Por Patrícia Bonilha*
O aumento da “quentura” do ar, o desaparecimento de animais e de diversas frutas nativas, a perda de roças inteiras, a eclosão de doenças não-comuns, a alta incidência de incêndios e as mudanças noa modos de vida tradicionais são algumas das alterações que 44 mulheres indígenas de cinco povos do Maranhão (Krikati, Awá, Gavião, Ka’apor e Guajajara), um do Pará (Tembé), um do Tocantins (Krahô) e um de Roraima (Macuxi) contam já impactar severamente o dia-a-dia de suas comunidades.
Reunidas em Carolina, no Maranhão, entre 12 e 14 de junho, para a realização da oficina intitulada “Mulheres indígenas e o impacto das Mudanças Climáticas, elas se debruçaram sobre temas ainda não muito conhecidos, como desenvolvimento econômico, globalização e economia verde.
Jovens ou anciãs, muitas delas participaram pela primeira vez de um encontro como esse e a timidez de falar em público ou para driblar as dificuldades de falar na língua do “caraí” (não indígena) eram explícitas.
Com a presença de muitas crianças e bebês – o que, certamente, não ocorreria em uma reunião de lideranças masculinas –, o encontro foi marcado pela diversidade também em relação ao tempo de contato com a sociedade não indígena. Faz cerca de 40 anos que o povo Awá, teve contato com os brancos, pela primeira vez. Já o povo Guajajara se relaciona com nossa sociedade há mais de 400 anos.
Elas compartilharam diversas vivências, como o trabalho de sensibilização realizado no entorno de alguns territórios para que a vida da floresta seja respeitada e o apoio aos maridos garantido no monitoramento dos territórios, os Guardiões da Floresta. Também demonstraram preocupação com a finitude dos bens naturais e a necessidade de valorização da cultura indígena (língua, danças, rituais, estilo de vida) e, especialmente, das anciãs e dos anciãos.
Para além dos problemas e desafios, as participantes focaram bastante energia em compartilhar soluções (que muitas vezes já empregam em seus territórios), como o reflorestamento, a manutenção de viveiros com sementes nativas e plantas medicinais, a criação de abelhas, a produção de mel, a agroecologia, as trocas de sementes, a revitalização de rios e nascentes, as brigadas contra incêndios, o cuidado com a espiritualidade e os seus Encantados e, claro, a contínua e permanente proteção da Mãe-Terra, suas águas e matas.
Abaixo, seguem os incríveis testemunhos de sete das “guerreiras” que participaram deste encontro lindo:
Acari Awá-Guajá, Terra Indígena Alto Turiaçu
“É importante a gente repassar os conhecimentos que a gente aprende para as nossas parentes, porque nem sempre nós, mulheres, temos esta oportunidade, esta autonomia de sair da aldeia e participar de discussões como essa.
As mulheres têm seu próprio conhecimento e elas também nasceram pra lutar. Então, é preciso que a gente esteja junto com os homens, defendendo nossa cultura, que está ameaçada. O jabuti, por exemplo, tá em extinção. O mutum também. Raramente a gente vê estes bichos. E isso é muito triste. No ano passado, fizemos uma roça de mandioca. Mas foi um ano perdido porque o inverno foi muito longo e perdemos a colheita toda. Por isso é importante respeitar os territórios indígenas, porque a gente preserva a terra e a água”.
Edilena Krikati, Terra Indígena Krikati, Conselheira da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab)
“Nós, mulheres, somos as primeiras a sentir e a observar os impactos e as mudanças relacionadas ao clima no nosso cotidiano porque temos uma relação especial com a natureza e o território.
Somos nós também que guardamos as sementes e passamos estes e outros conhecimentos para as novas gerações. Inclusive os diferentes modos de fazer a proteção territorial. A gente precisa se adaptar mais à natureza e não intervir tanto, fazendo grandes desmatamentos, mudando as paisagens, construindo barragens, estradas. E não percebemos o quanto isso é ruim pra nossa própria existência.
Nós, indígenas, tiramos da natureza tudo o que precisamos pra comer, pra viver e pra estar lá. Se isso faltar, a gente passa a não existir mais porque a nossa relação é um todo, não é em partes. Nós somos só um, que estamos lá naquele conjunto maior. Não estamos fora da natureza”.
Maria Betânia Mota de Jesus Macuxi, Terra Indígena Aningal (RR), Secretária Geral do Movimento de Mulheres do Conselho Indígena de Roraima (CIR)
“São muitos os impactos que a gente sente nas aldeias devido ao avanço das mudanças climáticas. Hoje, não tem mais peixe suficiente nos rios pro consumo do povo indígena. A gente não sabe mais quando começa e nem quando termina o inverno. As enchentes que acontecem agora não eram tão comuns antes. As nossas plantações não são mais abundantes como eram.
O garimpo ilegal nas aldeias dos Yanomami, por exemplo, já contaminou muitos indígenas com mercúrio… E tudo isso nos deixa muito tristes porque nós cuidamos e protegemos nossos territórios. Não só pra nós, mas pra todos os brasileiros.
