Por Leila Salim*
Na noite de ontem, 11/1, o Serviço Nacional de Meteorologia dos Estados Unidos (NWS, na sigla em inglês) publicou um alerta de frio extremo para a região do Missouri, no Centro-Oeste do país. O que poderia ser uma mensagem corriqueira para o mês de janeiro, no entanto, revelou a intensidade do fenômeno, previsto para se iniciar hoje e durar até a próxima quarta.
“Há uma razão para chamarmos de ‘frio com risco de vida’. Temperaturas dessa magnitude causarão danos se alguém estiver ao ar livre despreparado. Leve a sério. Esse tipo de frio não acontece com frequência, especialmente por um período prolongado”, declarou o NWS no X (ex-Twitter), que colocou a maior parte dos EUA sob alertas de frio extremo, nevascas, ventos intensos e tempestades.
A massa de ar frio vinda do Ártico pode causar anomalias de temperatura de até 51ºC abaixo da média. No Centro-Norte, por ao menos dois dias, as temperaturas não passarão dos 18ºC negativos, com sensação térmica de -43ºC.
A previsão é de que centenas de recordes de temperatura negativos sejam quebrados no próximo final de semana e na semana seguinte em todo o país, acrescentou o NWS. Mais de 7 milhões de pessoas estão sob alerta para baixa sensação térmica causada por intensas rajadas de vento.
Tudo isso na sequência de uma forte tempestade que, nesta semana, causou tornados e inundou o centro e o leste dos Estados Unidos, deixando várias regiões sem energia. Na costa oeste do país, uma avalanche matou uma pessoa e feriu outras três em uma pista de esqui na Califórnia, na última quarta-feira, 10/1.
No Canadá, o serviço de meteorologia colocou dez regiões sob alerta vermelho, o mais alto nível de preocupação, para frio extremo, ventanias, tempestades e nevascas. A cidade de Calgary, na província de Alberta, pode ter, hoje, o dia mais frio em 20 anos, com 31ºC negativos.
Toda a província, a Oeste do país, está sob aviso de frio extremo e as autoridades alertam que, nestas condições, o congelamento de partes do corpo humano pode acontecer em menos de um minuto em casos de exposição ao ar livre sem proteção.
O frio extremo é resultado de uma perturbação do chamado vórtice polar do hemisfério Norte. Como explica Karina Lima, doutoranda em climatologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), os vórtices são áreas de baixa pressão e ar frio localizados sobre os pólos Norte e Sul do planeta. Os fluxos de ar nessas áreas ajudam a manter as massas de ar frio próximas aos pólos, envolvidas por ventos muito rápidos em altitude, as chamadas correntes de jato. No caso do polo Norte, quando há uma ruptura ou perturbação nesse sistema, o ar frio que antes estava confinado ao Ártico “escapa” e se move em direção ao sul, como mostra a figura abaixo.
Francisco Aquino, professor do Centro Polar e Climático da UFRGS, conta que cientistas seguem pesquisando e buscando entender se, e de que maneira, os eventos de ruptura do vórtice polar se relacionam com o aquecimento do planeta e a crise climática.
Ele destaca, no entanto, que já se nota uma mudança significativa no padrão dessas rupturas, que se tornaram muito mais frequentes quando comparadas aos últimos quarenta anos. Agora, é preciso entender de que forma se dá a interação desse fenômeno em duas diferentes camadas da atmosfera terrestre nas quais o vórtice está presente, a troposfera (a camada inferior da atmosfera, mais próxima da superfície terrestre) e a estratosfera (onde o vórtice polar é mais intenso e definido).
Aquino pontua que, no contexto do aquecimento global e com os oceanos anomalamente quentes, as perturbações na troposfera tendem a modular a circulação geral de correntes de ar na atmosfera.
“Essa interação favorece o rompimento do vórtice polar. Se estivéssemos falando sobre isso nos anos 1950, dificilmente relacionaríamos esse evento às mudanças climáticas. Mas, modernamente, precisamos abrir essa discussão. A superfície continente-oceano está alterada e, consequentemente, esse debate precisa ser feito”, alerta.
E Aquino completa: “Como destacou o último relatório do Copernicus [serviço climatológico da União Europeia], é sabido que a região tropical do planeta está anomalamente quente. Logo, há um forçamento entre a atmosfera tropical e polar que irá, necessariamente, interagir com o vórtice polar. As interações das mudanças climáticas com o vórtice polar do Ártico são esperadas”.
