A história do macho de onça parda Chico começou como a de muitos filhotes que perdem as mães no Pantanal – vítimas de caçadores ou de fazendeiros -, mas teve um desfecho muito feliz em 16 de janeiro último, quando foi devolvido à natureza pela equipe do Onçafari.
Tudo começou em 2022, quando ele devia ter aproximadamente cinco meses e foi encontrado sozinho, num silo de soja e grãos, na cidade de Costa Rica, no Mato Grosso do Sul, próxima da divisa com Goiás.
Nessa idade, filhotes começam a andar pelo ambiente com a mãe, mas ainda não possuem as habilidades necessárias para viverem sozinhos na natureza. “Nunca saberemos sua verdadeira história, mas há 90% de chance de que a mãe tenha sido morta”, conta Leonardo Sartorello, coordenador de reintrodução de fauna do Onçafari, que o batizou.
O especialista explica que dificilmente a mãe abandona um filhote já grandinho e saudável. “Esse tipo de comportamento só acontece no nascimento, na toca, com dias de vida, quando a mãe percebe que o filhote tem algum problema. A mãe não vai gastar energia com um filhote durante cinco meses de vida pra depois abandoná-lo. Ela reconhece um filhote que não tem chances [de sobreviver com independência]. Nesse caso, ela já o rejeita, não amamenta mais”.
Chico foi resgatado pela Polícia Ambiental, que o levou para o CRAS – Centro de Recuperação de Animais Silvestres, do Imasul – Instituto de Meio Ambiente de Mato Grosso do Sul onde passou por exames e recebeu os primeiros cuidados veterinários.
“Me informaram sobre a situação dele e fomos conhecê-lo para fazer uma avaliação. Queríamos ver se ele era arredio, se não era aquele filhote que fica pedindo carinho, que já está humanizado”.
Sartorello explica que, quando filhote, o felino – em especial o macho – é tratado como pet por humanos, é muito difícil reverter essa condição. “Pode acontecer com fêmea, “depois que ela dá à luz, mas é raro”. Em geral, ele perde sua essência selvagem, e torna-se impossível reverter a situação, o que impede que seja devolvido à natureza”.
Mas, por sorte, Chico já era muito arredio! “Não chegava perto, mostrava as garras e os dentes, reações de um animal selvagem de fato, que pode ser reintroduzido, que pode ser solto. Então, o trouxemos para o
Centro de Reintrodução de Animais Silvestres na Reserva Santa Sofia, do Onçafari”, conta o biólogo. Era agosto de 2022.
Na fazenda adquirida pelo Onçafari em 2020 (a segunda base da ONG; a primeira fica na Fazenda Caiman), em Aquidauana, funciona um novo centro de reintrodução. Há quatro recintos – o quinto está sendo construído – para receber espécies diversas. Um é para grandes felinos – onde Chico ficou muito bem instalado -, outro para primatas, outro para aves e o último para antas e queixadas.
Evolução da alimentação
Nos primeiros dez a quinze dias, a intenção de Sartorello era aclimatar o filhote para que ele se acostumasse ao local, se sentisse seguro (sem contato humano) e, assim, pudesse se alimentar, descansar. “Imagina o baque de perder a mãe, ser encontrado por humanos, que mexem nele, fazem exames, furam com agulha, depois o transportam numa gaiola [Costa Rica fica longe de Aquidauana], tudo isso mexe com os hormônios do animal”, explica.
O recinto onde ele morou durante quase dois anos e meio tem 2.500 m2: um belo espaço, no qual Chico também podia ver outros animais – através das telas de proteção – passarem pela mata (e eles o viam). Uma experiência muito importante que também ajuda na reintrodução.
No início de sua estada, a preocupação do biólogo era deixar o filhote “parrudo”, bem forte, pra que crescesse bem e saudável. Assim, ele foi alimentado com pedaços de carne de frango, de boi, de porco que os veterinários jogavam pra ele, evitando contato visual.
Sartorello conta que foi difícil observá-lo. Uma câmera trap instalada no recinto ajudou. Era por ela que o biólogo e veterinários acompanhavam Chico para saber se estava se alimentando, pouco ou muito, se estava emagrecendo e era preciso aumentar a dieta. “Isso é muito importante porque o metabolismo de um filhote é muito rápido, ainda mais de uma onça parda”.
Quando ele estava com sete a oito meses, galinhas e frangos vivos foram introduzidos na alimentação. E ele se deu muito bem. “Nesse momento, a gente observa como ele pega, como preda, como agarra a presa, como a neutraliza, se depena a ave antes de comer. Sim, porque o felino de vida selvagem, se pega uma ave, ele depena, não come com pena. Se comer com pena, tem algo errado: a digestão não vai ser boa e ainda é perigoso porque as penas podem furar o trato intestinal…”.
