No Brasil, não existe racismo, dizem cínicos e desavisados. O episódio protagonizado pelo apresentador Silvio Santos (SS) no domingo passado, 8/12, apenas afirma, mais uma vez, que ele está arraigado em nossa cultura e em nossos costumes, e que é promovido diariamente. E ainda entra nas casas dos brasileiros, pela TV, muitas vezes sem que eles se deem conta.
Só que, desta vez, a repercussão à atitude preconceituosa e desrespeitosa do dono do SBT – que ignorou a votação do público, que escolheu como vencedora a candidata Jennyfer Oliver em um concurso musical -, nas redes sociais, foi gigante. Proporcional ao tamanho da desfaçatez desse homem que, muitas vezes, se revela desprezível.
Enquanto se apresentava, Jennyfer já sentiu a interferência de Silvio Santos. Ele a interrompeu dizendo que a música que interpretava era “muito chata” e não a deixou terminar. Com um detalhe: foi a produção do programa que escolheu as músicas que as quatro candidatas interpretariam. Depois que todas se apresentaram, a plateia foi convocada para escolher a vencedora, com um total de 100 votos.
Jennyfer teve 84 votos do público contra 8, 5 e 3 das demais candidatas. Ou seja, ela venceu “de lavada”. Foi a vencedora e seria a única que ganharia o prêmio de 500 reais. Mas Silvio não aceitou o resultado e disse que todas as candidatas receberiam o mesmo prêmio. O constrangimento da cantora era visível. Mas ele não parou por aí: disse que uma delas, que seria escolhida por ele, receberia o dobro do prêmio e justificou: “Você é muito bonita e canta muito bem, mais R$ 500 para você, Juliana!”. Mas, afinal, este era um concurso musical ou de beleza?
A situação revela não só o desrespeito do apresentador com o público e com a candidata, como também a falta de imparcialidade com que atua, além de sua postura mimada: ““Se eu estivesse na minha casa, na minha opinião, a melhor intérprete seria você, Juliana!”. Não importam as regras dos quadros do seu programa, ele faz o que quer. Mas, neste caso, a questão é Jennyfer ser negra, certamente. Por isso foi preterida e ignorada por Silvio. Este senhor nunca escondeu seus preconceitos.
“Quem assistiu viu. O povo sentiu a situação. Eu fiquei super constrangida no momento, mas como demorou três semanas para o programa ir ao ar, eu não podia mencionar nada sobre o assunto,”, contou a cantora em suas redes sociais. “Jurava que ia ser editado, e que eles iriam pular essa parte. Ele me barrou na hora de cantar a música. Em nenhum momento eu postei dizendo que ele foi racista comigo, ou algo do tipo. As pessoas sentiram e comentaram, postaram coisas no Twitter e no Instagram. E se as pessoas sentiram, eu respeito a opinião de todo mundo, cada um tem a sua”, completou, com elegância.
A situação deu grande visibilidade para Jennyfer e uma corrente do bem se formou à sua volta. Ela ganhou inúmeros seguidores em suas redes sociais, entre eles, alguns famosos como a protetora dos animais Luisa Mel e o músico Carlinhos Brown, o que pode lhe render ainda mais notoriedade.
A “mulher mais bonita do mundo” é negra
No mesmo dia, em Atlanta, nos Estados Unidos, o concurso Miss Universo 2019 elegia uma negra como a mulher mais bonita do mundo. Deixando de lado todos os detalhes que envolvem e originaram esse concurso mundial, neste momento da história, em que o racismo, a extrema-direita e o movimento pela supremacia branca dão sinais intensos pelo mundo – inclusive em nosso país, mesmo que, em alguns casos, de forma velada ou verbalmente disfarçada -, esta é uma ótima notícia.
Os sites femininos ou especializados nesse tipo de concurso, disseram que a sul-africana Zozibini Tunzi, de 26 anos, impressionou os juízes com sua naturalidade e com seu sorriso cativante, mas também por seus ideais contra o racismo e a desigualdade de gênero.
