Sempre que têm oportunidade, os representantes do governo Bolsonaro desqualificam o Inpe – Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, responsável pelo monitoramento do desmatamento na Amazônia, entre outras ações importantes. Em janeiro deste ano, portanto no inicio do governo, o instituto publicou nota informando o ministro do meio ambiente, Ricardo Salles, sobre como funciona o sistema e porque ele é tão imprescindível. Mas as acusações de Salles e de outros ministros não cessaram.
Pouco tempo depois, o ministro declarou que os dados do Inpe não são precisos, que o desmatamento na Amazônia é “relativo a zero” e que buscava outro sistema para complementar o trabalho do Inpe. Quando os índices de desmatamento de junho foram divulgados pelo instituto, Tereza Cristina, do ministério da agricultura, tratou logo de questiona-los. No início deste mês, foi a vez do general da reserva Augusto Heleno, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), colocar em dúvida a veracidade dos dados divulgados pelo Inpe, dizendo que “são manipulados”, em entrevista à BBC News.
Em resposta a tantas afirmações falaciosas, a Coalizão Ciência e Sociedade – que reúne mais de 50 cientistas atuantes em todas as regiões do Brasil -, divulgou nota em 4 de julho para apoiar o instituto. Seu objetivo era atacar diretamente a fala do general Heleno na TV. Quatro dias depois, as principais entidades de cunho científico e educativo do país encaminharam carta conjunta a Jair Bolsonaro – com cópias para os ministros da agricultura, do meio ambiente e, também, para Marcos Pontes, de Ciência e Tecnologia – para defender o Inpe.
Nota à sociedade
“Nossos dirigentes demonstrariam amadurecimento e compromisso com o bem do País se tratassem de frente e com coragem a realidade objetiva do desmatamento, a começar pelo respeito à capacidade científica brasileira”, declararam os 56 integrantes da Coalizão em nota á sociedade.
No texto, a Coalizão destaca que as declarações de Heleno são um triste caso de negação da realidade, lembrando que “a negação tem um componente inconsciente, mas também pode ter um elemento consciente significativo, com o intuito de simplesmente “fazer vista grossa” para uma situação desconfortável”. Portanto, trata-se também da recusa em reconhecer os fatos e aceitar uma realidade tão desconfortável como esta, que é reconhecida pelo mundo.
A foto aérea feita pelo cientista José Sabino, ao sobrevoar Porto Velho, em Rondônia, é um exemplo dessa realidade que o governo nega.
Na nota, os cientistas ainda defenderam a qualidade e o rigor do trabalho realizado por institutos de pesquisa e universidades públicas brasileiras, destacando os estudos desenvolvidos no Inpe, tanto no monitoramento de ecossistemas tropicais e apoio a políticas públicas, como também na apresentação transparente e fundamentada de seus resultados.
“Não é mais possível tapar o sol com a peneira ao negar dados reais e públicos com base em afirmações sem embasamento, e muito menos desprestigiar o trabalho sério e criterioso realizado pela ciência nacional. Ao contrário, nossos dirigentes demonstrariam amadurecimento e compromisso com o bem do país se tratassem de frente e com coragem a realidade objetiva do desmatamento, a começar pelo respeito e confiança na capacidade científica brasileira”.
Carta para Bolsonaro
Destacando que o Inpe, criado em 1961, “é o maior instituto de pesquisas do país”, os lideres de sete instituições acadêmicas lembram que “sua missão é produzir informações e tecnologias robustas nas áreas espacial e do ambiente terrestre, bem como disponibilizar produtos e serviços para o Brasil, subsidiar suas políticas públicas e dar suporte à comunidade científica brasileira”. E acrescentam: “O Inpe produz, desde 2010, mapas complementares aos dados do Prodes, com polígonos de desmatamento com áreas menores que seis hectares. Adicionalmente, mantém, desde 2016, um sistema de alerta diário (Deter-B) com desmatamentos identificados acima de 1 hectare, para dar suporte a ações de fiscalização por parte dos órgãos ambientais federais e estaduais”.
Eles ressaltam, ainda, que a qualidade de seus dados “é constantemente monitorada, resultando em um índice superior a 95% de precisão”. Também destacaram a política de transparência adotada pelo Inpe, que “permite acesso irrestrito a todas as informações geradas pelos sistemas de monitoramento, possibilitando avaliações independentes pela comunidade usuária e acadêmica”. E também lembram que “as aplicações dos produtos do Inpe também foram publicadas em centenas de artigos científicos e incontáveis trabalhos de dissertação e teses dentro e fora do Brasil”.
