, transmitido pelo mosquito Aedes aegypti, o mesmo que provoca a dengue, o Brasil está em estado de alerta. E sobretudo, os meios médico e científico.
Doutor em Ciências Biológicas (Microbiologia) e pesquisador do laboratório de Virologia do Instituto de Medicina Tropical da Universidade de São Paulo (USP), José Eduardo Levi trabalha há anos estudando diversos tipos de vírus. Em entrevista ao Conexão Planeta, o especialista falou sobre o que realmente se sabe até agora sobre o Zika, sua relação com a microcefalia e a Síndrome de Guillain-Barré e a possibilidade de outros mosquitos se tornarem transmissores do vírus.
Além disso, ressalta que o passo mais importante para enfrentar o Aedes aegypti é investindo em pesquisa, realizada aqui no país.
Quais são as certezas e comprovações sobre o Zika vírus?
O Ministério da Saúde já declarou que está estabelecida a relação entre o Zika e a microcefalia. Nós, da área de pesquisa, somos mais cautelosos. Nem tudo que parece evidente, na prática, é real. Eu, particularmente, acho que existe a relação entre o Zika e a microcefalia. Mas ainda não temos um estudo que mostre isso. Estamos nos baseando na questão das mães relatarem os sintomas de Zika e depois as crianças nascerem com microcefalia e o achado de dois casos em que se encontrou o vírus no líquido amniótico de dois bebês que nasceram com a doença. Esta é a principal evidência encontrada e é bastante forte. Mas o que não sabemos, por exemplo, é quantas mães tiveram Zika e os filhos não tiveram microcefalia. Qual trimestre da gravidez em que ocorre o maior risco? Normalmente é no início. Então faltam alguns detalhes ainda.
A principal dificuldade é que não existe nenhuma literatura médica ainda sobre o Zika?
A primeira vez que foi descoberta e relatada a relação entre microcefalia e Zika vírus foi aqui no Brasil. E por que nunca antes tinha sido relatada? Porque esses grupos de vírus que são transmitidos por mosquitos e que causam doenças em humanos já são bem conhecidos, entre eles, o mais próximo do Zika é o da dengue. E dengue certamente não causa microcefalia. Então em nenhum dos outros vírus que a gente conhece – o oeste do Nilo, St. Louis ou febre amarela -, nenhum deles causa má formação fetal. Foi uma novidade mesmo, uma percepção dos clínicos de Pernambuco que levantaram esta associação. Depois ela ficou tão forte, que ficou evidente para todo mundo. Mas nunca ninguém tinha descrito isso na literatura antes.
Mas já houve uma epidemia do Zika antes?
Sim, mas esta é a primeira vez que o vírus atinge um país grande, como o Brasil. A primeira grande epidemia que houve foi na Polinésia, em 2007. Mas era uma ilha com 15 mil habitantes. Se você for ver quantas pessoas engravidaram naquele lugar e como foi o atendimento médico lá, será completamente diferente do que aconteceu agora no Brasil.
Ele é um vírus novo ou já há relatos antigos na história?
Ele é um vírus descrito na década de 40 na África (mais exatamente na Floresta de Zika, em Uganda, e é por esta razão que se escreve Zika com letra maiúscula, porque vem do nome de uma floresta)
Alguns especialistas apontam a possibilidade do Zika ser transmitido por outros mosquitos, além do Aedes aegypti. Isto é verdade?
Esta é uma boa pergunta. O Aedes aegypti é o mais eficiente porque é o mais “amigo” do homem. Dentro dos mosquitos que chupam o sangue humano ou de mamíferos grandes, o aegypti se adaptou a morar dentro da casa das pessoas, a procriar no pratinho da planta ou em qualquer outro reservatório de água. Quem conhece o mosquito sabe que hoje ele pica em qualquer horário porque já se acostumou com luz artificial. Por isso ele é o melhor transmissor.
Mas outros podem vir a transmitir o Zika?
Na Europa, há pouquíssimo Aedes aegypti . Todavia, na Itália, quem transmitiu o chikungunya foi o Aedes albopictus, que nem é muito acostumado a ambientes internos. Então, às vezes há um fenômeno de que um vírus é bem transmitido por um mosquito, mas depois ele se adapta a outra espécie, que acaba se tornando também transmissor. O mosquito mais abundante em São Paulo é o culex. A gente sabe que ele não transmite dengue, mas o vírus do oeste do Nilo, que é da mesma família do Zika e da dengue, é transmitido muito mais pelo culex do que pelo Aedes. Então não é nada absurdo pensar que o Zika possa ser transmitido por outros vetores, como dizemos. E mesmo que ele não esteja transmitindo agora, nada impede que ele se adapte a este novo vetor. É um temor que temos. Mas hoje não há nenhum dado de culex infectado com Zika.
Além da microcefalia, o Zika pode provocar outras doenças?
O que ouvi foi que os médicos de Recife e Campina Grande relataram que algumas crianças recém-nascidas apresentaram calcificações no cérebro (substituição de um tecido vivo por um morto), mas não microcefalia. E nas que têm microcefalia, também há calcificação. Então pode ser uma manifestação mais branda do vírus. Em crianças maiores, idosos e adultos está sendo estudada a relação com a síndrome de Guillain-Barré – uma manifestação neurológica grave, que provoca a inflamação dos nervos e deixa a pessoa incapacitada-, possivelmente disparada pelo Zika vírus.