Estamos estudando e cada vez mais entendendo as causas das mudanças climáticas, como os combustíveis fósseis, a pecuária, o desmatamento, a mineração, as hidrelétricas. Todas as graves alterações no clima são causadas pelas ações humanas. Todo este desequilíbrio. Seria importante que estas pessoas que estão destruindo a natureza, se sensibilizassem, de verdade, porque não podemos viver sem a natureza”.
Maria Helena Gavião, Terra Indígena Governador, coordenadora da Amima (Articulação de Mulheres Indígenas do Maranhão)
“As mulheres sentem muito mais as mudanças climáticas, na aldeia, na roça. E tudo tem mudado muito rapidamente. Antes, em abril, já tinha passado a chuva. Hoje, chove até julho. Não sabemos mais quando vai começar nem quando vai parar de chover. A gente fica perdido. Não sabe quando deve começar a fazer a roça. E quando a gente fala de clima, a gente fala de proteção do território, a gente fala de Bem Viver. Tá tudo interligado.
Quando a gente tá no mato, a gente sente a energia da mata, da floresta. É muito forte e muito bom. Por isso que a gente tem que preservar. Sem esse conhecimento a gente não vive. E isso é passado de geração pra geração. Sem floresta, a gente não tem vida. É nossa casa, nossa história, nossa origem… Tudo depende da floresta. Os não indígenas não têm esta ligação com a natureza. Acham que o capitalismo, os empreendimentos, o dinheiro é vida. Mas não é! Sem água, como vamos viver? E o que é mais vital, tá tudo sendo ameaçado, destruído, todo dia”.
Sônia Guajajara, coordenadora da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), candidata à vice-presidência nas eleições de 2018
“As mudanças climáticas são como um anúncio de um período ainda mais drástico, com secas e enchentes, alterações severas que exigem conversas e cuidados de nós, mulheres, pra lidar com estes danos. E as mudanças climáticas são causadas pela ação das pessoas e por este plano de progresso, que dizem que é um progresso econômico, mas é um grande regresso em relação aos direitos humanos, à proteção ambiental e, principalmente, à nossa própria existência e modo de vida.
É claro que as políticas públicas que não protegem e não respeitam o meio ambiente, que só priorizam o viés econômico e o lucro, vão aumentar cada vez mais as mudanças climáticas, e causar mais destruição e desmatamento. O atual governo Bolsonaro é totalmente alinhado com o que aumenta as mudanças climáticas, como as mineradoras, a indústria madeireira, as monoculturas, o agronegócio. Por isso, lutamos contra este modelo de destruição, que se baseia na exploração dos recursos naturais.
No Brasil, a maior causa das mudanças climáticas é o desmatamento e a degradação ambiental, que inclui os incêndios. Precisamos pressionar o governo para fazer políticas que protegem o meio ambiente, o que não acontece hoje. Por isso temos uma guerra, uma briga grande aí, e estamos na mira dos assassinatos, das ameaças, da criminalização, porque estamos lutando com forças poderosas econômicas e políticas”.
Suluene Guajajara, Terra Indígena Arariboia, integrante da Coordenação e Organização dos Povos Indígenas no Maranhão (Coapima)
“Estamos mostrando o nosso olhar sobre como as mudanças climáticas impactam diretamente nossa aldeia, na saúde, na cultura e na produção. Isso reflete também em mudanças no nosso modo de vida. Tivemos um incêndio muito grande na TI Arariboia, que destruiu mais de 60% da floresta, em 2015. De lá pra cá todo ano acontece incêndio. Isso leva nossas caças, nossos pássaros, e quando vamos fazer a Festa da Menina Moça, já não encontramos mais as caças que precisamos pra realizar a festa. E por que o incêndio entrou? Porque houve desmatamento, teve exploração de madeira. Isso impacta nossa cultura.
Nossas roças também não produzem como antes porque a terra tá queimada, o solo não produz. E o calor… a gente sente que o sol tá muito mais próximo de nós que antes. Nossos rios estão secando. O não indígena fez carvoaria na nascente do Rio Buruticupu e ele tá muito fraco agora. E, pra nós, o rio é sagrado. Não é só pra beber que a gente pega água, não é só pra pescar. Ali vive outro povo, Encantado, que depende de nós. O nosso contato com o povo Encantado depende da água. E não queremos perder o que a gente tem de sagrado.
Com a diminuição da produção na roça, a comunidade tem que comprar alimentos industrializados na cidade. Hoje temos muito mais hipertensos, temos problemas cardíacos, muitos casos de diabete. São doenças não tratadas por nós, causadas pelos alimentos industrializados e pelo contato direto com o mundo externo. Tem doenças que o pajé cura, mas câncer o pajé não cura”.
Valdilene Alves Tembé Ka´apor, Terra Indígena Alto Turiaçu
“Esta é a primeira vez que participo de um debate como este, que é importante pra toda a nossa comunidade. A gente tem até vergonha de falar na frente de todo mundo, mas é assim que começa. Porque acredito que nós, mulheres, temos que participar da luta pelo território, porque ele está em perigo com o desmatamento, que tem avançado muito.
A gente, lá na aldeia, não tem mais bacuri nas nossas terras, e nem outros frutos. Os brancos destruíram tudo pra fazer estrada. Mas não vamos mais deixar acontecer isso”.
*Este texto foi publicado originalmente no site do Greenpeace, em 21/6/2019
Fotos: Greenpeace (na abertura, Jacilda Guajajara)