
Em 2007, os cientistas do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática da ONU) falaram, relataram e fizeram alertas em seu 4o. relatório de avaliação, mas a humanidade e seus governos ignoraram ou compreenderam muito pouco a dimensão das tragédias que já definiam o presente e poderiam alterar o futuro de forma devastadora. Nessa época, o primeiro-ministro da Austrália, Scott Morrison, já negava os efeitos das alterações do clima e era contra políticas de redução de gases de efeito estufa. Pois assim que 2020 chegou, dois cientistas decidiram “apontar o dedo” para a falta de memória, de responsabilidade e de ação coletivas.
O cientista climático Michael E. Mann, da Universidade do Estado da Pensilvânia (EUA), foi o primeiro a se pronunciar a respeito, em artigo para o jornal britânico The Guardian. No início desta semana, 6/1, Stefan Rahmstorf, climatologista da Universidade de Potsdam (Alemanha) e um dos cientistas mais influentes nessa área, escreveu em seu perfil no Twitter.
Maior autoridade mundial sobre clima, premiada
O IPCC é um grupo de cientistas – os mais renomados do mundo, entre eles os brasileiros Carlos Nobre, Suzana Kahn, Thelma Krug e José Marengo – que as Organizações das Nações Unidas criou em 1988 para estudar, pesquisar e buscar consensos a respeito das mudanças climáticas. Até agora, produziu cinco relatórios (o primeiro em 1990 e o último em 2014) e documentos para servir de base para a definição de políticas climáticas mundiais e nacionais.
Vale lembrar que, em 2007 (data do quarto relatório), o IPCC recebeu o Prêmio Nobel da Paz, juntamente com Al Gore, ex-vice-presidente americano que se notabilizou nesse período pela luta contra as mudanças climáticas. O INPE, tão agredido pelo governo Bolsonaro, celebrou a notícia porque muitos de seus cientistas integravam (e integram) o Painel da ONU.
O quarto relatório, de 2007 – portanto, publicado há 13 anos -, já revelava um panorama perigoso e destacava o impacto do aquecimento global relacionado ao fogo, destacando o risco de incêndios na Austrália. A partir desse alerta, cientistas australianos se dedicaram a esmiuçar os dados e foram além: confirmaram a previsão do IPCC e conseguiram identificar a data em que o agravamento dos incêndios começaria a acontecer. O governo australiano encomendou estudo para esses cientistas – Garnaut Climate Change Review -, que foi concluído em 2008, e utilizou dados de um relatório emitido em 2007 (como o relatório do IPCC), liderado pelo cientista Christopher Lucas, membro do Centro Australiano para Pesquisa de Clima e Tempo.
O documento de mais de 500 páginas tem um capítulo inteiro dedicado a incêndios florestais e destaca: “Projeções meteorológicas recentes sobre incêndios sugerem que a estação do fogo vai se iniciar antes, terminar um pouco depois e geralmente será mais intensa”. E mais: “Esse efeito crescerá com o tempo, mas deve ser diretamente observável por volta de 2020”.
A página desse documento referente à previsão foi fotografada, compartilhada no Twitter e viralizou. Isso aconteceu na segunda-feira, portanto, no mesmo dia em que o cientista Rahmsftorf se pronunciou. Ele destacou trecho do capítulo do relatório dedicado à Austrália e Nova Zelândia: “Existe virtualmente certeza de que ondas de calor e incêndios vão aumentar em intensidade e frequência”. E acrescentou: “O que o mundo pode aprender com a crise dos incêndios florestais na Austrália: mais tarde você paga caro por entregar a mídia e o governo aos negacionistas da ciência”. Veja abaixo:
What the world can learn from the #AustralianBushfire crisis: over time you will pay a devastating price if you hand media and government to science deniers. pic.twitter.com/Tu4JD8N8Ju
— Stefan Rahmstorf (@rahmstorf) January 6, 2020
“Não é complicado de entender”
Stefan Rahmstorf não foi o primeiro cientista a resgatar os alertas do relatório de 2007 do IPCC. Como já contei, acima, Michael E. Mann – co–autor do livro The Madhouse Effect: Como a negação da mudança climática está ameaçando nosso planeta, destruindo nossa política e deixando-nos loucos (Columbia University Press, 2016), com o cartunista político Tom Toles – escreveu artigo para o jornal britânico The Guardian. Com um detalhe: ele contou o que viu do alto das Montanhas Azuis, na Austrália. Quando os incêndios florestais se intensificaram, ele iniciava um período sabático no país.
No texto, Mann explica como o aquecimento global produziu a crise climática atual. Pior é que parece dizer o óbvio ululante: “Pegue temperaturas recordes e combine-as com uma seca sem precedentes em regiões que já são secas, e você obtém incêndios florestais nunca vistos, como aqueles que cercam as Montanhas Azuis e se espalham pelo continente. Não é complicado”.
Dito assim, parece que não é complicado, mesmo. Mas eu diria que a combinação de falta de vontade política e empresarial para essas questões (lucro acima de tudo é o lema, afinal!!), com a dificuldade peculiar aos cientistas de comunicar assuntos tão complexos – o que não reduz a ignorância da população sobre o tema -, nos levaram a esta crise.
O fogo que ainda queima na Austrália matou mais de meio milhão de animais, 25 pessoas, destruiu casas e outras construções, desabrigou e feriu muita gente. As imagens que circulam por sites e redes sociais são desalentadoras e creio que nos levam a pensar se ainda teremos tempo para evitar um cenário ainda mais tenebroso. Não só na Austrália.
Foto: John Spencer/NSW National Parks and Wildlife Service