Antes da vitória, Tunzi falou da importância da representatividade em discurso engajado: “Cresci em um mundo onde uma mulher que se parece comigo, com meu tipo de pele e cabelo, nunca é considerada bonita. Isso acaba hoje. Quero que as crianças vejam seus rostos refletidos no meu”.
Ela também falou de liderança feminina e das pressões estéticas durante a competição, onde concorreu com 89 candidatas. “É algo que falta nas mulheres jovens há muito tempo. Mas, após a sociedade rotular como elas deveriam ser, a liderança passou a ser um desejo”.
Pois é, os concursos de beleza parece que mudaram bastante. Hoje, não se trata apenas de analisar a beleza física da candidata. Personalidade e inteligência estão entre as habilidades consideradas pelos júris das competições nacionais e internacionais.
Tunzi é modelo, graduada em relações públicas e gerenciamento de imagens. Trabalhou como estagiária no departamento de RP de Ogilvy Cape Town e começou a participar de concursos de beleza quando ainda era estudante. Em 2015, foi eleita Miss Mamelodi Sundowns e, em 2017, semifinalista da Miss África do Sul. Mas, na segunda tentativa, este ano, ganhou o título em seu país. O prêmio incluiu um carro e um apartamento mobilizado no bairro nobre de Sandton, Joanesburgo, onde continuará morando durante “seu reinado”.
Charge “vinga” constrangimento
No dia seguinte, o chargista Nando Mota – das páginas @desenhosdonando nas redes sociais (Facebook, Instagram e Twitter) -, juntou os dois acontecimentos em um único desenho, de forma super talentosa, não só pelos traços, mas também pela mensagem.
Ele transformou Zozibini Tunzi em uma espécie de heroína que rende Silvio Santos e seu preconceito, jogando-o ao chão, e divide sua coroa de Miss com a cantora Jennyfer, reconhecendo seu talento e se identificando com sua “dor”.
Muita representatividade e sororidade, nessa charge. Não foi à toa que viralizou nas redes.
Em 68 edições do ‘Miss Universo’, apenas cinco negras
Tantas edições e, até hoje, apenas cinco mulheres negras foram consideradas as mais bonitas do mundo. Mas já representaram alguns passos. Na foto abaixo, reuni as quatro antecessoras de Zozibini Tunzi: duas de Trinidad Tobago, uma da Califórnia e outra de Angola.
A primeira foi eleita em 1977: Janelle Commissiong (à esquerda na foto), de Trinidad e Tobago. Isso aconteceu após 25 anos de existência do concurso.
Em 1995, a vencedora foi Chelsi Smith, da Califórnia. O concurso foi realizado em Windhoek, na Namíbia. Eram outros tempos e o título a transformou em modelo de grandes marcas de moda. Ela também se tornou atriz de séries de televisão, além de gravar um disco single, que integrou a trilha sonora do filme Tudo Pra Ficar com Ele.
Wendy Fitzwilliam, advogada de Trinidad e Tobago (de novo!!), venceu o titulo em 1998, derrotando 80 concorrentes.
Treze anos depois, em 2011, no Brasil, foi a vez da angolana Leila Lopes ser eleita (à extrema direita, na foto). “Os racistas devem procurar ajuda porque não é normal uma pessoa pensar assim no século 21″, disse ela em discurso após a vitória. “Qualquer tipo de preconceito não tem fundamento”.
Imagine se Leila viesse ao Brasil, hoje… e assistisse ao programa de Silvio Santos.
Fotos: Reprodução Instagram (Silvio Santos) e Divulgação (Miss Universo)
Há de chegar o dia que todos seremos belos, e, quando desejarmos, tornar nossos corpos telas a experienciar cores, formas e texturas, sem precisar dar explicações a ninguém.