O sinal para o fim da era dos combustíveis fósseis foi dado num lugar improvável nesta quarta-feira (13/12): nos petroleiros Emirados Árabes Unidos. Em meio a duas guerras, uma conferência presidida por um executivo do petróleo e infestada por um número sem precedentes de lobistas do setor convocou todos os países do mundo para “fazer a transição para fora dos combustíveis fósseis nos sistemas energéticos”, começando nesta década.
A frase está na decisão do primeiro Balanço Global (GST) do Acordo de Paris, aprovado em poucos segundos na manhã de quarta (madrugada no Brasil) na COP28 – 28ª Conferência sobre Mudanças Climáticas da ONU, em Dubai. É a primeira vez desde 1994, quando a Convenção do Clima da ONU entrou em vigor, que os principais causadores da catástrofe climática são encarados.
Após 48 horas dramáticas, nas quais um texto demandando a “eliminação gradual, justa e ordenada” dos combustíveis fósseis foi incluído e eliminado, o GST produziu um pacote de decisões sobre energia com algumas sinalizações importantes, um monte de empulhação e um agrado aos países produtores de óleo e gás.
Os principais pontos positivos do pacote são a convocatória clara e universal à “transição” (“transition away from”, no original em inglês), que pode ser entendida como um sinônimo de “eliminação gradual” que não ofende nações petroleiras como a Arábia Saudita, que jogaram duro em Dubai para melar o resultado, sob ordens da Opep; a determinação de que isso seja iniciado já nesta década, prazo crítico para que o mundo tenha a chance de se manter no limite de aquecimento global de 1,5oC preconizado pelo Acordo de Paris; e a determinação de triplicar a parcela de fontes renováveis na matriz energética global até 2030, duplicando a taxa global anual de eficiência energética no mesmo período.
Importante, inédito, mas ainda insuficiente para garantir o que o presidente da COP28, Sultan Al-Jaber, chamou de “estrela-guia” da negociação, o objetivo de estabilizar o aquecimento em 1,5oC. Entre outras razões, porque o pacote traz uma série de elementos que ou não auxiliam na transição ou que vão diretamente de encontro a ela: o GST fala, por exemplo, de “acelerar esforços para reduzir o carvão mineral não-mitigado”, o que não tem nenhuma diferença para o que o mundo já está fazendo e que já havia sido decidido em 2021, na COP de Glasgow; também promove tecnologias que ajudam a manter a produção e o consumo de fósseis, como a captura e armazenamento de carbono (CCS); por fim, num aceno gigantesco ao status quo dos países petroleiros, o texto de Dubai defende “combustíveis de transição”, que incluem o gás fóssil.
Referências à ciência, como a necessidade de atingir o pico das emissões globais em 2025, aparecem no texto. Mas, como notou o bloco dos países insulares, elas não são ancoradas fortemente em chamados específicos para que os países lhes façam caso. Prazos para a transição, a diferenciação entre países e, o principal, os recursos financeiros que deveriam vir das nações ricas para as pobres para isso, simplesmente não constam do pacote. Países africanos e outros menos desenvolvidos engoliram a omissão em nome do consenso, mas essa será uma linha de batalha aberta e provavelmente sangrenta para as conferências de Baku, no ano que vem, e de Belém, em 2025.
“A menção no texto da conferência de substituição do uso de combustíveis fósseis é inédita, um começo, mas totalmente em desacordo com a realidade de países que projetam um aumento em suas fontes sujas de energia que é 100% maior do que o permitido pelos limites do Acordo de Paris”, disse Marcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima. “Os países agora precisam decidir que verdade irá prevalecer: a do texto da COP ou a dos seus planos de explorar cada vez mais petróleo, carvão e gás.”
“Apesar de não termos um plano claro sobre como se dará a eliminação progressiva dos combustíveis fósseis, o ganho real da COP28 foi colocar tais combustíveis no centro do debate, responsabilidade que nenhuma das 27 Conferências do Clima anteriores tinha assumido”, disse Camila Jardim, especialista em Política Internacional do Greenpeace Brasil.
O Balanço Global deveria orientar os países a produzir NDCs (Contribuições Nacionalmente Determinadas) para 2035 mais robustas, em linha com a ciência. Só que a ciência demanda que as emissões sejam reduzidas em 43% já nos próximos sete anos para que o objetivo de Paris não seja perdido. Há uma requisição (“the Conference of the Parties requests“) aos países para que melhorem suas metas para 2030 já no ano que vem para alinhá-las com o objetivo do acordo, mas nenhuma substância sobre como isso será feito e, principalmente, nenhuma referência a meios de implementação (dinheiro) para que os países em desenvolvimento, que em seu conjunto são hoje os maiores emissores de gases de efeito estufa, deem esse salto.
O conjunto de decisões de Dubai, que ficou conhecido como o “Consenso dos EAU”, traz ainda a operacionalização (com muito pouco dinheiro) do fundo de perdas e danos, o delineamento de uma Meta Global de Adaptação e avanços tímidos no Programa de Trabalho de Transição Justa e no Artigo 6, que trata de mecanismos de flexibilidade (a maioria deles mercados de carbono).
Em mais uma demonstração do limite do que as conferências do clima podem entregar num mundo em aquecimento descontrolado, a COP28 fornece mais uma plataforma de ação e adia as esperanças da humanidade. As próximas paradas serão Baku, no petroleiro Azerbaijão, onde deverá ser finalizado o novo objetivo quantificado global de financiamento climático, e Belém, no também petroleiro Brasil, onde novas metas ajustadas para o ano de 2035 precisam ser adotadas.
“O texto que sai daqui hoje também aumenta a responsabilidade do Brasil em construir um caminho para que a COP 30 em Belém entregue um aumento de ambições que responda ao desafio de manter o mundo dentro do limite de 1.5oC. E isso deve começar recusando o convite de ingresso na OPEP”, disse Astrini.
“O Consenso dos EAU começa a valer hoje. Inclusive no Brasil, onde os sinais emitidos em Dubai deveriam impactar a oferta de oances no mega leilão petroleiro. Quem serão as empresas a desafiar de pronto o que foi definido nos Emirados?”, questionou Natalie Unterstell, CEO do Instituto Talanoa.
“O resultado da COP 28 reforça a importância de o Brasil se engajar fortemente no estreitamento da confiança entre os países para alcançarmos os resultados necessários na COP 30. Isso precisa começar já, durante a presidência do G20, onde será possível reforçar o comprometimento climático das maiores economias do planeta. Porém é preciso liderar pelo exemplo, o que significa que temos um grande desafio interno, já que parte do governo ignora a crise climática e trabalha para alinhar o Brasil ao grupo das nações responsáveis pelo quase fracasso da COP 28. Prova disso é o leilão da ANP, que numa perversa coincidência acontece no mesmo dia em que a Conferência se encerra”, afirmou Maurídio Voivodic, diretor-executivo do WWF Brasil.
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* Este texto foi originalmente publicado pelo site Observatório do Clima em 13/12/2023
Foto: Christopher Pike/UNFCCC