“Quando os meus olhos estão sujos da civilização,
cresce por dentro deles um desejo de árvores e aves”
Manoel de Barros
Leva certo tempo até percebermos a frieza e a pasmaceira da era digital. É inegável que o mundo da internet seja fascinante e vasto, com aplicações infinitas. Tem componentes verdadeiramente revolucionários. Contudo, o mergulho de cabeça nesse mundo – paradoxalmente – nos priva de vivências e limita o desenvolver pleno da condição humana.
Se nenhum sinal de alerta for dado, a tendência é que sucumbiremos às armadilhas e vulnerabilidades do funcionamento cerebral, que retroalimenta pequenos ciclos de validação social. A cada clique ou curtida, “microdoses” de hormônios de prazer podem nos tornar viciados em uma suposta popularidade. O formato das plataformas sociais se aproveita desse caráter viciante: o usuário publica o conteúdo, recebe curtidas que liberam dopamina, que gera prazer efêmero, que acaba por motivá-lo a entrar novamente, reiniciando o ciclo. É preciso, ao menos, estar ciente dessa arapuca psicológica.
O debate sobre o uso abusivo da internet tem se acentuado nos EUA e na Europa. Até mesmo grandes figurões do mundo virtual, como Sean Parker, fundador da Napster e um dos principais investidores do Facebook, criticam o sistema das plataformas sociais que se aproveita das fragilidades do comportamento humano. A área é ainda pouco estudada e controversa, mas tem atraído o interesse de especialistas e da própria Organização Mundial de Saúde que acaba de reconhecer o vício de jogar videogame “de modo contínuo e recorrente como doença”.
Privação de experiências
Ao boicotar a riqueza de experiências, o mundo de conexões promovido pela internet nos priva de momentos reais. Em parte, já abordei esse assunto aqui no blog quando falei sobre a extinção da experiência, tema apresentado pelo querido amigo e biólogo Raul Costa Pereira.
Na sociedade ocidental, ampliamos nossa capacidade de nos relacionar com os bens materiais, mas cada vez mais restringimos e refreamos nossos sentimentos. Pasteurizamos os sentidos. Comparados a outros primatas, reduzimos muito o uso do paladar, do olfato, da audição., mas resta o tato, cada vez mais usado, de modo limitado, é verdade.
O tato é a matriz de todos os sentidos. Ainda nas profundezas da proteção uterina, quando o embrião tem apenas dois centímetros de comprimento, sem olhos nem ouvidos, é capaz de responder a estímulos tácteis. Na nona semana de desenvolvimento, se a palma da mão for tocada, um gesto reflexivo faz os dedos se curvarem em um agarrar primitivo. Pano rápido, quase noves meses, e agora fora do útero, aprendemos rapidamente a nos orientar pelo tato.
A pele – maior órgão do corpo humano e com milhões de terminações nervosas – nos dará as primeiras noções de mundo exterior e a perceber aspectos básicos do ambiente em que viveremos. Afago, calor, desconforto e prazer são algumas das primeiras sensações que teremos por meio do tato e da pele. Como num passe de mágica, aprendemos a tocar o mundo atual.
Nos últimos tempos, teclados, telas touch, tablets e smartphones passaram a ser as formas mais constantes de conexões com o ambiente. Pergunte a um adolescente qual seria a maior das privações que ele poderia experimentar e com grande chance ele dirá que é ficar sem celular ou internet. Ficamos quase que escravos de nossas posses.
Quando entediados, trocamos inclusive o toque do celular, mas raramente nos abrimos ao toque dos outros. Sequer nos damos conta do quão útil pode ser quando alguém que nos dá um toque sobre algo que vai mal. Em geral, repelimos. E a multiplicidade dos sentidos é substituída pelo árido toque do teclado. Ficamos virtuais, impessoais, intocáveis.
Insurreição movida pelas vivências
Trabalho como professor universitário desde 1992 e vejo de forma alarmante como muitos estudantes da geração atual se conecta de modo compulsivo aos gadgets. Não se trata de demonizar os equipamentos, muito menos de negar seus benefícios. Mas é preciso saber dosar e variar o cardápio de comportamentos para acessar informações.
Em uma sociedade multicultural com a brasileira, existem numerosos caminhos para explorarmos a riqueza e a diversidade, promovendo e respeitando os múltiplos valores que nos tornam tão especiais. Como seres humanos, penso que devemos usar nossa espantosa capacidade de aprendizado para nos humanizarmos. Isso implica em valorizar o saber crítico voltado para um maior conhecimento do mundo, para a promoção de uma cultura de conexão e respeito à natureza, capaz de desenvolver as potencialidades da condição humana. Em resumo, inspirados pelos sábios que nos antecederam, usar o conhecimento para que não deixemos morrer as vivências.
Da próxima vez que você for entrar nas redes sociais, lembre-se de como seu cérebro funciona. Ao invés de postar uma foto banal, vá a um parque e faça uma caminhada. No lugar de teclar, toque fraternalmente alguém querido. Nada substitui o contato direto e pessoal, essencial para forjar intimidade emocional com as pessoas e com o mundo que nos cerca.
Se não resistir ao mundo digital, use sua educação como ferramenta para desenvolver o pensamento crítico: não se deixe iludir por seus hormônios. Fica o toque.
A foto que escolhi para ilustrar este post foi feita por mim no Museu de História Natural, em Nova York. Nela, uma garota olha atentamente a reconstituição de um casal de Australopithecus afarensis. O macho toca nos ombros da fêmea. Mais que uma concessão poética da Ciência, o abraço presume que fortes laços sociais uniam nossos antepassados.
Para ir mais fundo no mundo do tato, há um livro espetacular, de Ashley Montagu (1988): Tocar, o significado humano da pele. 9ª. Edição. São Paulo. Summus.
Foto: José Sabino/Natureza em Foco / Reconstituição: Gary Sawyer