Como transformar a ignorância em amor

Hoje é dia do nordestino. Uma data que homenageia Antônio Gonçalves da Silva, o Patativa do Assaré, cearense, sem dúvida um dos mais importantes poetas do Brasil. Um gigante nordestino que, assim como muitos de seus conterrâneos, ajudaram a moldar – e ainda o fazem – nossa identidade.

Mas a região nordestina é destaque no país desde ontem. No decorrer da apuração dos votos para a presidência, o Nordeste passou a dominar o Twitter. Mais de 600 mil tuítes marcados com a tag demonstraram, mais uma vez, uma divisão que vem se ampliando em maior ou menor grau desde a primeira eleição de Lula, em 2002. De lá para cá, com intensidade, ao menos a partir de 2010, ano da primeira eleição com Facebook e Twitter como redes sociais majoritárias, essa divisão vem acompanhada de outra característica infeliz: as explícitas manifestações xenófobas.

Ainda durante a apuração dos votos já era possível encontrar mensagens ofendendo nordestinos, comparando a região a Venezuela além de um mapa que circulava pelo WhatsApp com a região nordeste marcada em vermelho com a legenda Cuba do Sul. Não faltou o clássico discurso de que o nordestino ignorante das questões nacionais “vota com o estômago”. O usuário @NatanTFI, por exemplo, cita: “No Nordeste o medo de perder o bolsa família é maior do que a vontade de arrumar um emprego”.

A ideia anacrônica de que o Nordeste ainda é a terra da partida onde a seca e o coronelismo imperam, terra do cabra macho e outros estereótipos, ainda habita o imaginário social e encontra respaldo na mídia. Recentemente, a Folha de São Paulo publicou reportagem com o intuito de demonstrar como os nordestinos ignoravam o nome do candidato Haddad e destacava o fato de seus eleitores não saberem pronunciar corretamente seu nome. A noticia abria margem para que os entrevistados fossem criticados e ofendidos na famigerada caixa de comentários. 

Contudo, desconsideramos o fato de que o nome do candidato que publicamente defende a tortura, diz não entender de economia, escolhe como vice um sujeito que acha o neto bonito por representar o “branqueamento da raça”, que em sua declaração, após os resultados de ontem, afirma querer “por um ponto final em todo ativismo no Brasil” é proferido com todas as letras – em alto e bom tom – pelas famílias mais abastadas (renda de R$ 9,5 mil) da sociedade. 

Ativismo é convivência e só alguém que não convive com o povo pode querer calar ativistas. 

Diante disso tudo, me encontro sentado em frente a Abel, que aparece na foto que abre este texto e ao lado, e vive em um sítio entre Buíque (onde moro) e Arcoverde, em Pernambuco.

Ele e sua família me acolheram enquanto acompanhava uma novena com atividades elaboradas por sua comunidade com o intuito de levantar dinheiro para o término de uma capela para São Miguel e Nossa Senhora Aparecida, que culminará no dia 12 deste mês.

Vaqueiro desde os 12 anos, por trás das cicatrizes adquiridas durante os mais de 40 anos laçando boi no mato, está um homem ciente das questões políticas e sociais do Brasil, com opiniões que contrariam os estereótipos criados em torno dos povos que habitam os campos nordestinos. Ele não é o único.

Convivendo nas zonas rurais pernambucanas desde 2014, fica evidente que a desqualificação do voto dos nordestinos (e dos pobres de maneira geral) e seus interessesé um sintoma claro da falta de empatia e conhecimento da realidade empírica. Muito mais complexa e ampliada do que podemos perceber. O que faz o voto do rico em um determinado candidato, que promete não taxar sua riqueza, ser mais racional do que o do trabalhador que não quer ver seus direitos conquistados escorrerem pelos ralos políticos?

Mas, não vou entrar (não agora) no mérito de que é fundamental repensar os mecanismos estéticos, históricos e culturais que contribuíram para a formação de uma visão do nordeste brasileiro como um espaço deslocado do processo histórico e imune ao impacto das grandes transformações sociais. 

Acho mais importante que isso, neste momento, compartilhar o que Abel me disse enquanto conversávamos sobre essa questão, algo que me fez reafirmar em mim a importância de se estar ao lado do povo e da democracia:

“Vejo o sofrimento do negro, do índio, do agricultor só aumentar à minha volta, isso é a ignorância que vem de quem tem poder para mudar e prefere a ignorância. E agora vejo um candidato pregar a ignorância todo o tempo e ser líder nas pesquisas para presidente! Quem é o ignorante? Eu me sinto bem, porque eu transformo a minha ‘ignorância’ em amor”.

Fotos: Tiago Henrique

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Tiago Henrique

Fotojornalista independente, paulistano baseado entre o agreste e o sertão de Pernambuco desde 2014, se dedica a documentar a vida de pessoas que detêm os conhecimentos e as técnicas necessárias para a preservação da cultura popular e as transformações socioculturais do sertão contemporâneo