Aqui vale uma observação: o Onçafari tem autorização do Imasul (Instituto do Meio Ambiente do Mato Grosso do Sul) e do governo federal para oferecer presas vivas aos animais em recuperação, que estão sendo treinados para voltar à natureza. A organização jamais captura animais em risco de extinção ou que estão em época de reprodução, mesmo porque isso iria contra sua missão, que é proteção e conservação de animais no Pantanal.
Assim, à medida que Chico evoluía nas caçadas, a presa oferecida também evoluía. Depois do frango e da galinha, a equipe ofereceu porco doméstico, porco filhote, respeitando seu tamanho e habilidades. “É como num estágio. A gente avalia tudo o tempo todo. Não podíamos correr o risco de oferecer um animal que machucasse o Chico, se não ia ser um problema: íamos ter que anestesiá-lo pra fazer curativo….”. Imagina a correria e o stress.
Entre os critérios usados para escolher as presas, Sartorello considera a rapidez de predação. “Na vida livre, o animal não tem muito tempo, tem de ser rápido – matar, comer e ir embora! -, do contrário pode chegar alguém mais forte – sempre vai ter alguém mais forte! – e, aí, além de brigar, ele vai perder a comida. Então, tem que matar, comer o máximo que conseguir e sair. Por isso, sempre observo rapidez e eficiência no abate”.
Mas o primeiro contato de Chico com um porco foi desastroso. “Ele deu uma patinada: mordeu a perna traseira do porco [em vez de ir ao pescoço ou à cabeça]! Assim o bicho não morre”.
Se tivesse sido criado pela mãe, em vida livre, aprenderia tudo com ela, observando-a. Quando percebem que o filhote está quase pronto, tanto a onça-parda como a onça-pintada escolhem uma presa, deixam-na meio atordoada (“dão uma bordoada nela ou mordem sua espinha dorsal”, por exemplo) e oferecem ao filhote para que finalize a predação.
Mas Chico teve que aprender sozinho, por instinto, e evoluiu. “Começou a matar o porco mais rápido, morder em base de crânio, pescoço, morder o focinho do bicho até ele morrer sufocado, esse é o comportamento natural de um predador. Era isso que eu queria com o Chico”.
Na natureza, um animal só mata outro porque está com fome e não por matar, só porque a possível presa estava por perto. E, quando fica muito tempo sem comer, o animal pode ser ainda mais eficiente na predação. Por isso, Sartorello também incluía períodos de jejum no treinamento do Chico.
“A fome é o maior gatilho pra forçar alguém a comer e pra buscar eficiência na caça. Eu deixava o Chico sem comer por longos períodos – seis ou sete dias – para que, quando a gente soltasse uma presa no recinto, ele estivesse naquela adrenalina mais alta, no modo caçador”.
Com um ano e dois meses, ele foi “promovido” e passou a correr atrás de animais selvagens, que ele encontraria, mais tarde, na natureza: tatu, cateto, cotia, queixada. E se deu bem. “Nunca oferecemos um macho de queixada adulto, ia ser um inferno, mas oferecemos um sub-adulto – que é o máximo para uma onça-parda –, tatu é mais fácil, cotia também”.
Mas o menu variado do Chico durante o treinamento não parou por aí. Havia mais uma iguaria que ele apreciava muito: “Ele amava ema adulta”. E o biólogo acrescenta: “Como a onça-parda é muito mais próxima do gato doméstico do que da onça-pintada, seu comportamento é muito parecido com o do gato, por isso a tendência de se alimentar de aves é muito maior que da pintada”.
Outra peculiaridade do treinamento para reintrodução, segundo Sartorello, é “tornar a experiência no recinto como a pior possível: o animal tem que se ferrar, ter dificuldades, como forma de a gente mitigar um pouco o sofrimento pelo qual vai passar quando estiver livre. Querendo ou não, no recinto ele está num ambiente controlado e sabe que vai ter comida. Na vida livre, não! Ele vai ter que lidar com pata machucada, com bicho, com calor, com frio, com fome. Por isso, costumo propiciar tudo isso no recinto. Digo para a equipe ‘transformar a vida do bicho num inferno’ (brinca), para tornar a soltura menos pior”.
Arredio, observador e esperto
Se há um animal que nasceu pra estar na natureza, esse animal é o Chico. Em muitos aspectos ele animou Sartorello em relação ao treinamento devido ao seu jeito arredio – característica que já havia revelado quando filhote, arreganhando os dentes e mostrando as garras – e independente.
“Ele me surpreendeu muito porque a tendência de humanização da onça-parda é muito grande, é como o gato. Mas o Chico sempre se mostrou independente, muito ‘na dele’, não aparecia fácil, não se interessava por nós, humanos, às vezes tinha barulho de carro, ele não aparecia, ou vozes, gente conversando, nada. E esse é o melhor comportamento para um bicho que vai ser solto porque ele não vai chegar perto de pessoas, não vai invadir propriedades. Foi o melhor que eu já observei”, destaca o biólogo.
