O urucum é um pigmento vermelho intenso de uso milenar entre os índios amazônicos. Adotado pelos colonizadores europeus como um substituto do açafrão, o urucum é hoje muito comum na culinária brasileira, onde é conhecido como colorau. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), a produção brasileira em 2012 foi de 12.000 toneladas/ano. Desse total, 60% são destinados à fabricação de colorau, 30% à fabricação de corantes e 10% à exportação – para uso na indústria de cosméticos.
Apesar da sua importância econômica, culinária, cultural e histórica, ainda não se conhecia a origem da sua domesticação. Até hoje não se havia identificado quem seria o ancestral selvagem do urucuzeiro (Bixa orellana), o arbusto domesticado de onde se extrai o urucum. Não mais. Pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq-USP) conseguiram identificar a misteriosa espécie que deu origem ao urucum. Trata-se de um arbusto chamado Bixa urucurana.
O trabalho também identificou a região da domesticação original do urucum como sendo o norte da América do Sul (provavelmente Pará ou Rondônia) – e não o Caribe, onde foram encontrados os vestígios paleobotânicos mais antigos do urucum. O artigo com a identificação do urucum selvagem foi publicado no periódico Economic Botany.
O trabalho, que teve Elizabeth Ann Veasey, da Esalq, como pesquisador responsável, é apoiado pela Fapesp.
De acordo com a bióloga Priscila Ambrósio Moreira, do Inpa, muitas plantas que ocorrem nas áreas de moradia e uso humano na Amazônia são consideradas domesticadas porque se modificaram tanto do ancestral silvestre que se tornaram dependentes da ação humana para se propagar. “Este é o caso do urucum. Não encontramos urucum com produção abundante de pigmento vermelho ou alaranjado em qualquer lugar. Ele está sempre associado a áreas manejadas pelos humanos.” Mas qual seria a origem da planta?
Em 1946, o botânico e entomólogo italiano Adolpho Ducke (1876–1959) levantou a hipótese de que o urucum que conhecemos fosse originário de uma grande árvore que cresce no sudoeste da Amazônia, explica Priscila. Como Ducke chegou a essa hipótese? “Ao coletar plantas pela Amazônia, ele deve ter ouvido dos moradores locais da existência de um urucum do mato, a Bixa excelsa, uma grande árvore cujo fruto é parecido com o do urucum de quintal.”
A suspeita de Ducke foi descartada quando os pesquisadores ponderaram que apenas a coleta de sementes na floresta e o plantio nos quintais dificilmente transformaria uma árvore de 30 metros de altura num arbusto de 2 a 3 metros como se encontra nos quintais.
Ecologia do urucum
Mas será que existiriam outros tipos de urucum do mato na Amazônia? “Nossa hipótese para identificar o ancestral do urucum foi uma soma de evidências, tanto da botânica quanto do conhecimento de famílias ribeirinhas sobre a ecologia do urucum”, explica a botânica.
Uma evidência para ajudar na identificação veio de relatos da população ribeirinha no Pará sobre a existência de um urucum do mato que aparecia espontaneamente no quintal e que conseguia cruzar com o cultivado. “Mais importante”, diz Priscila Moreira, “os relatos davam conta de que, após o cruzamento, a geração seguinte do urucum cultivado ficaria mais parecida com o tipo silvestre. Ou seja, produzia menos pigmento nas sementes, que é a principal parte da planta usada pelo homem. Isso mostra que essas duas espécies conseguem cruzar, mas há uma prevalência do tipo silvestre.”
Ao pesquisar na literatura, acabou-se chegando ao trabalho do botânico, naturalista e viajante alemão Carl Ernst Otto Kuntze (1843–1907), que descreveu em 1891 a espécie B. orellana. Há mais de 120 anos, Kuntze já observava que uma outra planta, a B. urucurana, deveria ser da mesma espécie que o urucum cultivado.
Bixa urucurana é um urucum do mato, mas não uma grande árvore e sim um arbusto, como o urucum dos quintais. “A única espécie descrita de urucum arbustivo é a B. urucurana”, diz Priscila Moreira.
Esse urucum selvagem cresce sempre associado a cursos d’água em áreas abertas. Forma manchas com vários pés. “Encontramos uma mancha com cerca de 70 pés na beira do rio e vários outros espalhados ao longo do barranco na margem desse rio.” O urucum selvagem tem frutos menores, mais arredondados, com pouco pigmento. Segundo Priscila Moreira, “a espécie selvagem quase não produz pigmento. Já a domesticada tem uma produção abundante. Suas sementes são colhidas em frutos maduros e colocadas para secar. As sementes são cobertas por uma capa oleosa avermelhada, que é o pigmento”.