Antes de terminar, eles ainda apelam para a importância estratégica da preservação da biodiversidade não só para a regulação do clima, mas também para a sobrevivência da agricultura, “em particular no Centro-Oeste e Sudeste, cujos regimes de chuva dependem fundamentalmente da existência da Floresta Amazônica e sua exploração sustentável”.
É evidente o objetivo do governo: desqualificar o Inpe e adotar outros sistemas de “sua confiança” tornam ainda mais vulneráveis os ecossistemas brasileiros, tornando-os disponíveis para o projeto desenvolvimentista de Bolsonaro, que ele tão bem enfatizou em entrevista sobre os cem dias de sua gestão.
Agora, leia abaixo os dois textos, na íntegra: primeiro, a nota da Coalizão Ciência e Sociedade; em seguida, a carta das entidades científicas.
O governo e o desmatamento: a negação como mecanismo de defesa
Em entrevista recente (3/7/2019) à BBC News, o General Augusto Heleno Ribeiro Pereira (Gabinete de Segurança Institucional) questionou os dados de desmatamento da Amazônia e, em grave acusação, aponta que os mesmos são manipulados.
A Psicanálise define a negação como um mecanismo de defesa que basicamente se manifesta pela recusa em reconhecer que um evento ocorreu. A negação tem um componente inconsciente, mas também pode ter um elemento consciente significativo, com o intuito de simplesmente “fazer vista grossa” para uma situação desconfortável.
As declarações do General Augusto Heleno Ribeiro Pereira são um exemplo triste de negação, em consonância com outras vozes influentes no governo que também negam a extensão das preocupações ambientais no Brasil.
A negação da realidade objetiva do desmatamento nos cobra um alto custo, na diminuição do bem-estar da população brasileira, da credibilidade e reputação da comunidade científica nacional e de nossas perspectivas de inserção como parceiro comercial em um mundo onde a sustentabilidade abre as portas para mercados importantes e cooperações relevantes.
A comunidade científica brasileira trabalhando em institutos de pesquisa e universidades públicas é reconhecida internacionalmente por seu pioneirismo não só no monitoramento de ecossistemas tropicais e apoio às políticas públicas mas também na apresentação transparente e fundamentada de seus resultados.
O sensoriamento remoto (principal ferramenta usada na avaliação do desmatamento) é igualmente importante e plenamente reconhecido no âmbito das Forças Armadas. Por exemplo, por meio dos projetos desenvolvidos pelo Centro de Imagens e Informações Geográficas do Exército (CIGEx ) que colabora como Infraestrutura Nacional de Dados Espaciais.
Em particular, destaca-se o indiscutível desenvolvimento científico e tecnológico conduzido pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). O INPE desempenha um papel fundamental na pesquisa científica em sua área de atuação e na formação de recursos humanos no monitoramento ambiental (seus egressos nuclearam outros centros importantes em todas as regiões do Brasil), tendo diversificado a plataforma brasileira de sistemas para o entendimento dos processos complexos associados à cobertura e uso do solo no Brasil. O já mencionado CIGEx conta com parceria do INPE e o Banco de Dados do Exército-BDGEx tem como pilar um software livre para Sistemas de Informação Geográfica (SIG) desenvolvido no INPE.
O mundo inteiro hoje é capaz de, por meio de uma constelação ampla de satélites com alta resolução e frequência de imageamento, avaliar o desmatamento da Amazônia e dos demais biomas brasileiros. Ou seja, não é mais possível “tapar o sol com a peneira” ao negar dados reais e públicos com base em afirmações sem embasamento, e muito menos desprestigiar o trabalho sério e criterioso realizado pela ciência nacional. Ao contrário, nossos dirigentes demonstrariam amadurecimento e compromisso com o bem do país se tratassem de frente e com coragem a realidade objetiva do desmatamento, a começar pelo respeito e confiança na capacidade científica brasileira.
