Cinco mulheres pioneiras foram anunciadas, hoje, pela ACNUR – Agência da ONU para os Refugiados, como as vencedoras do Prêmio Nansen – uma espécie de Nobel do trabalho com refugiados -, que reconhece e celebra o trabalho prestado por indivíduos, grupos ou organizações. Mas apenas uma delas receberá o prêmio global (instituído somente em 2017): é a Irmã Rosita Milesia, 79 anos, brasileira, religiosa, advogada, ativista e criadora de movimentos sociais, reconhecida por seu compromisso de décadas com o apoio aos refugiados e seu papel de liderança na formação de políticas acolhedoras no país.
Há quase 40 anos, Irmã Rosita defende os direitos e a dignidade de pessoas deslocadasdo país de origem, facilitando o acesso a abrigo, alimentação, cuidados de saúde, treinamento de idiomas, geração de renda e documentação no Brasil. Como ela também é advogada, tem sido vital para a formulação de políticas públicas voltadas para essa população no país.
Este é o primeiro ano em que só mulheres são laureadas. E, do Brasil, Irmã Rosita é a segunda pessoa escolhida: em 1985, Dom Paulo Evaristo Arns recebeu a homenagem. Ângela Merkel e Eleonor Roosevelt são outras personalidades conhecidas mundialmente, que também receberam o Nansen, em 2022 e 1954 (o primeiro ano do prêmio), respectivamente.
As outras quatro ganhadoras – Maimouna Ba, Jin Davod, Nada Fadol e Deepti Gurung – são vencedoras regionais. E, além delas, o povo da Moldávia será agraciado com uma menção honrosa (saiba mais no final deste texto).
“As mulheres muitas vezes enfrentam riscos elevados de discriminação e violência, especialmente quando são forçadas a fugir”, destaca Filippo Grandi, Alto Comissário da ONU para Refugiados. “Mas estas cinco vencedoras mostram como as mulheres também desempenham papel fundamental na resposta humanitária e na busca de soluções”.
Durante o anúncio de seus nomes à imprensa, Grandi elogiou a dedicação de cada uma ao promover ações em suas comunidades, construir apoio de base e contribuir para moldar políticas nacionais.
Os prêmios serão entregues em cerimônia em Genebra, em 14 de outubro, apresentada pela atriz sul-africana Nomzamo Mbatha, e que também contará com as presenças e pronunciamentos de Kat Graham, Embaixadora da Boa Vontade do ACNUR, de Valentina Nafornita, soprano moldava, e de Emeli Sandé, cantora e compositora.
O caminho até os refugiados
Irmã Rosita é filha de agricultores de origem italiana, com os quais aprendeu valores como a fé profunda e o compromisso com o próximo. Eles terminavam o dia de trabalho rezando com seus 11 filhos e, apesar de terem muito pouco, ofereciam trabalho, comida e um lugar para dormir às pessoas que pediam ajuda ou que transitavam pela região onde moravam, no Rio Grande do Sul.
Aos 9 anos, Rosita foi estudar num colégio de Missionárias Scalabrianas, em regime de internato, que naturalmente a influenciaram na decisão de se tornar Irmã católica, aos 19 anos.
Por 20 anos, ela trabalhou como professora e na área administrativa de um hospital e de instituições geridas pela congregação que ajudava os pobres.
Foi sua determinação que a ajudou a superar questionamentos e levá-la a estudar Direito e, em seguida, terminar um mestrado. Na época, ela dizia que ia ser “advogada dos pobres”, pois refugiados e migrantes ainda não faziam parte do cenário da cidade. Essa missão só entrou em sua vida no final dos anos 70, quando as Irmãs Scalabrinianas decidiram acolher refugiados e migrantes.
Com essa decisão, a irmã Rosita foi encarregada de criar um Centro de Estudos de Migrações, em Brasília. “Eu sabia pouco sobre o assunto, mas tive que me preparar. Meu foco, então, voltou-se para as pessoas em mobilidade, deslocadas, e decidi dedicar meu conhecimento e trabalho aos refugiados e migrantes”, contou.
Foi assim que se iniciou a trajetória que a levaria a se transformar numa das defensoras de refugiados mais influentes do Brasil.
