Um gatinho perdido. Aquele miado no final do dia só podia ser de um filhote de gato. Mesmo sendo difícil acreditar que um gato chegasse perto de nossa casa, longe de tudo e cercada de predadores. Bom, como o bicho é acostumado com humanos, pensamos, uma hora vai aparecer para pedir comida. Mas não aparecia. Era janeiro de 2001, na Serra da Boa Vista, em Santa Catarina.
Todo final de tarde, durante um bom tempo era aquele miadinho, às vezes perto, às vezes longe. Miau, miau e de repente silêncio total. Isso só aumentava a nossa curiosidade e anunciava outros sons: pererecas, grilos e finalmente, a noite profunda.
O tempo passava e a gente se acostumava com o tal do gatinho. Perdido estaria, perdido ficaria?
Num belo fim de tarde, percebemos que o som entrava em casa pela janela. O gatinho finalmente pedia comida, trepado num galho ao lado de casa? Passo a passo, torcendo para nenhuma tábua do assoalho ranger e espantar o bicho, espiamos. Tranquilo, pousado num galho, um passarinho miava. Miava?
Estava desvendado o mistério! Uma sabiá-poca (Turdus amaurochalinus) miava, silenciava e dormia. Não deu outra, quem ficou acordado? A gente.
Então, aparece a dúvida
Até o mistério do gatinho ser desvendado, pensamos que o miado poderia ser de um passarinho, só por conta do nome: o alma-de-gato.
Muito tempo depois, achamos várias referências na internet, de que o alma-de-gato (Piaya cayana) tinha esse nome por imitar um filhote de gato. Nem desconfiamos das afirmações sobre a suposta habilidade da ave, mas aquele miado da sabiá-poca não saía de nossas cabeças. O assunto mexeu conosco.
“Ave das mais vistosas, pode lembrar um caxinguelê quando desliza pela ramagem.” Com essa frase, Helmut Sick inicia a descrição do alma-de-gato na obra-prima Ornitologia Brasileira e talvez responda um dos porquês dele ganhar esse nome. O inglês pegou a deixa e batizou-o de squirrel cucko (cuco esquilo).
E Sick continua:
“O alma-de-gato ao tagarelar imita às vezes outras aves, por exemplo o bem-te-vi, razão pela qual é tido pelo povo como gozador. É da família dos cucos (em geral, bons imitadores de outras aves) e vive em casais na mata e à beira da mata, principalmente nas copas, cerrado e cerradão, do México à Argentina.”
Ele é reconhecido por seu canto característico, que é algo como “picuã”, tincuã, chinquã e outras variações” (leia mais aqui).
Com o mestre Sick aprendemos que a sabiá-poca frequenta o mesmo ambiente do alma-de-gato. Logo, pensamos: um fala enquanto o outro se mostra e alguém escuta, vê e nomeia? Aí pode morar o equívoco.
O alma-de-gato alimenta-se, inclusive, de lagartas venenosas…
O alma-de-gato tem muitos nomes: alma-de-caboclo, alma-perdida, atibaçu, atingaú, atiuaçu, chincoã, crocoió, cuco-brasileiro, maria-caraíba, meia-pataca, oroca, pataca, pato, pato-pataca, pecuã, piá, picumã, rabilonga, rabo-de-escrivão, rabo-de-palha, tibaranê, tincoã, tinguaçu e titicuã. Indígenas batizaram de uirá-pajé, pássaro feiticeiro!
Consultado, o querido amigo e pesquisador de ornitologia Fernando Straube nos enviou lendas, recortes de jornais e vasta bibliografia sobre o tincoã. Tudo para instigar a gente, ainda mais, não só sobre a origem do nome alma-de-gato, como da própria alma da palavra.
O certo é que a ave não recebeu este nome por imitar um gatinho, como várias fontes afirmam, mas criou um equívoco.