Coalizão Ciência e Sociedade:
Adalberto Luis Val (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia)
Alexandre Turra (Universidade de São Paulo)
Blandina Felipe Viana (Universidade Federal da Bahia)
Carlos Afonso Nobre (Instituto de Estudos Avançados – Universidade de São Paulo)
Carlos Alfredo Joly (Universidade Estadual de Campinas)
Catia Nunes da Cunha (Universidade Federal de Mato Grosso)
Cristiana Simão Seixas (Universidade Estadual de Campinas)
Cristina Adams (Universidade de São Paulo)
Daniele Vila Nova (Painel Mar)
Eduardo José Viola (Universidade de Brasília)
Enrico Bernard (Universidade Federal de Pernambuco)
Erich Arnold Fischer (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul)
Fabio Rubio Scarano (Universidade Federal do Rio de Janeiro)
Francisca Soares de Araujo-(Universidade Federal do Ceará)
Gabriela Marques di Giulio (Universidade de São Paulo)
Geraldo Wilson Fernandes (Universidade Federal de Minas Gerais)
Gerd Sparovek (Universidade de São Paulo)
Gerhard Ernst Overbeck (Universidade Federal do Rio Grande do Sul)
Gislene Maria da Silva Ganade (Universidade Federal do Rio Grande do Norte)
Gustavo Romero (Universidade Estadual de Campinas)
Helder Lima de Queiroz (Instituto Mamirauá)
Helena de Godoy Bergallo (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)
Ima Célia Guimarães Vieira (Museu Paraense Emilio Goeldi)
Jean Paul Walter Metzger (Universidade de São Paulo)
Jean Pierre Ometto (Centro de Ciência do Sistema Terrestre/INPE)
Joice Nunes Ferreira (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária)
José Alexandre Felizola Diniz Filho (Universidade Federal de Goiás)
José Antonio Marengo Orsini (Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais)
José Sabino (Universidade Anhanguera – Uniderp, MS)
Leandra Gonçalves (Universidade de São Paulo)
Leonor Costa Maia (Universidade Federal de Pernambuco)
Leopoldo Cavaleri Gerhardinger (Associação de Estudos Costeiros e Marinhos dos Abrolhos – ECOMAR)
Leticia Couto Garcia (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul)
Ludmilla Moura de Souza Aguiar (Universidade de Brasília)
Luiz Antonio Martinelli (Universidade de São Paulo)
Marcelo Tabarelli (Universidade Federal de Pernambuco)
Marcia Cristina Mendes Marques (Universidade Federal do Paraná)
Margareth da Silva Copertino (Universidade Federal do Rio Grande)
Maria Alice dos Santos Alves (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)
Maria Manuela Ligeti Carneiro da Cunha (Uni Chicago)
Maria Teresa Fernandez Piedade (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia)
Mercedes Maria da Cunha Bustamante (Universidade de Brasília)
Michele Dechoum (Universidade Federal de Santa Catarina)
Paulo Eduardo Artaxo Netto (Universidade de São Paulo)
Pedro Luís Bernardo da Rocha (Universidade Federal da Bahia)
Rafael Dias Loyola (Universidade Federal de Goiás e Fundação Brasileira para o Desenvolvimento Sustentável)
Renato Sérgio Balão Cordeiro (Instituto Osvaldo Cruz)
Ricardo Bomfim Machado (Universidade de Brasília)
Ricardo Ribeiro Rodrigues (Universidade de São Paulo)
Rômulo Simões Cezar Menezes (Universidade Federal de Pernambuco)
Ronaldo Bastos Francini Filho (Universidade Federal da Paraíba)
Sergio Ricardo Floeter (Universidade Federal de Santa Catarina)
Sidinei Magela Thomaz (Universidade Estadual de Maringá)
Tatiana Maria Cecy Gadda (Universidade Federal Tecnológica do Paraná)
Thomas Michael Lewinsohn (Universidade Estadual de Campinas)
Valério De Patta Pillar (Universidade Federal do Rio Grande do Sul).
A Amazônia e seu monitoramento ambiental são estratégicos para o Brasil
Ao Senhor Jair Messias Bolsonaro
Presidente da República Federativa do Brasil
Com cópia para a Senhora Ministra da Agricultura, Tereza Cristina Corrêa da Costa Dias; Senhor Ministro de Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, Marcos Pontes e Senhor Ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles
O Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), unidade do MCTIC, é o maior instituto de pesquisas do Brasil. Foi criado em 1961 com a missão de produzir informações e tecnologias robustas nas áreas espacial e do ambiente terrestre, bem como disponibilizar produtos e serviços para o Brasil, subsidiar suas políticas públicas e dar suporte à comunidade científica brasileira.
Seu corpo de pesquisadores é de altíssimo nível e por isso participa dos principais fóruns mundiais nas áreas de suas especialidades. Sua infraestrutura é invejável e representa o estado-da-arte nas áreas relacionadas à sua missão.
