Após de 37 dias de agonia, tensão, mas também muita esperança, 32 brasileiros e seus familiares palestinos chegam ao Brasil.
A previsão inicial era de que a aeronave VC-2, da Força Aérea Brasileira (FAB), chegasse à Brasília às 23h30, mas pousou na Base Aérea de Brasília seis minutos mais cedo, às 23h24. No trajeto, duas paradas técnicas: uma em Las Palmas, na Espanha, e outra na Base Aérea de Recife, em Pernambuco, onde chegou às 20h21.
O grupo composto, em sua maioria, por crianças (17, entre elas bebês), ainda reunia nove mulheres (uma, grávida) e seis homens: 22 deles são cidadãos brasileiros (natos ou naturalizados), três são parentes de brasileiros (em primeiro grau) e sete possuem o Registro Nacional de Migração (RNM) e devem receber status de refugiados.
Os repatriados aguardavam autorização de Israel no sul da Faixa de Gaza, nas cidades de Khan Younis e Rafah, o que aconteceu no sábado (11/11).
Eles deixaram o território palestino no domingo pela manhã, cruzando a fronteira com o Egito pelo Portal de Rafah (contamos aqui), e, acompanhados por diplomatas brasileiros, se dirigiram de ônibus ao Cairo, onde foram recebidos por equipe da embaixada brasileira e pernoitaram (depois de uma viagem de seis horas).
Recepção calorosa
Ao sair da aeronave, ainda na pista da Base Aérea de Brasília, o grupo de repatriados foi recebido (um a um) pelo presidente Lula, pela primeira-dama Janja, além dos ministros das Relações Exteriores, Mauro Vieira, da Justiça, Flavio Dino, dos Direitos Humanos e Cidadania, Silvio Almeida, da Saúde, Nísia Trindade, da Comunicação, Paulo Pimenta, além do assessor especial da Presidência, Celso Amorim, e comandantes das Forças Armadas.
“A chegada deste décimo avião, aqui no Brasil, é o coroamento de um trabalho muito sério que a gente deve a muita gente que trabalha no governo, deve à aeronáutica Brasileira, ao ministro das Relações Exteriores, que fez um trabalho excepcional quando assumiu a presidência do Conselho de Segurança da ONU”, declarou o presidente.
O primeiro a sair da aeronave foi Hasan Habee, que ficou conhecido pelos vários vídeos que fazia e encaminhava para a imprensa, com depoimentos frequentes da angústia que o grupo passava na Faixa de Gaza, em meio a ataques de Israel. E também por documentar cada movimento do grupo minutos antes e após a saída do território palestino.
“Boa noite. Queria agradecer ao presidente, ao governo federal, à Força Aérea e ao Itamaraty. A gente ficou lá 37 dias, muito sofrimento. Às vezes passamos fome e sede”, contou Habee.
“O que está acontecendo lá é um massacre. Minhas filhas ficaram muito chocadas. Na primeira e segunda semana a gente mentia [para elas]. A gente falava que essas bombas [jogadas por Israel na Faixa de Gaza] eram de festas de aniversário, mas a gente não conseguiu segurar [essa história] por muito tempo”, acrescentou.
O brasileiro destacou que as filhas fechavam a janela para se sentirem seguras sempre que um avião do exército israelense passava. Em seguida, Habee pediu para Lula providenciar também a vinda dos seus parentes, que estariam aguardando a liberação de uma segunda lista de brasileiros ou parentes de brasileiros.
Lula se comprometeu, dizendo que o país continuará tentando buscar todos os que quiserem sair da região do conflito e voltar para o Brasil ou, no caso de estrangeiros, acompanhar os parentes brasileiros.
“A gente vai tentar fazer todo o esforço que estiver ao alcance da diplomacia brasileira para tentar trazer todos os brasileiros que lá estão e que queiram vir para o Brasil. Inclusive, alguns companheiros que tinham parentes não brasileiros eu pedi para trazer e a gente trataria de legalizar essas pessoas”. E ele ainda acrescentou:
“Tem mais gente na Cisjordânia e na Faixa de Gaza. Enquanto tiver lista e possibilidade da gente tirar uma pessoa, mesmo que seja uma só, a gente estará à disposição para mandar buscar as pessoas. Não vamos deixar nenhum brasileiro [ou parente] ficar lá por falta de cuidado do governo”.
Além de Habee, a jovem brasileira Shahed Al-Banna, de 18 anos (foto abaixo), também se pronunciou: “Agradecemos muito do fundo do coração a todos que ajudaram a gente a chegar aqui. Não estou acreditando ainda que estou aqui, que estou viva. Achei que eu ia morrer”.
Al-Banna morava no Brasil, em São Paulo, com a mãe, que ficou muito doente, com câncer, e queria se despedir da família em Gaza. A mãe faleceu logo que chegaram lá. No dia em que começaram os bombardeiros, a garota se preparava para ir à faculdade.
“Chegamos a pensar que iriamos todos morrer, mas graças ao governo brasileiro, ao presidente, conseguimos chegar aqui”. E completou: “Mas, além de a gente estar feliz, também estamos preocupados com nossos familiares que ainda estão na Faixa de Gaza. Eu já perdi familiares e amigas, a minha casa. Queria muito poder ajudar a retirar os nossos familiares de lá”.