… presas que captura com seu bico poderoso
Uma ave e muitas lendas
“Quando chega a noite e as sombras saem de seus esconderijos, as crianças da Paraíba correm para dentro de casa. ‘O Alma de Gato pode aparecer no quintal a qualquer momento!’ E daí? Com ele chega o medo que toma conta dos corações acelerados das crianças desobedientes. Uma sombra, sem forma nem cor, aparece e enche de sons surdos e inexplicáveis os quintais das casas da meninada.
Já em outras paragens ele é um gato preto que, com seus olhos vermelhos e luminosos, destila fogo, semeia o medo por onde quer que haja uma criança malcomportada.
Mas outros dizem que o Alma de Gato também pode ser uma ave agourenta, bicho azarento que traz desgraças a quem ouve seu canto. E, se enterrado, naquele lugar dá origem a uma planta que torna invisível quem comer de suas folhas. Sombra, bicho ou… folha? Quem crer verá.”
[Abecedário de personagens do Folclore brasileiro, de Januária C. Alves]
“Conta-se que certa vez uma grande piraíba engoliu o filho pequeno de um chefe indígena. Todos se uniram para fazer uma grande linha de pesca, usando fibras do cipó titica. Mas o fio logo se rompeu e o peixe escapou. Fizeram então uma trama usando fios de cabelo das mulheres e, com isso, conseguiram pescá-lo. O pajé, porém, advertiu: “Dentro do peixe haverá um pássaro, mas tomem muito cuidado para que não escape!”. Os índios de fato encontraram ali uma alma-de-gato mas, por descuido, ela conseguiu voar cantando: “Tincuã! Tincuã!”. Logo em seguida o céu ficou todo escuro, a terra tremeu e o lago secou. Era o filho do cacique que passou a praguejar contra todos, por ter sido devorado pelo enorme peixe.
É por esse motivo que em alguns lugares dizem que a ave tem o dom especial de avisar quando alguma coisa ruim está para acontecer à família ou aos amigos mais próximos. Mas, se o presságio lhes chega, logo se aquieta olhando para o céu com os olhos que se tornam vermelhos. Seu canto muda para uma nota só – e se vai. É o aviso de que alguém muito querido está passando por alguma dificuldade.”
[Prenúncios da Alma-de-gato, Fernando Costa Straube]
Seus olhos vermelhos destacam-se na paisagem
Em regiões da Amazônia brasileira, o alma-de-gato é reputado como um dos múltiplos deflagradores de um estado conhecido como panema ou panemice, ou seja, estar azarado. “Panema é uma impressão de que tudo vai mal, nada dá certo; vai pescar, não pega peixe; a pessoa dorme muito, fica com morrinha, melancolia mesmo. É aquela panemeira!”.
[“Pássaro” é bom para se pensar: simbolismo ascensional em uma Etnoecologia do Imaginário, José G. W. Marques]
No Rio Grande do Sul, acredita-se que ele tenha sete fôlegos como o gato, por ser a “outra vida” dos gatos, nos conta Hitoshi Nomura em Avifauna no Folclore.
O alma-de-gato come de tudo e vasculha entre os frutos do palmiteiro (Euterpe edulis)
Afinal, quem nasceu primeiro, alma de gato passarinho ou expressão popular?
Johann Natterer anotou “alma de gato” por volta de 1820 como nome popular para a ave Piaya cayana em Sepetiba, no litoral do Rio de Janeiro.
E ao longo do tempo, como é possível ver nos relatos abaixo, essa ave misteriosa continuou mexendo não apenas com o imaginário popular, mas também de diversos pesquisadores.
