Aquele mochilão grande e desengonçado ainda não tinha sido desfeito. As memórias das andanças pelos Andes e pelos desertos do norte da Argentina estavam muito frescas na cabeça. Uma overdose de cores, paisagens e bichos tomava minha mente. Mas, como qualquer bom viajante, não gosto de esquentar cadeira. Apenas cinco dias após minha chegada dessa longínqua região, parti novamente para a estrada, desta vez rumo à Cordilheira do Espinhaço.
O Espinhaço é meu quintal desde que me entendo por gente. Cortando os estados de Minas Gerais e Bahia no sentido norte-sul, é a segunda maior cordilheira de montanhas da América Latina, e uma das mais antigas e biodiversas do mundo. Foi onde me apaixonei pelas montanhas, pelo Cerrado e pelo campo rupestre. Mas nessa vida meio nômade, hora aqui, hora ali, a gente acaba aprendendo a enxergar além do óbvio. Como sou biólogo e ecólogo de formação, geralmente volto minha atenção para a fauna, a flora e as paisagens por onde ando. E passando num intervalo de tempo tão curto por ambientes tão diferentes, eu não poderia deixar de fazer minhas observações. Os Andes e o Espinhaço têm contrastes marcantes, mas também, guardam suas semelhanças.
Por incrível que pareça, ambas as cordilheiras tiveram uma origem parecida: a colisão de placas tectônicas que levou ao dobramento do relevo. Mas por quê então os Andes são tão mais altos? Por quê o Espinhaço é tão mais biodiverso? Por quê a paisagem e as rochas são tão diferentes nessas duas regiões? Por quê a fauna e flora são distintas?
A resposta para todas essas perguntas está no tempo. O choque entre placas que levou ao surgimento da Cordilheira do Espinhaço aconteceu há muito, muito tempo atrás, tanto tempo que nós humanos mal conseguimos imaginar: 1,8 bilhão de anos. Isso mesmo, mil e oitocentos milhões de anos!
Nessa época, ainda nos primórdios da vida na Terra, os continentes tinham uma conformação completamente diferente da atual, e assim também era o relevo e as paisagens. Estima-se que, quando o Espinhaço foi formado, ele chegou a ter cerca de 6000 m de altitude, tal como os Andes são hoje. Com o tempo, as intempéries do clima, a chuva, o vento, o sol, o gelo, os gases diversos e os micro-organismos, as cristas dessas montanhas foram sendo erodidas, lapidadas e descamadas. Lentamente, os picos pontiagudos se transformaram nas serras que vemos hoje.
A Cordilheira do Espinhaço pode não rivalizar com os Andes em altura, mas o faz em biodiversidade.
Aqui estão localizadas 15% das espécies de plantas de todo o Brasil, e cerca de 40% delas,
aproximadamente 2000 espécies, não podem ser encontradas em nenhum outro lugar do mundo
Os Andes, por outro lado, continuam passando por este estágio inicial, em que ainda estão crescendo. Com “apenas” 5 milhões de anos, são jovenzinhos no tempo geológico. Tão jovens que poucos organismos tiveram “tempo” de se adaptar àquelas condições ambientais. Num linguajar mais correto, a seleção natural teve pouco tempo para atuar, sendo assim, pouquíssimas formas de vida puderam sobreviver e colonizar essas muralhas naturais cobertas de neve.
Ali, em comparação com outras regiões montanhosas mais antigas, a diversidade biológica não é grande e o número de espécies endêmicas (aquelas que só vivem ali, e em nenhum outro lugar) é baixo. Apesar da imponência da paisagem, muito exótica para nós brasileiros, os Andes, em termos biológicos, são pobres em vida e homogêneos na sua fauna e flora.
No Espinhaço, em contraponto, o mesmo longo período de rebaixamento das montanhas também possibilitou que uma miríade de animais e plantas se diversificassem, servindo como um prato cheio para a atuação da seleção natural e consequente evolução de uma vasta diversidade de formas de vida bem adaptadas às montanhas.
A geologia também conta uma história parecida. Enquanto as rochas predominantes nos Andes têm origem ígnea (mais recentes, formadas por vulcanismos e eventos orogênicos, de soerguimento de montanhas), as rochas do Espinhaço possuem origem principalmente metamórfica (rochas antigas, que passaram por alterações na sua composição após milhões de anos submetidas a uma pressão gigantesca e temperaturas extremas). É através da composição, conformação e disposição dessas rochas pela paisagem que os cientistas conseguem reconstruir a história geológica da Terra. Isso também reflete na vida nas montanhas, já que o tipo de solo atua como um forte filtro ambiental para as plantas. Consequentemente, as espécies encontradas nessas duas regiões são bem diferentes, ainda que provenham de ancestrais comuns que colonizaram ambas as cordilheiras.
As imponentes torres de granito da Cordilheira dos Andes saltam aos olhos dos brasileiros.
Entretanto, em comparação com montanhas mais antigas, os Andes são pobres em biodiversidade
Após este breve apanhado biogeográfico sobre a história das duas maiores cordilheiras de montanhas na América do Sul, proponho uma reflexão ao leitor. O Espinhaço sobreviveu a quase 2 bilhões de anos de intempéries ambientais severas, e sua vida continua de pé. Entretanto, em pouco mais de 300 anos de colonização, conseguimos provocar uma perda catastrófica de espécies nas montanhas devido a destruição dos habitats, comparável mesmo às maiores extinções naturais conhecidas. A mineração, a expansão urbana e a agropecuária têm a maior parcela de culpa nesse cenário.
É com grande pesar que concluo esta matéria assistindo às notícias do terrível desastre de Brumadinho, mais um crime na conta da mineradora Vale. Pouco a pouco, o Espinhaço vai sendo levado embora pelas mineradoras em vagões de trem, e com ele, as memórias das pessoas, a biodiversidade e parte da história do Brasil.
Quantos rios de lama mais precisarão descer para que revisemos drasticamente nosso modelo de consumo e desenvolvimento? Quantas vidas devem ser perdidas e quantas espécies mais devem ser extintas para que aprendamos à lição? O Espinhaço clama por socorro.
Fotos: Augusto Gomes