Num recinto grande como o dele, era muito fácil não ser visto. Sartorello conta que, muitas vezes, eles só o viram por que ele estava entretido, observando o entorno e os animais que passavam do outro lado da grade. Viu onças-pintadas, onças-pardas, antas… Ele é muito observador e esperto também, “muito bom para um animal solitário que vai ter que se virar sozinho”.
Monitoramento
Na natureza, um filhote desgarra da mãe com um ano e seis meses, um ano e oito meses. Mas como o Chico não cresceu com a dele, teve que esperar mais tempo, e a soltura no Onçafari não é feita antes que o animal complete dois anos.
“Ele ainda vai crescer, ainda vai encorpar até essa idade, vai aprender a ser ‘mais malandro’ pra viver em vida livre, afinal, ele vai disputar território, alimento, fêmea. E a gente precisa esperar ele chegar até essa idade para poder colocar o colar de monitoramento (GPS). Nenhum animal sai do Onçafari sem colar”, explica Sartorello.
Essa é uma prática comum em organizações que fazem reintrodução de animais na natureza, porque é importante seguir seus passos, entender sua trajetória e poder ir ao seu encalço caso algo aconteça. Quando o GPS mostra que o animal parou em determinado lugar, pode estar sinalizando óbito, se mostra diversos pontos aglomerados, pode significar predação. E são essas pesquisas que nos ajudam a compreender melhor as espécies para sua proteção.
E não é preciso ficar com pena do Chico por causa do colar. Essas peças são produzidas de forma a garantir o bem-estar dos animais, não machucam. “Colar numa onça é como um relógio no nosso pulso”, exemplifica o biólogo.
Além disso, depois de um ano e quatro meses, o GPS deixa de funcionar, mas o VHF (que propicia a busca ativa, com antena) ainda dura uns quatro meses. Após esse período, a maioria dos colares perde a validade e cai (devido ao sistema de drop off).
Com mais uma vantagem: Sartorello conta que há relatos de fazendeiros que deixaram de atirar em onças – que atacaram seus rebanhos – por estarem sendo monitoradas, ou seja, porque usavam colar. “Pela legislação, o animal silvestre é da União. Se eu fizer uma denúncia de que mataram um animal silvestre como a onça-pintada, por exemplo, o autor será investigado pela Polícia Federal, envolve Força Nacional, e o fazendeiro não vai querer perder a credibilidade matando onça”.
Pronto para viver livre
Chico ganhou o colar de monitoramento em novembro (fotos acima), dois meses antes de ganhar o mundo. Tanta antecedência é para dar tempo de testar a ferramenta, fazer ajustes e observar o animal com ela.
E, além do momento certo para usar o colar, o que mais determinou que a onça-parda encontrada em 2022, ainda filhote, já estava pronta para viver livre na natureza? “Sua eficiência na caça e a época de cheia do Pantanal”, acrescenta Sartorello.
No que se refere à sua expertise para caçar, Chico chegou ao último estágio quando predou um sub-adulto de queixada. Ao chegar nesse nível, ele não tem mais como evoluir e precisa voltar à natureza.
“Quando se mantém um animal dentro de um recinto por muito tempo, assim como ele evoluiu até o limite, pode começar a involuir. Não gasta mais energia, começa a engordar, sabe que daqui uns dias vai ter comida, então não se esforça. É hora de soltá-lo!”, explica o biólogo.
Por fim, no Pantanal, o melhor período para soltar um animal é a cheia porque a abundância de presas é maior e ele encontra água mais facilmente, ou seja, o ambiente é mais amigável. “Na seca é mais complicado, e ainda tem a questão do fogo, que todo ano retorna. Então, é melhor o animal conhecer o ambiente onde vai viver de uma forma um pouco mais tranquila”.
E, assim, em 16 de janeiro, a equipe do Onçafari abriu a porta do recinto para que Chico saísse. Não haveria melhor lugar para sua soltura já que ele conhece os bichos da região e eles o conhecem: “A onça-pintada já cheirou ele, as fêmeas conhecem seu hormônio, os machos também. É um processo tranquilo de soltura”.
No mesmo dia, à noite, ele voltou à entrada do recinto. Observou, cheirou e foi embora (foto abaixo).
Após alguns dias, o colar de monitoramento acusou muitos pontos aglomerados, indicando que ele ficou muito tempo num mesmo lugar. Sartorello e equipe foram até lá. O que poderia ter acontecido?
A onça-parda de quase três anos, que gozava de liberdade total há poucos dias, havia feito sua primeira predação em vida livre: um tatu-galinha. “Hoje, ele está na região norte da fazenda, há 8 km do centro, explorando cheiros, feromônios e seguindo”, conta o biólogo.
Chico está em casa.
A seguir, assista aos vídeos da soltura de Chico publicados em nosso perfil no Instagram:
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Fotos (destaque): Leonardo Sartorello (Chico filhote) e Luan Ramires