A partir de 1988, desenvolveu excelentes métodos e procedimentos para monitorar o desmatamento no bioma Amazônico, e alcançou credibilidade internacional invejável.
A excelência do seu trabalho é reconhecida por outros governos, em especial Estados Unidos e França. Esse trabalho é exemplo mundial de competência nesta área, sendo reconhecido como referência por organismos internacionais como a FAO, WMO etc., e está sendo estendido para o monitoramento de todos os biomas brasileiros.
É um sistema de monitoramento único, validado com inúmeros experimentos em campo ao longo das últimas décadas. Os sistemas de monitoramento diários de desmatamento e de detecção de queimadas (Prodes, Deter e Queimadas) refletem o estado da arte mundial neste tema. Utilizam sensores em satélites de última geração, calibrados radiometricamente.
O sistema é descrito em detalhe em inúmeras publicações internacionais, em revistas líderes em sua área, tanto do ponto de vista de desenvolvimento das técnicas quanto da validação dos produtos.
As aplicações dos produtos do Inpe também foram publicadas em centenas de artigos científicos, e incontáveis trabalhos de dissertações e teses dentro e fora do Brasil.
Esses dados também são utilizados na construção de políticas públicas no Brasil, como os Planos de Prevenção e Combate ao Desmatamento na Amazônia e no Cerrado, ambos em operação até 2020.
É fundamental que esses produtos, de importância estratégica para a implementação de políticas públicas no Brasil, sejam desenvolvidos e monitorados por órgãos confiáveis e isentos de influências ou interferências em seus resultados.
Acompanhar o estado da arte no desenvolvimento científico e tecnológico requer um corpo técnico de alta capacidade, além de continuidade no aporte de recursos financeiros necessários para a sustentabilidade de um projeto desta magnitude.
A afirmação de que os dados do Inpe não são suficientes para identificar desmatamentos pequenos não procede.
O Inpe produz, desde 2010, mapas complementares aos dados do Prodes, com polígonos de desmatamento com áreas menores que 6 hectares. Adicionalmente, mantém, desde 2016, um sistema de alerta diário (DETER-B) com desmatamentos identificados acima de 1 hectare, para dar suporte a ações de fiscalização por parte dos órgãos ambientais federais e estaduais.
A qualidade de seus dados é constantemente monitorada, resultando em um índice superior a 95% de precisão, e a política de transparência adotada pelo INPE permite acesso irrestrito a todas as informações geradas pelos sistemas de monitoramento, possibilitando avaliações independentes pela comunidade usuária e acadêmica.
A questão fundamental, portanto, não está na produção de dados confiáveis sobre a geografia do desmatamento, mas sim na necessidade de órgãos do governo de manter um sistema de fiscalização ágil, intenso e contínuo.
A Amazônia e seu monitoramento ambiental são estratégicos para o Brasil. Não se trata apenas da manutenção da floresta como um sistema essencial para regular o processo de mudanças climáticas, de interesse internacional, mas, também, da preservação da riquíssima biodiversidade e da sobrevivência da agricultura brasileira em todo o país, em particular no Centro-Oeste e Sudeste, cujos regimes de chuva dependem fundamentalmente da existência da Floresta Amazônica e sua exploração sustentável.
Para que esse objetivo seja alcançado, é essencial apoiar o monitoramento independente feito pelo Inpe e uma atuação firme e decidida dos órgãos de controle utilizando seus dados.
As entidades subscritas ao final desta carta reafirmam sua confiança na qualidade do monitoramento do desmatamento da Amazônia realizado pelo Inpe e manifestam sua preocupação com as recentes notícias que colocam em risco um rico patrimônio científico estratégico para nosso desenvolvimento e para a soberania nacional, colocando-se à disposição para contribuir na discussão do tema.
Atenciosamente,
– Luiz Davidovich, presidente da Academia Brasileira de Ciências (ABC);
– Reinaldo Centoducatte, Presidente da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes);
– Fernando Peregrino, Presidente do Conselho Nacional das Fundações de Apoio às Instituições de Ensino Superior e de Pesquisa Científica e Tecnológica (Confies);
– Evaldo Vilela, Presidente do Conselho Nacional das Fundações Estaduais de Amparo à Pesquisa (Confap);
– Jerônimo Rodrigues da Silva, Presidente do Conselho Nacional das Instituições da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica (Conif);
– André Gomyde Porto, Presidente da Rede Brasileira de Cidades Inteligentes e Humanas;
– Ildeu de Castro Moreira, Presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).
Foto: José Sabino (Natureza em Foco)