E a ligação entre a Síndrome de Guillain-Barré e o vírus já está comprovada?
A síndrome é um quadro raro, mas que acontece por causa de várias outras infecções. Então é mais difícil criar esta associação com o Zika. Mas o pessoal que está tratando diretamente com os casos no Nordeste, tem reparado que os pacientes que apresentaram o Guillain-Barré relataram sintomas do Zika.
Já existe um diagnóstico preciso das pessoas infectadas com o Zika?
Na verdade, o diagnóstico laboratorial fechado ainda é incipiente. Ainda está sendo desenvolvido. Hoje vamos pela suspeita.
Mas recentemente o governo de São Paulo anunciou que gestantes seriam submetidas a testes para apontar o contágio pelo Zika…
Eles anunciaram, mas é melhor perguntar a eles… O único teste que temos para Zika é um molecular. Estamos trabalhando ainda aqui, assim como em outros laboratórios de São Paulo. Estamos trocando amostras e controles para ter testes para oferecer à população. Hoje se entrar uma amostra aqui temos dificuldade para fazer e não com muita segurança.
A Secretaria de Saúde de São Paulo também afirmou que tem certeza que haverá casos de microcefalia no estado e que a epidemia se alastrará por outra regiões do país. Existe este risco?
Eu trabalho com pesquisa de vírus há muito tempo e já ouvi diversos “vai” que nunca aconteceram. Por outro lado, é sempre melhor dizer que vai acontecer do que negar a possibilidade. Há muitos anos eu trabalho com o vírus do oeste do Nilo, que é transmitido por mosquito e causa uma série de doenças. Este vírus causou uma epidemia horrível nos Estados Unidos e todo mundo disse que ele chegaria ao Brasil. Estamos monitorando há um tempão e há um caso suspeito em humanos no Piauí, alguns cavalos no Pantanal. Nunca chegou de verdade no Brasil. Então eles são surpreendentes. Mesmo com a questão da microcefalia, nunca ninguém havia cogitado e de repente apareceu.
Como se explica que o surto de Zika é mais forte em estados como Pernambuco se em outros lugares há também a presença em grandes quantidades do mosquito Aedes aegypti?
É uma questão cronológica. Provavelmente o primeiro infectado, que trouxe o vírus para o Brasil, foi para o Nordeste. Há a teoria da Copa do Mundo, que é boa (segundo a qual o Zika teria chegado ao país junto com espectadores e atletas que participaram dos jogos em Natal ou Recife em 2014). Provavelmente é por isto que a região apresenta um número muito maior de casos de Zika até o momento. Esta é a conclusão mais óbvia.
O Ministério da Saúde recomendou que mulheres que vivam nas regiões mais afetadas pela epidemia evitem engravidar. Você concorda com esta recomendação?
Acho que essa é uma decisão bem pessoal. Eu não a faria. Se a pessoa quer ter filho, quando vai poder engravidar? Porque o vírus chegou para ficar. Minha recomendação é ter muito cuidado durante a gravidez. Usar repelente, evitar viagens à áreas que estão com surto de Zika e tomar o máximo de cuidado.
E quais são as recomendações para as pessoas que estão nas áreas de risco?
As mesmas para evitar o mosquito da dengue. Limpar a casa, evitar deixar água parada em recipientes e usar o repelente.
Muitas pessoas estão alarmadas com as notícias publicadas na mídia. Qual é a situação real da epidemia?
Eu trabalho no banco de sangue da Fundação Pró-Sangue e não vou mentir: estou muito preocupado. Porque quando o Zika chegou lá na Polinésia, houve uma disseminação explosiva. Nós já vimos como foi a proliferação da dengue em algumas regiões do Brasil, principalmente no ano passado, em São Paulo. E eles têm o mesmo vetor: o Aedes aegypti. Combater o mosquito eu acho realmente difícil. Não acredito mesmo. Com a enorme quantidade de lixo, terreno baldio e entulho jogados e uma quantidade enorme de focos do mosquito que há pela cidade, me preocupa sim ter uma baita epidemia de Zika, com grávidas tendo crianças com microcefalia e pessoas com Guillain-Barré. Mas pode ser que o mosquito que carregue a dengue não comporte outro vírus, então a dengue nos protegeria do Zika.
O principal desafio então é ter mais informações sobre o mosquito?
Sim, é o que já deveria ter sido feito há muito tempo: um investimento gigantesco em pesquisa do mosquito. Não há um repelente brasileiro feito aqui, compra-se dos Estados Unidos. A única vacina de dengue, que ainda não está validada, foi desenvolvida por um laboratório internacional. O mosquito transgênico, a ser validado pelo Brasil, é uma tecnologia inglesa. É necessário, por exemplo, desenvolver um teste para dengue, um para Zika e outro para chikungunya. E uma vacina para cada um deles. O mais correto e mais lógico é acabar com o vetor – o mosquito – e é nisto que deveríamos focar.
Fotos: Jentavery/Creative Commons/Flickr e arquivo pessoal