Existe uma curiosidade que difere as duas espécies de urucum, ela observa. Enquanto o urucum cultivado abre o fruto sozinho quando está maduro, expondo suas sementes, no silvestre os frutos se mantêm fechados. “Se Bixa urucurana realmente é o ancestral silvestre do domesticado, estamos observando uma mudança na capacidade de dispersão das sementes que foge à regra. Geralmente, a domesticação promove a perda da dispersão espontânea das sementes. Com o milho foi assim. No urucum, parece ser ao contrário. Quando domesticado, o fruto passou a abrir espontaneamente. Mais produção de sementes e mais pigmento podem ter indiretamente promovido uma pressão para abertura do fruto quando maduro.”
Geografia da domesticação
Um outro dividendo importante da pesquisa foi conseguir apontar o local provável onde aconteceu a domesticação do urucum. Dados arqueológicos revelam que o urucum era usado entre os índios do vale do Peruaçu, em Minas Gerais, entre 500 e 1.000 anos atrás. Sementes carbonizadas com até 1.300 anos foram escavadas na Colômbia. Estudos linguísticos demonstram que o nome pré-maia do urucum já era usado na América Central há 2.400 anos. Indícios do pigmento foram encontrados em assentamentos pré-históricos no centro do Peru que datam de 3 mil anos. Mas os indícios mais antigos do uso do urucum vêm de um sítio arqueológico ocupado há 3.600 anos na pequena ilha Saba, uma colônia holandesa nas Antilhas, no mar do Caribe.
Apesar de tantos indícios, após a descoberta do urucum selvagem tudo leva a crer que o urucum de quintal foi domesticado no norte da América do Sul. A explicação é simples. O urucum selvagem B. urucurana não ocorre em nenhum outro local da América do Sul, muito menos na América Central ou no Caribe. “Pode ser que exista B. urucurana no Caribe, mas até hoje não foi registrado nos herbários. Se houver, pode ser que sejam poucos indivíduos que conseguiram se dispersar até lá. Já na Amazônia, registramos a ocorrência e, além disso, adensamentos da planta, mostrando que é uma área central da distribuição da planta”, argumenta Priscila Moreira.
“Da mesma forma, embora no Caribe os registros paleobotânicos do urucum datem de cerca de 3.600 anos atrás, a ausência na Amazônia não descarta a possibilidade de que, em breve, arqueólogos na região encontrem sementes de urucum tão ou mais antigas que as do Caribe”, diz a bióloga.
Variações da espécie
Para que a área de domesticação do urucum seja encontrada, é preciso aguardar os resultados dos estudos genéticos que irão comprovar se o urucum selvagem e o doméstico são, de fato, variações de uma mesma espécie. Tal estudo está a cargo do biólogo Gabriel Dequigiovanni, coautor deste trabalho e doutorando na Esalq, em Piracicaba (SP). A pesquisa é apoiada pela FAPESP.
Segundo a orientadora de Dequigiovanni, Elizabeth Ann Veasey, do Departamento de Genética da Esalq, já foi feito o trabalho com marcadores microssatélites de populações selvagens (B. urucurana) e domesticadas (B. orellana) do urucum. “As duas espécies se separam, mas não totalmente. Deve haver fluxo genético entre elas”, diz Elizabeth. “Nossa hipótese é que se trata de variedades diferentes de urucum.”
Para bater o martelo, o próximo passo é o sequenciamento genético de regiões do DNA do cloroplasto, a organela das células vegetais onde se processa a fotossíntese. “Dequigiovanni reuniu uma boa quantidade de amostras cultivadas e selvagens de urucum. Também coletou em herbários amostras de várias espécies do gênero Bixa e de outras espécies da mesma família. Agora vamos compará-las para obter uma resposta mais concreta.” Elizabeth acredita que os resultados do trabalho surjam a partir de meados de 2016. Mas a pesquisa já forneceu um dividendo: “É difícil saber qual foi o centro de evolução do urucum, mas já sabemos onde ele foi domesticado. O centro de domesticação da espécie encontra-se no sudoeste da Amazônia”, revela Elizabeth. É muito, mas muito distante do Caribe.
O trabalho de identificação da origem do urucum é coordenado por Charles Clement, do Inpa, em Manaus. Seu laboratório tem buscado identificar e localizar ancestrais silvestres de plantas úteis aos humanos na Amazônia, como cuia de tacacá, biribá, mandioca, umari, cacau, castanha do Brasil e pequiá. “Isso é importante para ajudar a contar a história da Amazônia a partir do uso de suas plantas desde pelo menos 8.000 anos atrás”, argumenta Priscila. “A pesquisa também auxilia na localização de áreas de patrimônio histórico na Amazônia e de práticas humanas, de ribeirinhos e indígenas, que devem ser preservadas.”
O artigo The Domestication of Annatto (Bixa orellana) from Bixa urucurana in Amazonia, de Priscila Moreira, Juliana Lins, Gabriel Dequigiovanni, Elizabeth Veasey e Charles Clement, publicado em Economic Botany, pode ser lido aqui.
*Texto publicado originalmente em 22/01/2016, por Peter Moon, no site de notícias da Agência Fapesp
Foto: Leonardo Aguiar/Creative Commons/Flickr