Sua experiência e um discreto poder de persuasão foram fundamentais quando surgiu oProjeto da Lei de Refúgio do Brasil, em 1996. Ela mobilizou apoio para ampliar a definição de refugiados que constava do PL, e o fez com base na Declaração de Cartagena de 1984, garantindo – num espectro muito mais de pessoas que buscavam proteção internacional – o reconhecimento como refugiadas a partir da Lei nº 9474/1997.
“Qualquer lei dura muitos anos. Boa ou ruim, é difícil desfazer. Então, não podíamos deixar que uma lei com um conceito limitado fosse aprovada se havia a possibilidade de ampliá-la”, explicou. E Irmã Rosita não mediu esforços: até a ajuda do Vaticano ela pediu! Queria que o Papa escrevesse uma carta para o governo brasileiro (Fernando Henrique Cardoso) explicando o quanto era importante ampliar o conceito de refugiado. Pedido feito, carta enviada.
Sua performance foi igualmente admirável durante o debate e a aprovação da Lei de Migração (Lei nº 13.445), em 2017, no governo de Michel Temer.
Determinação e fé
Para responder à uma questão muito comum em entrevistas – a que se deve trajetória de tanta dedicação aos refugiados? – ela revela a fórmula: “determinação e fé”.
“Sempre fui uma pessoa muito determinada, desde a infância. Se assumo algo, vou virar o mundo de cabeça para baixo para fazer acontecer”, contou ela à reportagem da ACNUR, em Boa Vista, capital de Roraima, no norte do país, onde a organização que ela lidera – Instituto Migrações e Direitos Humanos (IMDH) – recebe refugiados e migrantes da Venezuela e de outros países.
“Decidi me dedicar a migrantes e refugiados. Sou inspirada pela crescente necessidade de ajudar, acolher e integrar refugiados”, declarou. “Não tenho medo de agir, mesmo que não alcancemos tudo o que queremos”.
Mil e uma atividades
Hoje, além da atuação jurídica, Irmã Rosita coordena uma rede de cerca de 70 organizações nacionais, que promovem ações de apoio e iniciativas em prol de refugiados, migrantes e comunidades locais.
Ela ainda integra o Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE) e o conselho diretor da Fundação Scalabriniana, com a qual publicou artigos acadêmicos sobre deslocamentos forçados e migração. “Sempre tive a capacidade de fazer três, quatro, cinco coisas ao mesmo tempo”.
Além de muito determinada e comprometida, Irmã Rosita é prática. Ela e suas equipes no IMDH em Boa Vista e Brasília não medem esforços para melhorar a vida de algumas das 793.300 pessoas – oriundas de 168 nacionalidades, entre elas, do Afeganistão, de Burkina Faso, Haiti, Iraque, Mali, Síria, Ucrânia e Venezuela -. que precisam de proteção internacional e estão abrigadas no Brasil,
Com o apoio de parceiros como o ACNUR, o IMDH atende, em especial, mulheres, crianças e grupos em situação de vulnerabilidade a obterem acesso à documentação, assistência social e emprego digno, além de distribuir kits de saúde e nutrição para mães com crianças na primeira infância.
Para tanto, capta recursos e ainda fornece apoio financeiro para a compra de equipamentos e orientação para refugiados – principalmente as mulheres -, desenvolverem seus próprios negócios.
Vínculos e sonhos
Com essa trajetória e seu coração gigante, seria natural que Irmã Rosita criasse laços pessoais com muitas das pessoas que ajuda. E é assim! A reportagem do ACNUR conversou com Jana Alraee, que chegou a Brasília em 2014 com o marido engenheiro e três filhas, após fugir de sua casa em Damasco, capital síria. Sem economias e dificuldade para falar português, não conseguiam trabalho fixo e chegaram a pensar em retornar à Síria.
Foi uma amiga que impediu que isso acontecesse ao apresentá-los à Irmã, que logo encontrou um professor de português para eles. Ela também os ajudou a estabelecer um buffet sírio e tornou-se amiga e grande apoio para a família.
