Mais de 30 anos depois de percorrer os caminhos de areia e pedras de Magami, no Níger, África, Evaristo de Miranda põe no papel os segredos e mistérios que vivenciou ao redor daquela pequena localidade à beira do Saara.
O livro A Geografia da Pele – Um brasileiro imerso na África profunda, lançado em 2015 (Editora Record) conta histórias de gente comum: agricultores, pastores, mulheres à espera de sua vez para puxar água do poço, crianças sempre borboleteando curiosas. O incomum está no olhar e na maneira de relatar o extraordinário. Só lendo mesmo para entrar nessa outra dimensão africana.
O autor é engenheiro agrônomo, pesquisador da Embrapa e autor de três dezenas de livros. Nenhum tão especial como este, sobre o qual ele fala brevemente na entrevista exclusiva a seguir:
A África é tema frequente na literatura, em livros de viagem e na mídia, sobretudo nos documentários de TV. O que difere “A Geografia da Pele” do que se conhece sobre o continente?
O Níger, o país onde vivi, está fora das manchetes. Lá não há leões, nem gorilas, elefantes ou safáris. É um dos pontos mais centrais da África, ao sul do deserto do Saara. Um ponto de cruzamento entre diversas etnias, as últimas a serem dominadas pelos colonizadores europeus. O Níger não está em filmes de natureza, nem frequenta roteiros de viagens ou de safáris fotográficos. É o país mais pobre do mundo e, no entanto, sua população não é famélica. A região onde trabalhei é feita de areia, pastagens, choupanas de palha, tradições, cabras, ovelhas e campos infindáveis de cereais, povoada por animais invisíveis, em meio a acácias e baobás.
Você adota as palavras “imerso” e “profunda” no subtítulo do livro: um brasileiro imerso na África profunda. O que o fez caracterizar as experiências relatadas com tais palavras?
Não passei por lá apenas numa viagem de aventuras, nem fiz rápidas visitas turísticas. Eu vivi como agrônomo e pesquisador, durante vários anos, com a população local: os nômades, os pastores, os agricultores. Aprendi a falar suas línguas, morei nas aldeias, comi sua comida e compartilhei de seu modo de vida para tentar entender – e ajudar a reduzir – os desequilíbrios agrícolas e ecológicos que afetam a região. Foi realmente uma imersão numa África profunda, pouco conhecida e extremamente surpreendente.
Em quais momentos dos anos passados nessa África “profunda” você se sentiu num beco sem saída, seja por questões culturais, seja por limitações físicas?
Neste livro, relato diversos desses episódios. Foram situações muito variadas, desde ser convidado a comer morcegos fritos até a dificuldade em encontrar a maneira certa, não ofensiva, de recusar uma jovem escrava buzú, que me foi ofertada em sinal de amizade por um grupo tuaregue, para que eu a levasse à França. E houve também situações de real perigo, no deserto do Saara, e em meio a experiências surreais, em estados alterados de consciência.
Porque você esperou mais de trinta anos para publicar suas vivências? Quando estava lá, você já acumulava os relatos com ideia de compor a obra ou só se dedicou ao resgate de memórias recentemente?
Durante todo o meu tempo na África, registrei minhas experiências, como faço até hoje ao trabalhar com os pequenos agricultores do Nordeste ou da Amazônia. Num determinado momento, após uma progressiva vivência com a população hauçá, eles decidiram me revelar alguns segredos sobre sua produção agrícola, alguns costumes secretos e o destino de seus cereais. Antes, porém, me fizeram jurar que manteria o segredo por 28 anos. Foi o que fiz: mantive a promessa. Nem em meu doutorado mencionei tais coisas. Agora, o mestre do tempo me autoriza falar, neste livro.
Você voltou a percorrer os caminhos daquela época? Acha que aquelas paisagens e aquela diversidade de culturas permanecem vivas? Ou eles vão sucumbir com a entrada de movimentos como o Boko Haram?
Nunca mais. Às vezes tento identificar, em imagens de satélite, as transformações na vegetação, estradas e aldeias da região. É uma de minhas especialidades científicas na Embrapa: monitorar a agricultura por satélite.
Com a ajuda da tecnologia, enxergo poucas mudanças: vilarejos cresceram, estradas melhoraram, mas a paisagem segue igual, assim como os arranjos de vegetação relacionados ao cultivo de alimentos e manejo do gado. Alguns ecos de grandes alterações vêm pela imprensa, como essa ameaça do Boko Haram e do islamismo radical. Os militantes desses movimentos agem livremente, sequestram mulheres, atacam vilarejos, incendeiam igrejas, estupram e escravizam jovens cristãs.
Ao norte, a revolta armada dos tuaregues, a derrubada do ditador Kadafi na Líbia, a criação abortada de um Estado islâmico pela Al-Qaeda no Mali e a intervenção militar da França e dos países africanos trouxeram violência e insegurança, inéditas para os nômades do Saara e para os vilarejos nas fronteiras do Sahel com o grande deserto, onde eu vivi. Em meio a emboscadas, combates, bombardeios e controles militares, eu imagino os agricultores e os pastores que conheci prosseguindo silenciosamente na busca de seus humildes sonhos verdes.
Qual a sua interpretação, hoje, das marcas em suas pernas e braços que compõem “A geografia da pele”?
Como digo no início de meu livro, minha pele não suportou anos no deserto do Saara. Animado pela ousadia dos deuses da juventude, não percebi o quanto ela era tatuada pelo sol, vento, vegetação, animais e seca. Uma estranha geografia marca minha epiderme. Percorro suas manchas, rugas, máculas, dobras e cicatrizes como quem caminha entre colinas, montanhas, cordilheiras, países e continentes. Nas entranhas da memória, diversas sonoridades identificam essas paisagens africanas de meu corpo. Mas não consigo entender.
Há trinta anos estou mudo em hauçá. Não ouço, nem falo ou leio. A areia do tempo apagou e soterrou essa língua africana em meu coração. Após estarem por anos em minhas noites, os olhares peuls, a luta dos hauçás, as espadas dos tuaregues, as interrogações de um guia zarolho e até o sorriso de uma jovem parteira sem braços desapareceram de sonhos e pesadelos. Na memória ficaram sinais hieroglíficos, espelhados nos céus da epiderme, que o tempo não apagou. Diluíram-se em meio a outros, amazônicos, polares e nordestinos. Mas à noite, eles ainda cintilam.
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Na foto da capa do livro, garoto da tribo dos peuls ou fulanis, para os quais os bois são sagrados e morrem de velhos. Eles acreditam que, quando uma pessoa morre, ressurge como boi. E vice-versa. Eles reconhecem parentes e ancestrais nos animais e, por isso, é comum vê-los conversarem com os bois; estes escutam com atenção e compaixão, para glória dos humanos.
Nas fotos abaixo, Evaristo com um chef tuaregue e conversando sobre plantas com um agricultor. A última foto foi feita durante visita ao povo hauçá que revelou segredos sobre sua produção agrícola, costumes secretos e o destino de seus cereais para Evaristo, não antes de fazê-lo prometer segredo por 28 anos.
Fotos: montagem com a imagem da capa do livro e divulgação