Apoio médico, psicológico e regularização migratória
Ontem à noite, os repatriados foram acomodados no Hotel de Trânsito de Oficiais, na base aérea, onde receberam alimentação e devem permanecer por dois dias.
No aeroporto, uma ambulância do Samu/DF equipada com UTI móvel e equipe composta por um médico, um enfermeiro e três psicólogos os aguardava para atendimentos emergenciais. Durante sua permanência em Brasília, eles receberão apoio psicológico, cuidados médicos e imunização no Hospital de Força Aérea de Brasília.
Há alguns casos que exigem mais cuidados como o de uma mulher grávida e os de três crianças com sinais de desidratação.
Antes de partirem para seus destinos, os brasileiros e seus familiares serão encaminhados para a Polícia Federal, que tratará da regularização migratória e da emissão de documentos, de forma a que todos tenham acesso a serviços públicos e a emprego (adultos, neste caso, claro) no Brasil.
Assim que foi confirmada a autorização para a saída dos brasileiros da Faixa de Gaza, Augusto de Arruda Botelho, secretário nacional do Ministério da Justiça e Segurança Pública, detalhou o planejamento para sua acolhida.
“Alguns brasileiros já têm destino certo porque têm familiares aqui, então serão deslocados para esses locais. Uma parcela significativa, quase a metade do grupo, não tem onde ficar, mas o governo federal já disponibilizou, através do Ministério do Desenvolvimento Social, um local onde essas pessoas ficarão acolhidas. Vai ser no interior de São Paulo”.
Sem declarar o nome da cidade, Botelho comentou que se trata de abrigo especializado na recepção de estrangeiros e refugiados.
Assim, 24 pessoas irão para São Paulo: 12 seguirão para a casa de parentes e outros 12 para o abrigo de refugiados. Quatro permanecerão em Brasília, dois seguirão para Florianópolis (SC), um irá para Cuiabá (MT) e outro para Novo Hamburgo (RS).
Incertezas e crises diplomáticas
O avião cedido pela Presidência da República aguardava os 32 brasileiros e seus familiares há cerca de um mês no aeroporto da capital egípcia. O grupo brasileiro ficou de fora das sete primeiras listas de estrangeiros autorizados a deixar o território palestino. Sua retirada da Faixa de Gaza ocorreu após semanas de incertezas e crises diplomáticas.
Desde o início da ofensiva de Israel na Faixa de Gaza, o governo brasileiro emitiu notas condenando a atitude do governo israelense. No Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU), o chanceler Mauro Vieira tentou viabilizar resolução que pedia por cessar-fogo. Mas, mesmo com a aprovação de 12 países, os EUA votaram contra, impedindo qualquer possibilidade de uma pausa humanitária.
Em um de seus pronunciamentos, indignado o presidente Lula chegou a denominar os ataques de Israel de genocídio, como contei acima. De acordo com analistas políticos, a demora pode ter sido uma forma de retaliação às críticas do governo brasileiro.
A inclusão do país na lista dos contemplados para deixar Gaza foi confirmada pelo Itamaraty na quinta-feira passada (9/11), por isso, a saída dos brasileiros e seus familiares era aguardada no dia seguinte. No entanto, segundo fonte ouvida pela BBC News Brasil, a fronteira fechou devido a problemas diplomáticos entre Egito e Israel.
Voltando em Paz
Segundo a Aeronáutica, a Operação Voltando em Paz, do governo federal, foi a maior operação de resgate de brasileiros em áreas de conflito no exterior. O voo de ontem foi o décimo: os anteriores partiram de Tel Aviv, em Israel, e de Amã, na Jordânia, e trouxeram brasileiros que estavam no território palestino da Cisjordânia.
A operação transportou 1.477 passageiros, além de 53 animais domésticos. Do total, foram 1.462 brasileiros, 11 palestinos, três bolivianas e uma jordaniana.
Durante o período em Gaza, os brasileiros e familiares palestinos que chegaram ontem ao Brasil receberam apoio diário do corpo diplomático, que garantiu recursos essenciais e alertou as autoridades israelenses a cerca da localização do grupo com o intuito de evitar ataques militares na área. Mesmo assim, prédios próximos aos abrigos foram bombardeados.
Guerra ou genocídio?
Em 7 de outubro, integrantes do grupo terrorista Hamas promoveram “ataque surpresa” contra Israel, matando 1,4 mil pessoas (entre elas, três jovens brasileiros) e levando mais de 200 reféns para seus túneis subterrâneos em Gaza: quatro mulheres idosas foram libertadas (leia aqui) e a jovem DJ alemã Shani Louk, de 23 anos, assassinada.
Em resposta – e decidido a acabar com essa organização -, o governo de Israel impôs cerco total à Faixa de Gaza, com o corte do abastecimento de água, combustível e energia elétrica e iniciou ataques (bombardeios por ar e mar e tiroteios por terra) e, também, na Cisjordânia, apenas por terra e com o apoio de colonos israelenses.
Só em Gaza, até agora foram exterminados mais de 11 mil civis, sendo mais de 4,5 mil crianças (morre uma criança a cada dez minutos!), segundo dados do Ministério da Saúde, de Israeli Medical Service e Palestine Red Crescent Society.
E ainda há 28 mil feridos e milhares de desaparecidos sob os escombros. Isso apenas na Faixa de Gaza. Na Cisjordânia, são 187 mortos e 2.100 feridos, até ontem.
Foto (destaque): Ricardo Stuckert/PR