As explicações acima já responderiam, com folga, à pergunta “cadê o aquecimento global?”, feita nos últimos dias pelos negacionistas de sempre nas redes sociais (os mesmos que “previram” que a Covid não mataria mais de 800 pessoas no mundo).
Nunca é demais lembrar, no entanto, que a desestabilização dos sistemas climáticos causada pelo aquecimento global não exclui eventos extremos de frio, que se referem às condições do tempo – e não do clima. “Enquanto a crise climática segue em curso e o planeta aquecendo, eventos extremos com ondas de frio e neve especialmente no hemisfério Norte existirão, respondendo à perturbação gerada pelo aquecimento global”, resume Francisco Aquino.
“Muitas pessoas não entendem a diferença entre tempo e clima. Eventos relacionados ao frio não deixam de existir por causa do aquecimento global”, completa Karina Lima.
Do lado de cá
Abaixo do Equador, o verão ferve. Nesta semana, uma onda de calor atingiu a parte central da América do Sul, afetando principalmente o Paraguai. A semana iniciou com temperaturas acima dos 40ºC e previsões de ultrapassagem dos 45ºC. O serviço meteorológico do país publicou, ontem, 11/1, comunicado sobre as altas temperaturas em todo o país e informou que cinco localidades bateram recordes históricos diários.
Além do Paraguai, Argentina, Bolívia e Brasil enfrentam ondas de calor com temperaturas acima dos 35ºC. Ontem, a cidade do Rio de Janeiro registrou sensação térmica de 53,4ºC, a segunda maior do verão.
A semana foi marcada ainda por intensas chuvas em São Paulo, que provocaram alagamentos e colocaram a Zona Norte da capital sob estado de atenção. Uma pessoa morreu, após ter seu carro atingido por um fio energizado.
A vida em um planeta 1,5ºC mais quente
Karina Lima lembra que a soma de aquecimento global e El Niño pode significar um 2024 ainda mais quente que 2023. “Nenhum El Niño é igual ao outro, mas o fenômeno costuma favorecer períodos mais secos no Norte e Nordeste e mais chuvas no Sul do Brasil.
Globalmente, os anos de El Niño costumam ser mais quentes e este El Niño vai persistir por parte do ano de 2024, exercendo algum grau de influência até que se enfraqueça e entremos em condição de neutralidade. Geralmente, é no ano seguinte ao desenvolvimento do El Niño que vemos o maior aquecimento (como foi com os eventos de El Niño de 1997-1998 e 2015-2016, em que 1998 e 2016 superaram os anos anteriores). Se esta tendência for seguida, 2024 pode superar 2023”, afirma.
A climatologista da UFRGS lembra, no entanto, que o fenômeno atmosférico-oceânico pode estar se comportando de forma diferente desta vez. De todo modo, a intensificação do aquecimento do planeta persiste e indica um 2024 de extremos.
“Este El Niño pode estar se comportando de forma diferente, tendo contribuído com mais aquecimento no início do ciclo por causa da rápida transição depois condições persistentes de La Niña por três anos (2020-2023). Mas o aquecimento global é o fator principal e continua aumentando, independente da contribuição do El Niño. Em um mundo mais quente, a tendência geral é de aumento de frequência e intensidade de eventos extremos”, completa.
“A tendência para 2024 é que – até a metade do ano – tenhamos temperaturas anomalamente quentes, por intensificação do El Niño. E, mesmo que a estação de chuvas tenha começado bem atrasada, como aconteceu no Centro-Oeste, há a tendência de eventos extremos de precipitação. Ou seja: temos períodos secos com ondas de calor e períodos curtos com intensa precipitação”, relata.
Aquino exemplifica com as chuvas intensas que já atingem a região Sudeste. Ele destaca, ainda, à luz do relatório do Copernicus lançado nesta semana, que a América do Sul e o Brasil tiveram, em 2023, seu inverno e primavera mais quentes já registrados, fornecendo uma amostra do que será a vida em um planeta 1,5ºC mais quente.
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* Este texto foi publicado originalmente no site do Observatório do Clima em 12/1/2024
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Fotos (destaque): Birk Enwald/Unsplash (Calgary/Canadá) e Tomaz Silva/Agência Brasil (praia no Rio de Janeiro)