“Alma de Gato he do tamanho d’humo Pomba, cinzento pela parte inferior, aloirado pela superior, com cauda muito comprida, bico curto e curvo; e não tem canto.” [Aires de Casal na Chorographia, 1822]
“O Alma de Gato, se o vento não estiver muito forte, entreterá o povo nos intervallos, com engraçados saltos mortaes, e outras habilidades de magica branca (…)” [O Meteoro, S. Paulo, 16.11.1850]
“Padre Mestre, depois que Vmc. ler esta carta queime e não mostre a ninguem; porque não quero que alguma alma de gato pense que o que digo aqui a respeito de S. M. o Imperador é adulação para Elle me dar alguma cousa.” [“Marmota na Corte” 1852 do Rio de Janeiro, 30.3.1852]
“(…) É tambem um côco bem cantado, que muitas vezes no Bebedouro vi o José Bento de beiço cahido dançando o côco, que parecia uma alma de gato… [O Liberal Pernambucano, Pernambuco, 21.12.1854]
“Nestas os gêneros vegetaes não se contam, as espécies são innumeraveis, as variedades infinitas. As grandes florestas tropicaes tem para o poeta a physionomia umas vezes risonha e serena, outras voluptuosa e promettedora, outras sobrecenha e tetrica. Elias vivem pelo murmurinho do arroio, pelo cicío da aragem, pelo pio das aves, pelos mil verbos da solidão. Elias tem expressões plangentes como o pio do alma-de-gato e o arrúlo da jurití, ameaçadoras como o ranger das arvores e o rojar traiçoeiro das serpentes; vehementes ou coléricas como o rugido da panthera e o estrondear das cachoeiras; eloqüentes ou aterradoras, como o canto dos corrupíos e o arruido desesperado das ventanias.” [“O Holocausto” de Pedro Americo, 1882]
Exemplo de uso da expressão pode ser encontrado no jornal “O Paiz”, de 10 de julho de 1894, na seção de anúncios: “Uma pessoa que tenha as melhores referências se oferece para criado de casa ou de homem solteiro. Tem alma de gato. Dirigir-se à rua do Ouvidor, 101, loja”.
Outro exemplo pode ser encontrado no jornal “O Combate”, de 27 de abril de 1899, na seção de notícias: “Um ladrão desastrado – Na madrugada de ontem foi preso na rua dos Pescadores um indivíduo, que a polícia suspeita ser o autor de vários furtos de gêneros alimentícios. O ladrão, ao se ver cercado pelos guardas, tentou a fuga, mas foi preso. Foi conduzido ao posto da Praia do Flamengo, onde confessou seus crimes. Disse que era marinheiro e que estava sem trabalho. Tem alma de gato”.
Anúncio de 1899 para o Theatro Alvaro de Carvalho, em Nossa Senhora do Desterro (Ilha de Santa Catarina), chama para uma hilariante paródia a uma peça em 3 atos com o nome de “Alma de… Gato!”
Por fim, Straube nos explica:
“Se você vir uma pessoa que tem pés parecidos com os de uma cabra, poderá dizer que ela tem pé de cabra, como poderia ter pé de elefante, pé de boi… Não significa que – a partir daí – ela seria chamada de pé-de-cabra, que é outro tipo de palavra. Algumas menções nos jornais falam que a pessoa tem alma de gato. Poderia ser alma de pássaro (é livre), alma de beija-flor (é rápido), alma de mula (é trabalhador)… Então, algumas citações de jornal, aludindo a “alma de gato” referem apenas ao fato da pessoa ser (ter alma) ágil, esquiva, esperta, atenta…
Há, porém, algumas matérias que nos indicam que era uma gíria que durou alguns poucos anos (porque não foi mais vista com esse sentido ao longo dos anos subsequentes). Talvez “alma-de-gato” (agora sim uma expressão única) fosse o nome como se dirigiam aos malabaristas. Aí isso faz muito sentido na comparação com a ave!”
Esse pássaro é exímio voador, faz acrobacias entre os galhos da floresta fechada
Foto de abertura: Renato Rizzaro (um jovem alma-de-gato, que ainda depende da mãe pra se alimentar)
🇧🇷®️😎🖕. Boa tarde! Moro in Ananindeua, Pará. In meu condomínio Inzeste um bosque com uma mata nativa bem ampla pro tamanho do terreno, com árvores grandes e de madeira de lei. Hj, passeando com meu dog Pumpy, enxerguei essa ave “Alma de Gato” e fiquei muito feliz. Agradeço por tudo.