“Quando alguém foge de seu país por causa da guerra, deixa tudo para trás, sua família, mãe, pai – todos. Então, quando você conhece alguém como a Irmã Rosita com um coração tão bom, ela lhe dá amor, conselhos… Eu a chamo de ‘Mãe’, não a chamo de ‘Irmã’, porque ela me dá o que sinto falta”, declarou Jana. “Se eu me sinto perdida, ela me coloca de volta no caminho certo… ela está sempre comigo, sempre”.
Irmã Rosita está prestes a completar 80 anos e, em geral, as pessoas se espantam ao saber que ela ainda tem muitos planos e sonhos. Ao repórter da ACNUR, ela enumerou alguns planos como “ampliar o acesso à educação para crianças refugiadas, melhorar o reconhecimento dos diplomas de refugiados e – após a devastação causada pelas recentes enchentes em seu estado natal, o Rio Grande do Sul – abordar os crescentes impactos das mudanças climáticas sobre os refugiados e deslocados”.
Por um futuro melhor para os refugiados e migrantes, Irmã Rosita nunca deixará de sonhar e de trabalhar. “Sempre devemos ter uma utopia porque ela nos mostra o horizonte. Nunca alcançamos o horizonte, porque, à medida que avançamos, o horizonte se afasta. Mas ele nos aponta o caminho. Ter uma utopia, um sonho, uma convicção de construir algo melhor é fundamental. E isso é fundamental para os refugiados”.
Prêmio regional
O Prêmio Nansen foi criado em 1954 e recebeu este nome em homenagem ao norueguês Fridtjof Nansen, que foi humanitário, cientista, explorador e diplomata. E, como indiquei no início deste texto, além do prêmio global, conquistado pela Irmã Rosita, anualmente há mais quatro prêmios regionais.
As quatro laureadas deste ano foram:
– Maimouna Ba (África): ativista da Burkina Faso, ajudou mais de 100 crianças deslocadas a retornarem à escola e ensinou mais de 400 mulheres a conquistar sua independência financeira;
– Jin Davod (Europa): empreendedora social, com base em sua própria experiência como refugiada síria, criou plataforma online – Peace Therapist -, que conecta milhares de sobreviventes de traumas a terapeutas licenciados, que oferecem suporte gratuito de saúde mental;
– Nada Fadol (Oriente Médio e Norte da África): refugiada sudanesa, mobilizou ajuda essencial para centenas de famílias deslocadas que fugiram para o Egito em busca de segurança; e
– Deepti Gurung (Ásia-Pacífico): ativista nepalesa, lutou pela reforma das leis de cidadania de seu país após descobrir que suas duas filhas haviam se tornado apátridas. O problema surgiu porque o pai das meninas havia abandonado a família, e a legislação nepalesa não permitia que as mães transmitissem sua nacionalidade para os filhos. Ela, então, liderou campanha para reformar as leis de cidadania do Nepal, abrindo caminho para a cidadania de milhares de outras pessoas em situação semelhante.
O Prêmio Nansen ainda dará uma menção honrosa ao povo da Moldávia (ou República da Moldava, país do Leste Europeu e antiga república soviética), por seus esforços coletivos para acomodar mais de um milhão de pessoas que fugiram da guerra na Ucrânia.
“Apesar de seus próprios desafios internos, a Moldávia se destaca como um farol de humanidade. O país acolhe a maior proporção de refugiados em relação à população anfitriã da Europa, um poderoso indicador de sua profunda solidariedade. O povo da Moldávia não apenas ofereceu refúgio, mas também lançou as bases para uma sociedade mais inclusiva, incorporando o espírito de compaixão e resiliência global”, conta a ACNUR.
“Desde os primeiros dias da guerra, moldavos transformaram suas escolas, igrejas e casas em refúgios. Milhares de voluntários, movidos por um profundo senso de compaixão, trabalharam incansavelmente, muitas vezes por 14 horas por dia, para fornecer comida, abrigo e conforto àqueles que fugiam de horrores inimagináveis.
Esse apoio espontâneo deu origem à iniciativa cívica Moldova for Peace, que uniu organizações de base, órgãos governamentais e cidadãos em uma missão conjunta de refúgio e inclusão.
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Foto: ©UNHCR/Marina Calderon
Com informações da ACNUR